“O homem que sabe” (Marcelo Lufiego)

Aos Leitores da AJL

 

Marcelo Lufiego

 

Prezados leitores, bem-vindos à Academia Joinvilense de Letras. Convido-vos para o salutar exercício da leitura. O texto que vos proponho foi extraído de um maior, ficcional, intitulado “A Grande Casa dos Escritores”, dos registros do “113º. Encontro Anual de Leitura”, no qual foram lidos textos de sete escritores membros da “Casa”. O texto abaixo é o início da leitura realizada pelo quarto leitor daquele “Encontro”. Bom proveito!  

QUARTO LEITOR 

O Homem Que Sabe

O estalo da inteligência ocorreu há poucos milênios; algo em torno de 40.000 anos. Eis que surge a inteligência consciente ou a ciência da inteligência. Stanley Kubrick, em sua alegoria cinematográfica, opta pela reação humana em seu viés animal; nós preferimos esperar que a primeira percepção inteligente de nossos remotos antepassados tenha sido pressentir a presença do Grande Arquiteto do Universo, que é Deus, ou seja, intuir a presença de um Criador incriado, fonte primeira de todas as coisas. Falo do estalo da inteligência e não de sua formação. O desenvolvimento da inteligência é um fenômeno que resulta de um caprichoso processo ao longo do qual o progresso intelectual do homem, na mesma medida em que ia se desenvolvendo, inclusive pelo aumento do volume cerebral, naturalmente, também se exteriorizava em seu comportamento. Chegamos até aqui e o placar continua aberto, indefinido. Sim, porque os últimos santos de todos os dias são sucedidos pelos primeiros demônios de todas as noites, numa dicotomia maniqueísta realmente assustadora e que parece estar profundamente arraigada nos compartimentos internos do obscuro ser com quem coabitamos no corpo. O outro eu, no mais das vezes, bem escondido, sob várias camadas de hipocrisia e dissimulação. E traição, para dizer toda a verdade, logo de uma vez.

– Foram poucos, mas alguns se sentiram desconfortáveis por um momento; desconforto que não teve tempo de se estabelecer, posto que a leitura continuou. Contudo, a voz do quarto leitor se mostrou afetada pela rápida consciência de que penetrara, sem querer e movido pelo entusiasmo de quem realmente se empolga com a literatura, e não tem o que temer, num território, que teria sido preferível evitar, porque as práticas humanas, sobretudo aquelas que vêm de um passado primitivo, não se resolvem por este meio. Assim a continuidade da leitura atuou como antídoto e a voz do mestre moderno voltou ao normal, como segue:

Todavia, o homem de antanho, consciente de si mesmo, enquanto indivíduo aparelhado para dominar o mundo em sua volta, e capaz de intuir a existência de um Princípio Criador, adquire traços de divindade, quando experimenta o estalo da inteligência e se torna o “homem que sabe”. Este prodígio da evolução ocorre nas últimas décadas de milênios do Paleolítico, tanto que, logo depois, cerca de 30 a 20 mil anos, então sedentário e habitando em grandes grupos sociais ao longo de rios e lagoas, o homem realiza a Revolução Agrícola, que rapidamente, em menos de 10 mil anos, o coloca na Lua[1]. Caros leitores, o cultivo de cereais nos levou ao espaço sideral próximo; até onde nos levará a internet? Amanhã teremos um exército de robôs trabalhando para nós e a terceira idade se iniciará aos noventa anos. Hoje, muitos já trabalham. Poderemos, então, nos dedicar a vivenciar a arte, em nosso psicodrama ritualístico, ascendendo definitivamente ao status de Homo sapiens simbolicus e, a partir daí, não mais retornar às atividades profanas. Viver para sempre: do camarim onde nos paramentamos ao palco onde praticamos os nossos rituais, sob a égide do bem e, embora de portas e janelas fechadas, com a Luz que emana do Princípio Criador, deem vocês, nobres leitores, o nome que quiserem dar! Eu o chamo de Deus de Israel quando agradeço e de Jesus Cristo, a quem dedico o mais profundo amor fraterno, nos extremos lances da vida, quando não encontro saída. Todavia, é comum ouvir os homens chamá-lo de outros nomes, o que não é nenhum problema, pois é perceptível que se trata do mesmo Criador incriado, mudando só o nome. Deus não é revelado pelas doutrinas religiosas. Isso só tem levado à guerra! Deus se revela no coração de cada um, a partir do entendimento intelectual e da capacidade humana de sentir. Assim, o “bom pastor” é aquele que auxilia o homem em seu desenvolvimento pessoal, porque, desenvolvendo-se, a comunicação com a Divindade Criadora, que é uma realidade além da vontade do homem, se revela intuitivamente e, maior o nível de consciência, intelectualmente.

