📓 “Geometria da vida” (Lufiego)

GEOMETRIA DA VIDA

Marcelo Lufiego

CRÔNICA DA MELHOR IDADE
Do nascimento à morte, muitos chegarão aos noventa anos de idade. Congratulemo-nos com eles pela longevidade. Solidarizemo-nos com eles, pois quanto mais viverem maior será o sofrimento diante da inevitável sucessão de mortes de pessoas queridas e conhecidas, sobretudo daquelas de sua própria geração. Oscar Niemeyer morreu 10 dias antes de completar 105 anos. Imaginem tudo o que viu. – É melhor nem imaginar; continuemos a leitura. Confesso que às vezes, como agora, assalta-me a ideia de que morremos paulatinamente; a vida em ascensão transcorre enquanto estamos no interior do ventre materno. Depois do nascimento a vida é declínio. Cuida-se de um processo de morte, que, aliás, chamamos de vida, dado o nosso apego àquela condição intrauterina, porque lá ainda subsistiam os laços edênicos com o outro mundo; lugar para onde retornaremos humildes e triunfantes, por termos encarado o desafio de experimentar a vida, ou melhor, a morte. O nascimento determina o início da morte, que não é súbita, mas progressiva; em condições normais leva muitos anos devido ao vigor biológico que desenvolvemos da concepção ao momento em que estávamos prontos para nascer. Logo, morrer não é tão ruim assim, pois afinal a vida é boa e, às vezes, longa. O primeiro choro parece coadunar-se com este pensamento; caso contrário, riríamos ao nascer e no lugar da palmada receberíamos um abraço! Mas não; é preciso a palmada, senão sufocamos e o processo que em tese deveria ser longo se encerra abruptamente.

Inobstante este inusitado insight, com aparência de tétrico e com alguma substância tétrica, não é vergonhoso reconhecer (não vivemos num momento tétrico?), nos casos de longevidade, na geometria da vida e sob a orientação da régua de 24 polegadas, que permite diferenciar as 24 horas do dia todos os dias, os trinta dias do mês todos os meses, os doze meses do ano todos os anos, nestas décadas de existência terrena, percebo uma sucessão de três idades; todas formadas por duas fases ou subidades. Venha comigo atento leitor. Desfraldemos juntos a bandeira da liberdade de expressão e de pensamento destes viventes que, às vezes, não percebem que só se pode viver com ineficiência, pois não se pode morrer com ineficiência. A morte é 100% eficiente, como ensina o guru de Beverly Hills. Viver eficientemente, eis o grande desafio! Aliás, desafio tão fundamental que prescinde de um guru para que o concebamos.

Antes, porém, discorramos sobre as diversas idades e suas repartições. A primeira idade é a menoridade, formada pela infância e pela adolescência. O início da infância está mais próximo da última etapa da terceira idade, a senilidade, pois o ciclo da vida não é uma reta, mas um círculo. Todos conhecem muito bem a infância e a adolescência, portanto, não falaremos delas. Depois destes belos anos de brincadeiras e descobrimentos, vem a idade adulta, formada pela juventude e pela maturidade. Período sem igual, o mais complexo da vida, para o bem ou para o mal. Bastante conhecido por todos, também silenciaremos sobre ele. Até que chegamos na terceira idade, o nosso ponto, que se compõem de duas etapas: uma inicial e outra derradeira.

A senilidade, marcada pelo ostensivo declínio das funções do corpo, incluindo as mentais, momento de retorno à dependência da família, corresponde à última etapa da terceira idade. A primeira etapa da terceira idade, em condições normais de saúde, ainda não corresponde à velhice; está longe disso. Platão, se vivesse neste tempo, diria que a primeira etapa da terceira idade é a idade do filósofo. Principalmente daquele filósofo que filosofa para si próprio, para melhorar sua própria condição humana e não necessariamente do filósofo professor, guru ou mestre, tarefa reservada a poucos. É dela, a primeira etapa da terceira idade, que iremos tratar . . . filosoficamente . . . para nosso próprio proveito. Peço-lhes apenas que, se divulgarem este texto aos filósofos radicais, garantam a eles que isto não passa de um ensaio literário, sem nenhuma pretensão de lecionar, senão de servir aos interesses deleitosos da leitura. Antes, porém, no tocante à sucessão das diversas idades e subidades, registro que a transição varia de pessoa para pessoa. Uns ingressam na idade adulta aos 17 anos, outros aos 20 e tantos e assim em todas as demais transições. Na terceira idade, mais um exemplo, a passagem da fase inicial para a última varia muito de pessoa para pessoa. Para simplificar e permanecer consentâneo à regra atual, consideraremos o início da primeira fase da terceira idade aos 60 anos. Para os nossos netos, nascidos na última década, superadas as pandemias e afastadas as guerras nuclear e bacteriológica, começará aos 70 anos, certamente. Por ora, tenhamos este limite balizado aos 60.

