A negritude da professora branca (Postai de Souza)

A negritude da professora branca

 

À primeira vista, não há nenhuma relação entre a americana Rachel Dolezal e a joinvilense Adenise Costa Reis. Esta última trata-se da professora que foi achincalhada nos últimos dias por ter se pintado de negra, numa festa junina escolar, a fim de interpretar uma personagem do folclore brasileiro. A primeira, por sua vez, comandava a maior entidade americana de defesa dos direitos civis dos negros (NAACP, na sigla em inglês).

Contudo, a história de ambas converge justamente na questão racial. Ou cultural. Ambas são brancas de nascença, mas incorporaram a negritude em seus corpos. Rachel Dolezal era branca, de olhos azuis e cabelo liso, tendo feito bronzeamento de pele e encaracolado os cabelos. Tornou-se professora universitária de estudos africanos, após imergir na cultura negra ao ser premiada pela adoção de quatro irmãos negros. Aliás, casou-se com um negro e tem um filho mestiço. Sua “farsa” foi descoberta e levou-a a renunciar ao comando da NAACP, apesar de dizer “sentir-se” negra.

Nossa professora joinvilense, ao contrário, nunca se disse negra e nem fez qualquer tratamento de bronzeamento. Quis apenas incorporar um personagem folclórico numa festa junina na escola em que leciona, para seus alunos e os pais destes, ato que mereceria aplausos de pé num país de professores cada vez mais desmotivados. Chegando em casa, tirou a maquiagem negra de seu rosto, sua peruca encaracolada e suas vestimentas, voltando a ser Adenise Costa Reis. De cor branca.

Talvez aí cessem as histórias no que se convergem e inicia-se o distanciamento, cada qual para lado oposto. Uma incorporou o “personagem” assumindo uma personificação que não lhe pertencia, num ato reprovável e que lhe custou seu importante cargo. A outra, após sua interpretação, tratou de voltar a si, diferenciando o ser humano do personagem.

Tudo isso leva a questão racial, que tenta-se classificar como biológica mas que, ao final, nada mais é que cultural. Gilberto Freyre já relatava a mestiçagem brasileira sendo muito mais cultural do que racial.

Nem se atreva quem quer que seja a alegar a interpretação de “blackface” pela professora brasileira: além de não conhecer a história americana, erram num evidente detalhe, que é justamente a ausência de interpretação de um personagem com problemas mentais, tonta, caracterizada como “maluca”. Aí sim estaria caracterizado o movimento estapafúrdio criado e solenemente expurgado, mas nem de longe diga-se que Adenise Costa Reis fez ou teve a mínima intenção de fazê-lo. Interpretou um personagem previsto em nosso folclore, apenas isso.

Quem quer ser negro, branco, amarelo ou pardo, que o seja. O que define sua “raça” é como a pessoa se sente, e não uma imposição estatal. Na Argentina, desde 2010 o gênero não diz mais respeito à questão biológica, e sim ao sentimento: se uma mulher, aparentando ser mulher ou homem, sente-se homem, ela simplesmente muda seus documentos. Simples assim. Não há qualquer necessidade de fazer-se perícia, exame médico, processo judicial, etc. Para os argentinos, o que importa é como a pessoa se sente, e não o quê as pessoas veem – um homem ou uma mulher.

Analogicamente a questão de gênero, a raça está na mesma condição: muito mais importante que uma classificação pré-definida por quem quer que seja, o sentimento de suas origens deve sobrepor-se à qualquer imposição legal.

Para ficar em poucos exemplos, Saci-Pererê e Tia Nastácia, do Sítio do Picapau Amarelo, são negros, bem como o personagem principal da lenda do Negrinho do Pastoreiro. Não esqueçamos, ainda, de um herói nacional folclórico, Macunaíma, criado por Mário de Andrade. Este “herói sem caráter” nasceu negro e ficou branco ao banhar-se numa água encantada. Mas Mário de Andrade não quis dizer que ser negro é pior ou melhor que ser branco, pois esta foi apenas uma passagem de um personagem dentro de um contexto, que não pode ser visualizada num ato isolado. Assim como a personagem interpretada maestralmente por Adenise Costa Reis.

 

Postai de Souza

 

 

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