Agora pretendemos ultrapassar o Planeta Marte, indo muito além dos confins do Sistema Solar. Nada obstante nossas pretensões, que demonstram que a visão ufanista de ontem é a realidade do amanhã, no mundo do macro, onde construímos a Sociedade Humana e no mundo do ínfimo, onde residem nossa inteligência, nossa consciência, nossa alma e nosso espírito, ainda temos, nestes dois mundos, repito, uma série de problemas a resolver. Como precisamos estar em equilíbrio, com o desenvolvimento concomitante do ínfimo e do imenso, devemos percorrer, e conhecer, os caminhos nas duas direções. De um lado, mergulhando profundamente no próprio coração, para conhecer os sentimentos de que somos feitos. De outro, arregaçando as mangas para o trabalho no mundo profano, onde operamos obras concretas. Não adianta fazer projetos interplanetários, se os caminhos internos, que levam ao progresso moral, se encontrarem nebulosos, obscuros e difíceis de ser percorridos. Neste diapasão, quando estiver difícil caminhar nos meandros da cidade com a mente aberta, a cabeça erguida e os olhos atentos, procuremos a avenida mais larga, mais senhora de sua urbanidade, com grandes canteiros centrais, bem iluminados, de preferência gramados, com movimento que nos anime a encontrar a porta que aguarda para ser aberta. Evitemos os becos escuros, as ruas sem saída, as ladeiras. Noutro diapasão, se não estivermos num meio-ambiente urbano, no campo ou na floresta, procuremos as trilhas mais limpas e retilíneas, com menos declives, evitando as pirambeiras, os beirais, os precipícios, as grotas profundas, aquelas onde as serpentes se escondem e onde habitam certas feras plenamente capazes de nos devorar, uma vez que conhecem o âmago de nossa vulnerabilidade. Andemos atentos diante dos faróis dos carros. Sejamos mais expertos do que a ofuscante boitatá urbana, que serpenteia em nossa volta, como se estivesse permanentemente em transe, e nas veredas selváticas, andemos aos pares, no mínimo, para evitar o bote da suçuarana.

A inteligência é a chave que abre a consciência. A sabedoria é o caminho que leva à alma e a iluminação é necessária para se chegar ao espírito. Considerando que a inteligência consciente não tem mais do que 50 mil anos, considerando também o evidente progresso humano em ritmo geométrico, espera-se que nos próximos milênios conheçamos a alma e o espírito com muito mais propriedade, indo muito além das concepções eivadas de conceitos religiosos, que imperam nesta época ainda um tanto “primitiva” (do ponto de vista da história espiritual) em que vivemos! Entrementes, o processo continua e o show permanece em cartaz. De minha parte, um tanto desconfiado, pois sempre votei em Aristóteles, segui os conselhos de Platão e trabalhei, ajudei a coordenar o trabalho e, agora penso, ou melhor, escrevo. Sempre esperançoso em vislumbrar o inusitado, sempre ligado nas possibilidades e descobrindo outros portais para novas e serenas emoções. Como é de conhecimento de todos, às vezes, as emoções fazem pulsar as têmporas e a temperatura sobe acabando com a serenidade. Bosques e sonhos ficam cheios de ninfas e sátiros, leões e cordeiros, Sansões e Dalilas, numa disputa pelos cabelos, até que as Colunas do Templo soçobrem soterrando tudo . . .

– O quarto leitor fez uma rápida pausa, respirou fundo, e continuou a leitura . . .

Marcelo Lufiego

[1] A Corrida Espacial foi um importante fator de disputa entre as superpotências, EUA e URSS, durante o período de Guerra Fria. A Missão Apollo foi a resposta norte-americana ao sucesso inicial da extinta União Soviética, com a Missão Vostok, a primeira viagem espacial tripulada da História, que levou Yuri Gagarin ao espaço em 12 de abril de 1961. Alguns anos depois a NASA cumpria a promessa de John Kennedy e em 20 de julho de 1969, os astronautas Armstrong, Aldrin e Collins, fizeram a primeira alunizagem da História. Armstrong entra para a História como o primeiro homem a pisar na Lua. Será citado para sempre, enquanto houver uma História da Humanidade.

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