A criação do velho vento vagabundo

O Senhor encerrou as suas tarefas, no fim da tarde do sexto dia e retornou a sua Eterna Oficina. À entrada sacudiu as alpercatas, sujas de poeira das estrelas. Olhou para trás, examinou toda a sua Obra e viu que era boa. Foram seis dias de trabalho duro para tirar do caos aquele paraíso. Sorriu satisfeito e entrou. O sétimo seria para descanso e santificado por isso.

Ganhou um susto.

A Eterna Oficina estava revirada, como se alguém houvera ido ali para mexer no resto do material utilizado para fazer o Universo.

Percorreu com os olhos cada canto, mal adivinhando quem fizera aquilo.

Lá estava o arteiro: Seu próprio filho, Jesus.

– Filho, que estás inventando?

– Pai, não estou inventando, mas tentando copiar o Teu. Uma miniatura. Vê que legal! Só com as sobras do Teu Universo.

Estava ali um menino louro de cabelos encaracolados, que seria personagem de grandes mistérios, de profundas e demoradas pesquisas, de grandes paixões e de grande poder. Um divino mestre. Arquitetando um minimundo.

Pediu explicações e ficou observando.

O Menino as foi dando, ao mesmo tempo em que modelava o que pretendia: um minúsculo continente com praias maravilhosas, morros de suave subida, mata variada, com árvores frutíferas e ornamentais, lagoas, dunas, rios curtos, cachoeiras baixas.

Onde pretendes colocá-lo? No Meu?

Dentro do mar, próximo ao continente. Ali! – apontou com o dedo rechonchudinho para o local.

O Senhor ficou contente com a decisão do Menino. Acariciou–o em gesto de aprovação a cabeça, coroada ainda de cabelos encaracolados, a qual, anos depois, seria coroada de grosseiros e dolorosos espinhos.

Logo em seguida surgiram alguns amiguinhos, que, sempre, vinham fazer–lhe companhia e brincar com ele. Mostrou–lhes o seu projeto e os deixou fascinados e ansiosos para o levar ao mar.

Vamos – disse Cadu, o mais apressado sempre com as brincadeiras.

– Calma – ponderou Guilherme, com aquela sua peculiar calma filosófica adquirida – temos de arrematar alguma coisa, dar-lhe mais estilo. Precisa de acabamento de primeira. Ficou muito lindo, mas temos de garibar. Aproveitaremos a Ana Carolina, a Luizinha e a Camila que têm bom gosto e amam apaixonadamente decoração. Depois, sim…

– Mas isto pode ser feito lá mesmo, onde vai ficar.

– Vocês dois tem razão. Vamos colocar e depois dar os retoques finais. Quando as três podem vir

Depois de estar tudo dentro d´água, no lugar definitivo, carregaram a miniatura para dentro do mar, próximo ao continente e a deixaram livre, permitindo que as águas a rodeassem. Logo se formaram, em todo o redor, enseadas, baias, ilhotas, golfinhos, penhascos, escarpas, grutas e manguezais. E mais de 40 praias, todas diferentes e lindíssimas.

– Vamos ancorá-la, senão pode ir embora como aquela do Saramago – acautelou Cadu, cuja estatística de leitura espantava a todos.

– Lançar âncora e todas as amarras, marinheiros! – ordenou o primo alemãozinho Phillip, preocupado com a segurança, como todo o bom alemão.

– Virou uma ilha! – exclamou Cadu aos pulos, cheio de alegria e entusiasmo. E com duas baias enormes. Uma do sul, outra do norte. Joia!

– E que linda dentro do mar. Caiu bem. Acho que, até, o Teu Pai vai ficar com uma pontinha de inveja. Pelo menos, um pouco de ciúmes – filosofou Guilherme.

Arremataram o que poderiam arrematar, esperando que as meninas viessem dar-lhe aquele toque feminino de charme.

Elas vão saber fazer. Um tchan. É só que falta.