Após este registro inicial, debrucemo-nos sobre a primeira etapa da terceira idade. E para tanto, precisamos saudá-la como a ”melhor das idades”, pelo menos depois da infância . . . se pudéssemos torná-la permanente, como queriam Peter Pan e seus amigos, seria maravilhoso. Apenas brincar e brincar, sem as responsabilidades cotidianas. Todavia, isso não é possível.

A primeira parte da terceira idade, para muitos transcorre dos 60 aos 80 anos, às vezes, menos frequentemente, até um pouco mais. Hoje, já não é totalmente surpreendente ver uma pessoa com quase 90 anos de idade bem de saúde e à frente de seus próprios negócios; são casos mais raros, mas existem. Também, embora seja muito doloroso para quem fica, ninguém se surpreenderá se alguém morrer de infarto ou AVC aos 59 anos. O nosso inigualável Silvio Santos fará 90 anos no próximo dia 12 de dezembro de 2020, ano duro de pandemia provocada pelo vírus chinês, e continua atirando aviãozinhos de 100 Reais às “colegas de trabalho”. Salvo, se neste momento, estiver proibido pela família de sair de casa, como é o meu caso, diga-se de passagem. Neste diapasão, na busca pela felicidade, a primeira etapa da terceira idade precisa corresponder aos anos de império do intelecto ativo, qualificado pelo domínio das paixões. Lembrando que estamos considerando seres humanos saudáveis e que tiveram a chance de desenvolver-se pelo estudo, pelo trabalho, ou pela vivência de experiências diversas e ricas em significado ético e prático.

Filosofemos: o conceito de felicidade, que para mim passa pela falta de preocupação nos assuntos realmente sérios, pelo céu azul e ensolarado e pela saúde compatível com a fase da vida, fica por conta do leitor, ao qual hipoteco plena liberdade para restringir ou ampliar. Por outro lado, não negocio o fato de que a primeira etapa da terceira idade – a partir dos 60 anos – é a nossa última chance e principal oportunidade de resgate do sentido edênico da vida, porque antes não estaríamos preparados para os desafios que, finalmente, devemos encarar se não quisermos desperdiçar a possibilidade de sermos realmente felizes ainda nesta existência; o que, asseguro-vos, é plenamente possível. E depois? Depois não haverá tempo. Esta é a nossa Idade de Ouro e não outra.

Nesta fase, alcançados os objetivos de qualificação pelo domínio das paixões, o prêmio é a imediata ascensão a períodos duradouros de felicidade; até que as fatalidades do mundo externo e da existência acabem com ela por algum tempo. Não está sob o nosso controle. – Hoje, 25 de novembro de 2020, a Argentina, todas as idades, chora a perda de uma lenda nacional. Continuemos. Está ao nosso alcance viver bem, sem nenhum peso na consciência, com o coração preocupado apenas em bater, com a nuca e os músculos que sobem pela cabeça e descem para o pescoço descontraídos. Excedendo a mediocridade com que sempre tratamos o nosso potencial, ao utilizarmos corretamente as nossas faculdades mentais, desde que estejamos livres dos pesos e das âncoras, que nos mantêm presos ao lamaçal da vida, a partir da primeira fase da terceira idade, atingiremos um patamar mental – estando o corpo minimamente saudável – absolutamente atraído e atraente para a felicidade. Novo prêmio não nos será negado! Seremos guindados a níveis mais elevados de consciência, que, concomitantemente, nos prepararão para a morte e para viver melhor este tempo, mais intensamente do ponto de vista da interpretação dos sentidos, do controle da emoção e da exploração dos atributos da racionalidade.

– E não esqueçamos, especialmente vós, intelectuais do nosso tempo, sobretudo os intelectuais de peso, porque, provavelmente, têm maior capacidade no pensar e no sentir e portanto no expressar, que a reboque dos prêmios maiores recebemos o galardão da capacidade intelectual de maior regozijo com os prazeres do intelecto. Por isso, lemos e escrevemos muito mais. Bem, não posso negar que Álvares de Azevedo aos 21 anos de idade, numa única noite na taverna, tenha vivenciado a apoteose do intelecto. Não nego e declaro uma ponta de inveja. Comprova-se a exceção pela regra.

