A noite mais longa 

Tenho à frente a noite mais longa e fria, e me aplico em desalojar a criança dentro de mim. Bem nutrida e confortavelmente protegida nos meus abrigos subterrâneos, ela quer ficar para sempre nesse conforto que é o alheamento da individualidade. Estou a desabrigá-la diante da noite profunda. Lanço chamas, gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral para desentocar minha criança que dorme em seu berço de bem-estar. Quero que saia de mãos vazias para o alto e o peito aberto aos punhos do vento, os olhos adejantes sobre a escuridão imprecisa, os pulmões sôfregos de inalar o inesperável. Quero que use os seus caninos para rasgar o couro da brisa, até sentir o odor de pólvora que povoa o ar de dor no mundo em desagregação.
Acendi grandes fogueiras e queimei meus navios diante da noite desmedida e densa e fria. Com os pés descalços, sem mão de apoio nem palavra de incentivo, a criança de mim terá de andar sobre as brasas, munida apenas de uma confiança que se alimenta da fé em si. O braseiro estala num ardor confrangido, mas não há rancor ou ressentimentos, os nervos expostos dos lenhos submetidos ao fogo devolvem as cinzas dos passos. Uma dor aguda na terceira costela faz arfar a camada fina de umidade que envolve o ar. Esse látego no peito é o ninho do medo que lateja.
Acomodado ao fluir das veredas que tangem travessias de um ao outro lado, a criança agora terá de buscar a terceira margem, sem repulsa ou apego pela forma com que se apresenta a travessia. Na cabeceira dessa noite imensa, a Lua em decúbito sopra uma flauta de silêncio. Com os pés e o corpo nus, surge a silhueta de um perfil infante emparedado no infinito. A criança terá de atravessar o fogo sem a bagagem do tempo, pegar pela mão a noite mais longa e continuar andando. Passo a passo, porta a faísca da Aurora à queima roupa, avança mesmo que haja dúvida, espanto e medo. O mesmo olhar rouco que inquere o quanto dói, diz que é preciso ir. Vai, pois, para que na hora fatal, possa sentir o gosto que tem um teto de estrelas na boca da noite.

Crônica publicada em A Notícia, 20/06/2019

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