A visita de Diocleciano (Lufiego)

A VISITA DE DIOCLECIANO

(Texto de Marcelo Lufiego)

I – Os Sancti Quatour Coronati

No Regius, foi o Rei Athelstan quem ditou aos construtores a Lenda dos Quatro Coroados, mártires que simbolizam a fé e a fidelidade. Patronos da maçonaria germânica! Foi igualmente Athelstan quem fez a comunicação da Arte dos Santos Coroados aos construtores da posteridade, nossos antepassados medievais operativos. Com isso o Ofício seria mais antigo na Inglaterra. Todavia, tudo indica que a Lenda se originou no continente europeu, em terras romanas e germânicas, para depois chegar à Grã-Bretanha. A tradição, no entanto, é unívoca ao associar a Assembleia de York ao Reinado de Athelstan, realizada no início do século X. Os que leem estas linhas provavelmente poderão comemorar o milésimo aniversário deste grande evento, lendário ou não, em 2026. A Assembleia de York é um marco e uma referência para a maçonaria. A análise do conteúdo das Antigas Leis e a tradição oral indicam que os Estatutos produzidos sob a Carta Constitutiva obtida por Edwin, Príncipe da Casa Real, conhecidos por Constituições de York, ou Carta de York, além de regerem à maçonaria em sua época, serviram de base para a produção de todos os demais Old Charges, inclusive as Constituições Góticas. Para o autor ou autores do Regius, Os Quatro Coroados “eram os melhores maçons da Terra”.

Os Sancti Quatuor Coronati, na verdade eram nove mártires, divididos em dois grupos: o primeiro composto por quatro e o segundo por cinco cristãos, todos maçons ao modo antigo. Alguns pesquisadores, com autoridade no assunto, colocam em dúvida a historicidade dos quatro primeiros, dentre eles um especialista, Hippolyte Delehaye, jesuíta, dedicado à crítica da literatura hagiográfica, que afirma serem os quatro primeiros uma mera invencionice, que classifica como “l’opprobre de l’hagiographie”. Para os maçons, é como se existissem, pois o que conta é o simbolismo da alegoria. O insigne escritor francês Jean Ferré, em sua História da Franco-Maçonaria, ao decompor as partes do Poema Regius, destaca a Lenda dos Quatro Coroados, conforme consta na obra “A Lenda Dourada”.  Aliás, ao chamá-los, como chamei, de Quatro Mártires Coroados, cometemos uma redundância, pois são denominados “Coroados”[1], porque foram martirizados. E de forma grotescamente cruel. Na virada do século III para o século IV, paganismo e cristianismo coexistiam em franca oposição. Os cristãos munidos do “poder da fé” e os pagãos, pelo menos até Constantino, e mais seguramente até Teodósio[2], com o “imperium”, viveram dias difíceis para uns e de crueldade para outros. A alegoria representada pelos Quatro Coroados, vai muito além dos efeitos que produz no âmbito da Ciência Simbólica ou do espaço que ocupa na História da Maçonaria. Ainda que exista ou não uma base fática, o mito narra uma mudança de Era: da Pagã para a Cristã, do Império para o feudalismo, da cidade para o campo, da civilização para uma época de trevas e obscurantismo, dos monumentos de pedra para a Idade da Madeira. Cinco séculos de muito sofrimento para as populações europeias, inclusive para as elites, devido às condições sanitárias e à insegurança pública generalizada. O filho do faraó não ficou imune à praga; o que dizer dos filhos de simples Senhores Feudais, condes, duques e pequenos reis? Morriam todos, tanto quanto os servos da gleba, mesmo que não fossem os primeiros a adoecer.

 

II – Uma Versão da Lenda

Lampadius dormia. O sono pesado, num lugar imundo. Todo o dinheiro era perdido no antigo jogo de dados[3]. Algumas vizinhas diziam que sua mulher era uma bruxa e o cheiro das carnes excêntricas que cozinhava, olhos de boi, pererecas, lagartos e asas de morcego, exalado de uma grande panela sobre o fogão a lenha, tornava o ambiente nauseabundo. Quase não recebiam visitas, a não ser raras vezes, quando apareciam pessoas estranhas, com o rosto sempre encoberto, que, ao contrário de caminharem normalmente, se esquivavam pelos becos e ruas. Ao acordar, não sentia nenhum prazer em ver aquele rosto feminino ao seu lado. A feiticeira roncava mais do que o marido! Na maioria das vezes, sem tomar banho, vestia sua toga de Tribuno e ia para o espaço público fazer política ou era chamado pelos prepostos de César para cumprir ordens. E as cumpria. Aquele seria um dia diferente, pois o Imperador estava na Província e iria recebê-lo em pessoa. Algo muito incomum, que excitava o coração do Tribuno, repleto de maus sentimentos. Sabedor, por antecipação, de que o assunto versaria sobre os Mestres Escultores, renomados maçons, pelos quais o Imperador nutria imensa simpatia, admirador que era de suas esculturas em pedra, e ciente da recusa daqueles Mestres em esculpir o sagrado Esculápio, o que encurralava Diocleciano, deixando-o praticamente sem opção, caminhava apressado para encontrar o seu soberano. Longe de Roma, Diocleciano visitava a Província da Panônia, atual Hungria, onde a questão dos Mestres Maçons representou um grande aborrecimento. Agiu com mão de ferro, impiedoso, mas com o coração pesado por mandar executar Mestres Talhadores de Pedra tão talentosos, autores de esculturas pétreas magníficas, pela simples bobagem de teimarem na crença absurda em um único Deus, quando existiam tantos deuses à disposição dos homens. Os cristãos eram realmente subversivos e perigosíssimos aliciadores de mentes, pensou o Imperador ao determinar a execução da sentença.