Já pensaste em quem vai morar aqui?

O Pai já bolou: Manézinhos!

Manézinhos? Perguntaram-se e se entreolharam surpresos.

Sim, segundo li no memorial descritivo do projeto, será o Homo Insulae. Vai ser um tipo. Diferente. Original.

Bom, já perdemos muito tempo, vamos brincar, um pouco, então. Que tal ir tomar sorvete na Lua? – sugeriu o Menino

Enquanto subiam ao espaço, segurando–se nas mãos de Jesus e se afastando da Terra, olhavam para trás e para baixo.

– Olhem, a Terra está azul! – gritou Guilherme, maravilhado admirando-a.

A lua era sempre uma tentação, feita de creme de baunilha, chocolate e coco ralado. E daquele tamanhão. Ficavam voando e sobrevoando-a, fartando-se. Depois iam bronzear-se perto do Sol. Ou tomar banho de chuva das nuvens aos últimos raios do sol poente. De que tanto o primo alemãozinho Phillip gostava. Quando a noite começava, colhiam punhados de estrelas maduras, brincando com elas de vagalumes, acendendo-as e as apagando.

Ao desceram, já encontraram as meninas examinando a Ilha e fazendo projetos de retoques para ela.

– Faltam verdes: couve, rúcula, alface, espinafre, alfavaca, orégano, manjericão, cebolinha, salsa – observou Camila. Como vamos temperar os nossos cozinhadinhos? Precisamos de uma boa leira.

– Acho que nas árvores deveria haver orquídeas. Dão aquele diferencial – lecionou Carolina, designer de moda, formada em Milão e Turim.

– Tô mais interessada é nos bichinhos – cachorrinhos, gatinhos, galinhas, marrequinhos, cisnes, garças, gaivotas, siris e caranguejos – explicou Luizinha.  E coelhinhos. Sem coelhinho, como vai haver Páscoa?

– O Pai tem tudo no almoxarifado da Oficina.

Tão distraídos, não viram por perto, em longas conversas, Lúcifer e Judas. Que estariam tramando? Logo saberiam.

Os dois, Judas e Lúcifer, em conluio, foram às nuvens e, capciosamente, as convidaram para virem apreciar o minimundo do Menino.  E elas vieram e se encantaram com a beleza daquele pequeno universo. Mas eram tantas, que se precisavam acotovelar. E aquele acotovelamento, aquele atrito, carregado de eletricidade, começou a provocar faíscas, relâmpagos, raios, trovões e, final e infelizmente, chuva. Chuva e mais chuva. Um dilúvio!

 

Sobre a ilha, encharcando-a, fazendo transbordar as lagoas serenas e os curtos rios, engrossar as delicadas cachoeiras, desbarrancar os suaves morros, levando as árvores, sujando as maravilhosas praias. Uma destruição iminente e total.

Os meninos, diante da tragédia, correram à Eterna Oficina, contando tudo ao Criador.

– Pai, faça alguma coisa, salve o nosso minimundo – implorou o Menino.

O Senhor, calmamente, tomou um enorme saco de plástico, meio que fechou a sua boca, e soprou, fortemente, para dentro, esvaziando o poderoso pulmão.

– Vão lá e, colocando a boca dele contra as nuvens, em direção ao norte, sentem em cima.

Voaram agarrados à mão do Menino. E fizeram o ensinado pelo Criador.

De dentro saiu um vento forte e espalhou as nuvens por todo o firmamento, levando–as para o norte.

Stelinha, a mais nova, apontou o dedinho gorduchinho para o horizonte.

– Olhem aquele arco colorido! Tem sete cores!

Todas as vezes que as nuvens se acumulam sobre a Ilha, ameaçando-a, de novo o Velho Vento Vagabundo do Sul as espalha e faz surgir o Sol, protegendo a própria garganta com um cachecol de nuvens, e o Arco realçando a sua inestimável beleza com matizes de ouro sobre azul.

 

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