É possível que a fórmula apresentada como meio para a qualificação do ser humano, o porfiado combate às paixões sectárias e inconsequentes, na conquista da felicidade, em meio ao caos da civilização – talvez devêssemos descer um degrau para não radicalizar a posição. . . o caos está a caminho – não funcione para o leitor, que, certamente, tem diante de si o seu próprio desafio. A pretensão textual cinge-se à defesa da primeira etapa da terceira idade como a fase da vida em que, pela qualificação pessoal e segundo a senda existencial de cada um, podemos ser felizes por períodos mais prolongados de tempo, usufruindo ainda, de modo mais intenso, da nossa capacidade intelectiva para saborear os bens imateriais produzidos pela humanidade – e os materiais, quando nos transmitam mensagens além da materialidade. Todos precisam tentar o domínio das paixões! Não basta uma decisão. Depende de um conjunto de decisões; uma sequência de decisões, diárias se necessário. As decisões únicas são muito pesadas para a nossa fraqueza. Definitivas ao extremo, mais atrapalham do que ajudam a instável natureza emocional humana. A decisão precisa ser permanentemente renovada! O primeiro passo é o caminhar na direção da simplificação das coisas com o autoperdão e o cancelamento dos compromissos que cultuam a acumulação de riquezas materiais. Aos 60 anos de idade, a etapa de acumulação capitalista encontra-se plenamente superada no caminho da felicidade; quem insistir nela, será infeliz, salvo se o objetivo for a felicidade dos outros, apadrinhar órfãos, socorrer as criancinhas adoentadas, custear creches, patrocinar estudantes e estudos etc. Nesta fase da vida, ganhar muito dinheiro para fazer filantropia está escusado, mas para ficar “rico” é burrice. Desamarradas as amarras, o barco inicia, então, a jornada em direção às bem-aventuranças, que podem ser pressentidas pela fisionomia do sujeito enquanto dorme, ou pela maneira como reage às circunstâncias problemáticas do dia a dia. Felicidade não é ausência de problemas. Tivéssemos crescido entre filósofos, provavelmente teríamos embarcado há muito tempo na barca da felicidade; talvez sequer tivéssemos desembarcado em algum momento. Nascidos na Argos simbólica em movimento, desconheceríamos o peso das âncoras. Mas não nascemos!

O autoperdão é um instrumento real e acessível! A oportunidade deve ser encarada como única, porque, no mínimo, como ensina a sabedoria mais antiga, será preciso esperar por sete anos para renová-la se a desperdiçarmos. Tempo indisponível, muitas vezes, mesmo na primeira fase da terceira idade. Então o autobenefício ao soltarem-se todas as amarras, levantando-se todas as âncoras construídas em antanho, imprescinde de um conjunto de decisões muito sérias, cujo compromisso não pode ser quebrado, sob pena de desqualificação do ser humano e do advento de períodos mais prolongados de infelicidade. Deixando passar a felicidade, poderás ter em mãos o livro “Eurico, O Presbítero”, de Alexandre Herculano, e, por desânimo, não iniciar a leitura, mesmo sendo velho apreciador da literatura gótica! Portanto, o autoperdão, um bônus fabuloso no caminho da felicidade, também tem o ônus de não perdoar a repetição dos mesmos erros, pois errare humanm est, perseverare autem diabolicum! O autoperdão não alcança os que não trabalham arduamente para obtê-lo.

Autoperdoados dos grilhões dos tempos de imaturidade e livres dos compromissos capitalistas, soltos para viver com simplicidade, focados no ar puro, no voo – principalmente no pouso – dos passarinhos, comendo pouco – nothing is perfect – e chorando de alegria mesmo diante de um simples beijo de novela, como cantaram os cantores, estaremos prontos para ser felizes. Precisamos, no entanto, encarar a autocirurgia da autoqualificação. O domínio das paixões!

Nos passos a seguir, muito além do voo dos passarinhos, que, infelizmente, nem todos podem apreciar, a força maior para não fraquejar é o amor pelas outras pessoas; naturalmente começando pela família, pelo cônjuge, pelos filhos e netos e bisnetos e tataranetos e por aqueles, que estando perto, convivam conosco . . . a vida é boa demais e o exercício da cortesia antecipa a condição que nos aguarda no próximo mundo! A morte não será ruim e não existe nenhuma prova de que seja o fim e, se as cartas do Dr. André forem verdadeiras, eventualmente, poderemos ver como as coisas estão por aqui. Portanto – anote – não existe autoperdão se o amor for pelo próprio ego. Aí não vale! Num plano factível, no nosso entorno familiar e social, quanto mais amarmos as pessoas, mais energia teremos para perseverar no acerto, na retidão, que faz o sono fluir e os sonhos terem início, meio e fim, produzindo felicidade.

