?”Do lazer e do ócio” (Apolinário Ternes)

Do Lazer e do Ócio

Apolinário Ternes

 

 

 

 

 

 

 

Desde a Grécia clássica aos tempos modernos rotulados de pós-industrial, o homem se preocupa com a distribuição do tempo entre o lazer e o trabalho. Nos primórdios da civilização Ocidental, isto é, nos tempos da Grécia antiga e do Império Romano, o trabalho sempre foi considerado uma atividade menos digna, própria e adequada aos escravos. O homem superior jamais se dedicaria ao esforço físico em prol da realização de qualquer empreendimento de ordem material. A ideia de que o trabalho diminui a pessoa, tornando-a rude e inferior na ordem social sempre esteve presente na compreensão antiga de tudo o que é humano. A proposta da inferioridade do trabalho, registre-se esteve presente ainda em grande parte dos dois milênios seguintes, pois um nobre da Idade Media tampouco poderia usar suas mãos para qualquer atividade funcional ou de trabalho. Escravos primeiros, assalariados depois, continuaram a prestar serviços aos nobres e às classes superiores de todas as sociedades. Desde os tempos dos Césares, a humanidade almeja a criação de robôs, ou de máquinas que se responsabilizassem pelas atividades relacionadas à produção e às tarefas do cotidiano. Domenico de Masi, em “Criatividade e grupos criativos”, observa:

‘Nos tempos do império romano circulava no Oriente um tratado cosmológico birmano no qual narrava a fábula de um país mítico, ‘Roma-Visaya’, onde existiam máquinas vivas, homens-máquinas, máquinas veículos de espíritos’, capazes de desempenhar as mais variadas tarefas; cultivar os campos, prestar serviços comerciais, capturar delinqüentes. É muito provável que o autor anônimo aludisse aos escravos que povoavam Roma, assim como haviam povoado Atenas: máquinas dotadas de ouvido, de fala, de beleza e de sensualidade. Portanto, muito melhores e bem mais funcionais que os robôs que hoje pretendemos da eletrônica’. (Criatividade, pág. 152)

É mais antigo do que imagina nossa vã filosofia o desejo dos homens em criarem máquinas para o trabalho. Somente com a Era Industrial, a partir de meados do século 18, é que o desenvolvimento tecnológico da humanidade se aproxima de tal realização. Não podemos duvidar que mecanismos sofisticados resultantes da ciência e da tecnologia estão de certa forma ‘humanizando’ o trabalho, enquanto o homem, mesmo o trabalhador de chão de fábrica, continua sendo beneficiado por diferentes legislações que protegem e asseguram direitos ao trabalhador. Em 1770, quando dos primeiros sinais da Revolução Industrial se evidenciavam na Inglaterra e no resto da Europa, as jornadas dos operários se estendiam por 16 horas ou mais. Inclusive crianças e adolescentes eram mobilizados em longas e exaustivas jornadas de trabalho, sem quaisquer direitos à folgas, férias ou remunerações extras. Foram tempos difíceis e de trabalho rude, que se diferenciavam dos tempos do escravismo, apenas, talvez, pelo pagamento de salário.

Se na Grécia antiga ou na Roma imperial as chamadas classes superiores, ricos até por descendência, dos sacerdotes, militares, nobres, políticos e filósofos detinham níveis de conforto, segurança e direito ao ócio e ao lazer de forma permanente, as classes inferiores, dos não considerados cidadãos, ainda que não escravos efetivamente, tinham que produzir o pão com o próprio suor. Deviam realizar tarefas nos mais variados campos, sempre na realização de serviços às classes superiores. Sem remuneração, e sem quaisquer direitos trabalhistas ou civis. Não havia o capitalismo como entendido desde o advento da Era Industrial, a produção em série e a remuneração salarial, nem tampouco o consumismo dos tempos modernos, mas havia, sempre, a obrigação de fazer, tarefas a cumprir e trabalhos a serem realizados. O direito ao ócio pertencia apenas às classes superiores.

Desde o início do século 19, contudo, ao lado do progresso material decorrente da revolução industrial, se multiplicam as legislações protecionistas, não apenas em nome do direito ao lazer, mas principalmente no ordenamento jurídico das obrigações remuneratórias, de segurança no trabalho, o direito de férias, licenças e de apreciável conjunto de garantias ao trabalhador.