O Imperador, cercado de pajens, aproveitava as delícias do pomar real, guardado por um centurião, alguns decuriões e vários legionários, estratégica e ostensivamente postados para impedir qualquer aproximação. Acompanhado de seus Conselheiros mais próximos, que incitavam o quanto podiam a ira imperial contra os renitentes maçons, Diocleciano saboreava frutas bagas deliciosas. Lampadius, com um ar submisso e falsa máscara de admirador do rei, escoltado por dois soldados, se apresentou ao chefe. Óh Divino Diocleciano, Imperador de Roma, eis-me aqui meu soberano, pronto para acatar vossas ordens, disse o Tribuno, fazendo a reverência de praxe. E ali ficou em pé, paralisado, esperando que a Augusta figura se manifestasse. Diocleciano, terminou de comer uma suculenta ameixa e, sem olhar, para o assustadiço Tribuno, ordenou: Ide ao encontro dos maçons escultores, fazei-os recobrar o bom senso, que relevarei sua falta. Os Conselheiros destacaram uníssonos a magnanimidade do Rei, seu coração real inigualável em capacidade de perdoar tão impertinentes servidores. Como um raio, cortando o caminho, Lampadius acompanhado de soldados, foi à Loja onde trabalhavam os Escultores. Encontrou a todos e, reunindo-os em separado, apelou para que atendessem o decreto imperial e fizessem a escultura do deus Esculápio. Como não obteve resposta, ameaço-os com voz de prisão, com o que os maçons responderam que estavam prontos para morrer a abjurar a Deus. Foram todos presos e levados para a masmorra. Lampadius sabia que o Imperador ficaria extremamente aborrecido se tivesse que punir aos escultores. Tentou, inicialmente, pelo convencimento, depois pela ameaça, e os maçons em oração se mantiveram firmes em seu propósito de morrer se preciso fosse. Quanto mais as ameaças aumentavam, maior era a certeza dos maçons em estarem caminhando para os braços do Cristo Salvador. Enquanto isso, os Conselheiros incitavam o Rei. Que demora, Majestade, quando será cumprida a vontade do divino César, perguntavam em voz alta, fazendo cara de sofrimento. Lampadius, temendo que a ira de Diocleciano se voltassem também contra ele, enraivecido, diante da recusa dos escultores, mandou açoitá-los. Nada obteve. Naquele mesmo momento, como que atingido por um raio, Lampadius se contorceu de dor e desespero, suas roupas pegaram fogo e o Tribuno foi consumido a vista de todos. Recebida a notícia, a bruxa, mulher do malsinado Tribuno, correu aos Conselheiros do Rei, clamando por justiça e acusando os inocentes maçons de feitiçaria, na clássica estratégia de acusar aos outros daquilo em que somos nós os verdadeiros culpados, aliás, historicamente e ainda hoje muito utilizada, sobretudo na política e pelos corruptos.

Ao ouvir as queixas da família do Tribuno Lampadius, que com a morte perdeu todas as suas imperfeições e defeitos, Diocleciano, enfurecido e incitado pelos Conselheiros, ordenou que os cinco escultores, Cláudio, Sinfrônio, Nicóstrato, Castório e Simplício fossem encerrados vivos em caixões de chumbo e atirados ao rio. E assim foi feito! De volta à Roma, o Imperador mandou construir um Templo em honra a Esculápio, o que também foi feito. Dois anos mais tarde, terminada a obra, ordenou que todos os soldados oferecessem incensos ao deus pagão, sendo que quatro legionários se recusaram e também foram condenados à morte, por golpes de plumbata. Conta a tradição, que o Bispo Romano Melchiades, mandou que a memória dos cinco fosse honrada em nome dos quatro, e todos passaram a ser denominados Os Quatro Mártires ou Quatro Santos Coroados! Patronos da maçonaria teutônica.

[1] A Coroa de Cristo, símbolo do martírio dos homens de Deus e, no caso de Cristo, do próprio Filho de Deus!

[2] Imperadores Romanos. Constantino, com o Édito de Milão, ano 313, deu liberdade de culto aos cristãos. Teodósio, em 390, com o Édito de Tessalônica, radicalizou contra o paganismo e adotou o cristianismo como religião oficial do decadente Império Romano. 

[3] Antigo jogo de dados romano, relato de Tácito (55- 120d.C.) há cerca de 250 anos.

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