Não é demais repetir que a primeira etapa da terceira idade é nossa última chance de burilar as asperezas da pessoa humana. Extirpar as ranhuras que se transformaram em pesos ao longo da vida; pesos que arrastamos como âncoras que nos prendem à materialidade, às fobias e aos preconceitos, gerando medo, dúvidas e toda a espécie de maus sentimentos, que atrasam a nossa preparação para o fim do mundo e não permitem uma vida feliz em nossa derradeira oportunidade. Assim, considerando que a sabedoria é condição essencial para a qualificação do ser humano, com a transformação das brutalidades ontológicas em polidez no sentir e no pensar; considerando que, em condições normais, a sabedoria realmente leva mais de meio século para se consolidar, isto quando se consolida, porque, infelizmente, muitos não a conhecerão, mesmo que vivam cem anos, passo a dizer, pela última vez, que a primeira etapa da terceira idade é o principal momento de elaboração das linhas formadoras para um feliz e intenso epílogo na geometria da vida. São muitas as linhas; estão entrecruzadas, correm paralelas ou fazem curvas acentuadas e de repente se encontram. Formam figuras diferentes para diferentes pessoas, mas têm a mesma natureza, a mesma função de acabamento e preparação para o inevitável. Por isso, este é um tempo que não se pode perder, mas ganhar. Este é o tempo para utilizarmos toda a nossa capacidade intelectual, toda a nossa força mental para, desacelerando o ímpeto, acelerar o desenvolvimento da serenidade.

A preparação que se impõem nesta fase, exige um coração bem formado; exige que depuremos o fel que se formou ao longo da vida com as ações imperfeitas e com as omissões covardes e egoísticas, que contabilizamos principalmente na juventude e na fase madura por assim dizer. Ao não extirparmos o fel dos erros, o bônus das boas ações será irrisório e não teremos um resultado dignificante quando tudo for pesado na Balança de Osíris, que, na verdade, é acionada a todo o instante. Para tal, para sermos felizes já, precisamos reencontrar a pureza perdida ao longo dos anos; precisamos ter a humildade em reconhecer no amor um instrumento poderoso de emulação à totalidade do ser, que, então, acalmará o próprio coração abrindo as portas para o conhecimento e para a aceitação dos limites temporais humanos. Reencontrar a beleza nas pessoas que convivem conosco, amando-as e fazendo com que saibam que são amadas; exercitar o amor por meio da delicadeza e do cuidado, por meio da atenciosidade, sabendo ouvir muito mais do que falar. Investir tempo e dinheiro em atividades filantrópicas que agradem ao Deus de Israel, o Grande Arquiteto do Universo.

A filantropia é um serviço que fazemos em nome de Deus (cada um com a sua crença); o amor basta para a vitória da felicidade, mas não é a única força ao nosso dispor. Deitemos a ampulheta na horizontal por um momento, e na sensação de termos parado o tempo acendamos a vela da cortesia para todas as pessoas, principalmente para as mais necessitadas. Entrementes, isso não funcionará sem a autocortesia, o respeito pelo ser humano que somos. O mais difícil é desamarrarmo-nos do fluxo dos que ainda percorrem as primeiras idades da existência. Contudo, precisamos nos afastar entregando as rédeas para os jovens percorrerem o caminho que a eles está reservado, enquanto nós devemos seguir a nossa própria trilha. Aos jovens seremos para sempre como o oráculo, o mais modesto dos oráculos, e estaremos de braços abertos para eles quando vierem até nós nos consultar.

Depois da filantropia, do amor e da cortesia, neste difícil desafio, que é o domínio das paixões, uma outra e derradeira superação é especialmente árdua e necessária: perdoar a ingratidão. O mal que sofremos de desconhecidos ou daqueles que nunca se esconderam sob o manto da amizade é um mal menor. Passa sozinho. Por isso, nesta seara, ao superarmos o fel amargo dos que nos enganaram sob a égide da confiança, colheremos os melhores frutos na árvore da felicidade e no preparo para o outro mundo. É uma lei maior que vige no universo e além dele. A superação do fel amargo das decepções, o amor, a cortesia e a ação filantrópica no serviço de Deus são instrumentos que estão ao nosso dispor. Devemos utilizá-los a nosso favor já no início na primeira fase da terceira idade, não há tempo a perder, a fim de que vivamos ainda alguns anos em estado de felicidade, enxergando na vida a beleza de viver, quando dormimos tranquilos, sem dor, sem sobressaltos, sem apneia, sem pesadelos, embora os sonhos adquiram status de quase realidade; e mesmo na morte, consigamos visualizar uma gama enorme de possibilidades.

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