Se no plano jurídico e material das condições de trabalho se registra contínua evolução, no plano mais abrangente do direito ao lazer, há muito ainda por conquistar. O direito ao ócio, parafraseando o título de livro do mais conhecido especialista na questão, o italiano Domenico de Masi, autor também de “O Ócio Criativo”, continua sendo privilégio apenas das classes sociais superiores:

“Movimentos ideológicos intensos como o Iluminismo e o Utilitarismo, 200 anos de rápido progresso tecnológico que se traduziu em longevidade, bem-estar econômico e desenvolvimento cultural, não bastaram para resgatar a máquina do desprezo e da rejeição dos gregos e dos romanos, que chegou até nós por intermédio do esnobismo dos intelectuais. Esses dois povos, que souberam revolucionar a visão do mundo, o papel do homem no planeta, a dimensão filosófica, estética e política da humanidade, deixaram, contudo, um modestíssimo legado de invenções tecnológicas. Antes de tudo, eles estavam convictos de que, após a grande explosão criativa da Mesopotâmia, pouco ou nada permaneceria por ser inventado no campo tecnológico (afirma-o explicitamente Aristóteles no primeiro livro da ‘Metafísica’). Se todo o possível do universo tecnológico já havia sido inventado, por que perder mais tempo em torno das ciências aplicadas? De sua parte a economia era tão austera e até mesmo pobre, que desencorajava qualquer tendência à acumulação e ao consumo vistoso: logo, não havia estímulo ao incremento da eficiência e da produtividade através do emprego de máquinas cada vez mais potentes”. (Criatividade, págs. 155/156)

Sociólogos e filósofos do século 20 são unânimes em reconhecer que o trabalhador de nossos dias, apesar da eficiência das máquinas e das legislações trabalhistas, continua duramente escravizado pelas máquinas e duplamente penalizado pelo consumo, Nesta ótica, o direito ao lazer, ao ‘ócio criativo’ e às liberalidades da modernidade, continuam utopias distantes. Apesar das máquinas e em detrimento de produções máximas de todo tipo de utilidades domésticas ou destinadas ao lazer, o homem moderno certamente é menos beneficiado no que tange ao lazer ou à nobreza do ócio.

Desde Marx, o grande intérprete dos tempos modernos e da ascensão do capitalismo, observa que o processo econômico fundado na exploração do meio ambiente e na sociedade de massa, resultaria num sistema socialista ao final de suas diferentes etapas. A produção seria maciça e o consumo tão intenso, que, no futuro, o consumidor teria forçosamente que desfrutar de tempo, do ócio e do lazer, para manter o ciclo produção-consumo. Da mesma forma, acabaria a luta de classes e viria, então, o reino da felicidade. Apesar dos avanços, sabemos que o capitalismo está longe de alcançar estágio tão sofisticado. Pelo contrário, em 2010, as sociedades mais desenvolvidas e o capitalismo financeiro enfrentam mais uma das tantas crises estruturais que, nas últimas décadas, ao alcançar o estágio denominado capitalismo financeiro, continua a produzir ‘bolhas’ em diferentes áreas do sistema. De crise em crise, desde o primeiro grande ‘crash’ das bolsas, em 1929, o capitalismo continua sobrevivendo aos desafios da sociedade de consumo de nossos dias.

Nesta sociedade, também denominada de consumo e da informação, que o filósofo polonês Zigmut Baumann denominou de ‘sociedade líquida’, o direito ao lazer ou ao ócio continuam sendo privilégios das classes superiores, ou seja, apenas dos ricos ou dos muito ricos. Aos trabalhadores, como magistralmente denunciado por Chaplin no célebre filme ‘Tempos Modernos’, da década de 1930, restam ainda os paradoxos da superprodução e do trabalho repetitivo, que inferiorizam o trabalhador e o trabalho às rotinas de máquinas-humanas a serviço de recordes de produção.

O direito ao lazer e ao ócio, apesar de inscritos nas Constituições e garantidos nos códigos jurídicos de todas as nações, continua meta a ser alcançada e direito a ser conquistado. Com a evolução das legislações e com a sofisticação dos sistemas de produção, é possível aspirar a tempos melhores ao trabalhador, que não será meramente considerado instrumento de produção e de enriquecimento aos detentores dos meios de produção, mas, principalmente, como elos fundamentais no processo de consumo.

Como ingressamos na era da informação e do entretenimento, é possível, ainda, acreditar que a economia continuará se aperfeiçoando em direção a níveis sempre mais diferenciados de consumo, isto é, de produtos voltados à cultura, à educação, ao turismo, e, consequentemente, destinados a criar novas condições para o lazer e para o chamado ócio criativo.

A economia tende a se desmaterializar e se desvincular da produção em série, para alcançar níveis de imaterialidade e imaginação, destinados a públicos cada vez mais personalizados e exigentes. Nesta etapa do desenvolvimento econômico e cultura, será, então, possível imaginar que o ócio e o lazer estarão assegurados à grande maioria das populações.

 

Apolinário Ternes

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