Ac. Apolinário leu “Em berço esplêndido”, de Meira Penna

Em Berço Esplêndido

 

Apolinário Ternes

 

De minhas ‘antiguidades’, sempre disponíveis em minhas prateleiras de livros, saquei outro dia a obra maravilhosa do –ex-embaixador José Osvaldo de Meira Penna –Topbooks, 1999 – em segunda edição, revista e aumentada, cujo título abre o presente comentário.

Meira Penna foi nome de respeito na diplomacia brasileira há uns 30/40 anos. Liberal, intelectual sofisticado, ajudou a criar a fama da diplomacia brasileira de grandes nomes, depois esvaziada quase por completo nos anos frios do regime militar e nos anos desvairados da redemocratização e, enfim, completamente destroçada pela diplomacia de viés ideológico dos governos petistas. O que deixa o Brasil como símbolo de atraso e corrupção vividos amargamente durante os anos petistas, já no século 21.

Reunindo ensaios de psicologia coletiva brasileira publicados em dois livros anteriores, Em Berço Esplêndido é vigoroso ensaio sobre os fundamentos da brasilidade nacional. Com erudição, fazendo referências permanentes aos mais sérios intérpretes da nacionalidade, Meira Penna faz uma radiografia de fôlego sobre nossas virtudes e nossos defeitos, mostrando com entusiasmo e brilhantismo como, quando e porque somos o que somos.

Leitura, como se vê, indispensável nos dias que correm, ainda mais depois do discurso já célebre de Jair Bolsonaro na ONU, no último dia 24 de setembro. O que entusiasma o leitor de Meira Penna – inclusive o grande escritor Mario Vargas Lhosa – é a capacidade de ‘citar todos os livros importantes’ sobre o tema que discorre. De mostrar a essência da personalidade do Brasil, garimpando em historiadores e sociólogos de todos os tempos – do império à colônia e depois na República- os mais lúcidos pensamentos e as mais inteligentes decifrações de nossa sempre complexa nacionalidade.

A volumosa obra, de mais de 600 páginas, em corpo pequeno, mostra o caráter nacional em toda a sua grandeza e pequenez. Isto é, nossas falhas crônicas, herdadas da península ibérica, como nossas virtudes, fundadas na miscigenação de três grandes raízes antropológicas: o colonizador europeu, o índio e o escravo africano. Soberbas páginas de explicações históricas à luz de interpretações freudianas. Isto mesmo, Meira Penna utiliza as teorias de Freud para evidenciar as fraquezas e as forças da civilização brasileira.

Mesmo que não tenhamos maior entusiasmo pelas teorias de Freud, o sabor das explicações ganha uma atualidade interessante. A obra é dividida em seis partes, a última como conclusão. Na primeira, sob o título As Mães, o autor se demora nos mitos da Grande Deusa e a simbologia do matriarcado nas sociedades milenares da antiguidade, justamente para identificar a mãe natureza do Brasil e de sua vinculação radical com a nossa nacionalidade. Na parte 2, aborda os mitos da terra, discorrendo sobre a Visão de Paraíso (primeiro mito), o Inferno Verde (segundo mito) e a Terra do Eldorado (terceiro mito). Muito interessante e esclarecedor o texto sobre as origens de um ‘certo destino’ do Brasil, desde os primeiros anos de nossa originalidade, em plena efervescência do século 16. A parte terceira traça um monumental ensaio sobre a Sociedade Erótica, mostrando nossa vocação para Eros e Tanatos, mostrando nossa inclinação para o sentimento, a delicadeza e a cordialidade e explicando, de novo, o que o historiador Sérgio Buarque de Holanda tratou em Raízes do Brasil, de onde provém a explicação do ‘homem cordial’ brasileiro.

Mostrando domínio excepcional da cultura nacional, Meira Penna se alonga na contemplação e análise de grandes autores, como Gilberto Freire, Jorge Amado, Mário e Oswaldo de Andrade, Oliveira Vianna, Machado de Assis, Euclides da Cunha, José Honório Rodrigues e até Nélson Rodrigues. Vinculando sempre ao longo dos ensaios, a produção nacional com os mais conhecidos autores como Max Weber, Karl Marx, Toynbee, Ranke, Freud e Jung, o texto de Meira Penna revela como a cultura brasileira foi tão profundamente enraizada na cultura ocidental, e como o processo de desestruturação dos valores maiores foi tão destrutivo e avassalador nas últimas décadas, capaz de transformar um país de 200 milhões de pessoas, no amontoado de gente palerma e imbecilizada pela academia e pela mídia como temos nos dias que correm.

O livro aborda ainda nas partes quatro e cinco, inúmeros ensaios enfeixados no título de A Sombra e A Persona, para, enfim, concluir na parte seis com o capítulo que também retoma uma das obras anteriores de Meira Penna, sob o título O Brasil na Idade da Razão. Conclusão, porém, que não se enquadra com o que o país vive de 1999 até hoje. Jamais estivemos na Idade da Razão, pois sempre acabamos ludibriados pelos personagens do mês e das últimas eleições. Continuamos emotivos, falsamente iludidos pela retórica e, sempre, manipulados pela mídia.

A obra de Meira Penna, contudo, vale para demonstrar como a cultura no Brasil foi excepcionalmente brilhante e há tão pouco tempo. Desde lá, isto é, desde os anos finais do século passado, acabamos reféns de um esvaziamento completo de todas as estruturas que viabilizam uma nação, o apodrecimento das instituições, dos poderes, da academia e a prostituição da mídia, sempre ocupada com o efêmero, o falso brilhante e o escândalo do dia.

O livro de Meira Penna vale, ainda, como precioso documento sobre a nossas origens e nossa caminhada de cinco séculos. Um verdadeiro mergulho nas origens profundas da nação e um roteiro para nos fazer compreender desacertos e descaminhos. Uma produção sólida, como não se faz em nossos dias de superficialidade e pressa, ingredientes essenciais da efemeridade e modas intelectuais passageiras.

 

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