A dedicatória (Simone)

A dedicatória

Sempre desconfiei que as dedicatórias são particulares demais para seguir com os livros que mudam de dono. Tive certeza disso um dia desses, quando peguei emprestado um dos três exemplares disponíveis de “As horas”, de Michael Cunningham, na Biblioteca Rolf Colin. Não escolhi o volume ao acaso. Optei pelo único que tinha uma dedicatória porque esta me atraiu tanto quanto o teor da obra.

O livro “As horas”, reconhecido com uma das maiores premiações mundiais da literatura (o Pullitzer, em 1999), conta uma parte da história da escritora Virginia Woolf e de outras duas personagens fictícias que buscam a normalidade num cenário cotidiano de loucura e de morte.

Já a dedicatória dizia: “À Maitê – A mulher que conseguiu estabelecer a era A.M. e D.M. em minha vida, fazendo com que as horas da minha existência fossem mais felizes. ”

Todo fim de noite, quando pegava “As Horas” na cabeceira, não podia deixar de pensar sobre o romance que existia (ou existiu) por trás da profunda declaração de amor que havia sido expressa naquela frase. Talvez ela até tenha me impactado mais porque nunca me dei muito bem com a arte das dedicatórias. O fato é que a curiosidade avançou também sobre o responsável por doar aquele livro à biblioteca de Joinville.

Teria sido a própria Maitê? Afinal, um sábio poeta, cujo nome já não recordo, disse, certa vez, que as dedicatórias não deveriam ser feitas sem a data. Quem sabe as horas de Maitê já fossem outras que não justificassem mais a permanência do livro entre seus pertences?

Ou talvez Maitê não estivesse mais conosco, e a chegada do livro à biblioteca tenha sido obra de herdeiros que, depois de findas suas horas, quisessem prolongar a existência de uma ascendente querida dando um destino zeloso aos seus pertences (e esquecendo, por descuido, de apagar as digitais alheias).

Se a leitura do livro foi um alento para o espírito, a dedicatória despertou a curiosidade e me fez lembrar de uma tese segundo a qual toda vida, quando bem contada, rende um livro. Pena que histórias como a da Maitê não encontrem um romancista a postos para perpetuá-la.

 

Simone Gehrke

 

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