“O descascador de laranjas” (Hilton Görresen)

O DESCASCADOR DE LARANJAS

Cantou durante o verão?

                                                                                                               Agora dance!

 

Sentou no degrau diante da porta – a casa tinha a frente na calçada –, colocou ao lado a mochila puída, abriu-a e retirou uma laranja. Tirou o canivete do bolso da calça e começou a descascá-la vagarosamente. Podia deixar a fruta nua em segundos, mas gostava de ir girando-a devagar, com os dedos gretados, enquanto firmava o dedão sobre a casca e a ia solapando com a lâmina do canivete. Ignorava que seria um sábado fatídico.

A cidade toda já o conhecia. Há anos tinha o costume de sentar-se em portas ou murinhos, com a mesma calça desbotada pelo uso, um par de tênis arrebentados e provavelmente furados nas solas. Na mochila, umas três ou quatro laranjas que passava horas descascando, em silêncio, como se estivesse retocando uma obra de arte.

Não se sabe de onde tinha vindo, nem onde se abrigava à noite, a única pessoa que costumava conversar com ele era a assistente social da prefeitura.

Era alto, rechonchudo – talvez inchado; o cabelo esbranquiçado caído em franja sobre um rosto extremamente pálido o fazia semelhar-se a um fantasma.

Crianças passavam gritando:

– Balula! (balula, no Sul, é uma pessoa mascarada, que assusta as crianças)

Não ligava, continuava sua tarefa cotidiana, como alienado da realidade que o rejeitava. Tivera um passado? Uma juventude? Tivera amores, desejos, amizades? Coisas que certamente se evaporaram, esvaziadas de sua mente agora indevassável.

As pernas pesadas subiam e desciam ladeiras. Era inofensivo, quase transparente; pessoas ignoravam sua presença nos portais, passavam com sua pressa cotidiana enquanto a vida ia se escoando. Para ele, o tempo passava devagar, sem pressa, recolhido em silêncio, zombeteira cigarra a exercer sua penosa liberdade.

Em noites claras, lua alta, já o viram banhando-se na cachoeirinha, pequeno declive no curso do rio, onde as águas se despejavam em abundância, com lampejos brilhantes. Deitava a mochila nas margens de relva – sombras de árvores arrepiadas ao vento –, tirava as roupas e entrava na água, o corpo branco, feia cicatriz fendendo as costas. Após o banho, sacudia o corpo como um cão encharcado, jogava a cabeça para os lados e golpeava os ouvidos a fim de expulsar os incômodos restos de água. Tirava da mochila uma toalha rescendendo a pelo de gato molhado, enxugava-se, recolocava a roupa amarfanhada e desaparecia.

Nessa tarde de sábado, rua silenciosa, o sol ferindo e dando brilho às pedras do calçamento, passaram dois garotos de bicicleta. À pequena distância, os rostos voltados para trás, gritaram, como de costume:

– Balula!

Teve um meneio nas mãos, sacudido de seu torpor. Quase largou a laranja, descascada a meio. Mas não chegou a erguer o corpo comprido.

Um dos garotos, com a cabeça virada em sua direção, passou por cima de um paralelepípedo solto, perdeu o equilíbrio e caiu, batendo a cabeça nas pedras do calçamento. O homem levantou-se e correu para ajudá-lo. Com o arrastar das ferragens pelo chão, cabeças curiosas surgiram nas janelas.

– Foi ele! – gritou o outro garoto, desorientado e assustado com sua presença.

A rua ficou cheia de pessoas que, confusas, lhe apontavam o dedo: Foi ele! Foi ele! Aninhou-se, amedrontado, contra uma parede. Nem percebeu quando o puxaram violentamente pelas roupas e o empurraram no chão. Estava cercado por seis ou sete homens; donas de casa, de chinelos e rolos nas cabeças, os estimulavam a agredi-lo. Estirado no solo, de bruços, a sola do tênis apresentava um enorme furo, blindado com papelão por dentro.

Tentou erguer-se, levou uma paulada no crânio. Ossos estalaram. Chutes e sarrafadas por todo o corpo. Ninguém ouvia sua voz, desesperados gritos inaudíveis. Das casas saiam mais pessoas, enraivecidas formigas a estraçalhar a cigarra muda e sem asas. Baba escorria dos lábios feridos. Por fim, a cabeça empapada de sangue derreou no chão.

Não conseguiram apagá-lo da história da cidade.

 

Hilton Görresen

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