Ac. Salustiano leu “A escravidão”, de Laurentino Gomes

RESENHA – A ESCRAVIDÃO

Autor: Laurentino Gomes

 

Laurentino Gomes, autor de best-sellers como 1822, 1889 e principalmente 1808, nos apresenta um trabalho literário/jornalístico minucioso e perturbador, na medida em que traz de forma simples, embora minuciosa e corroborada por fontes de pesquisa, todo o enredo que culminou na maior mercantilização de seres humanos da história.

Esta obra, composta de uma trilogia cujos dois últimos volumes serão lançados em 2020 e 2021, respectivamente, é delimitada temporalmente pelo próprio título: Escravidão – Do Primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares.

Laurentino consegue traduzir a relevância do tema em minuciosa escrita, fruto de um trabalho in-loco em doze países, da África, Ásia, Europa e América do Norte, que trazem enorme mérito ao assunto, muitas vezes de forma chocante, ao relatar os horrores que esse “sistema” escondia, no processamento de captura, transporte e venda de cativos. Resultado disso, e bem delineado na obra, passa a ser a miscigenação racial que definiu o rosto do Brasil, o país com a maior população afrodescendente fora da África.

Muito embora se aprenda sobre o assunto na escola, certo é que esse tema, ampliado por Laurentino, e mesclado de vergonha, se perpetua até os dias atuais, marcando todas as faces da sociedade, na medida em que a escravidão sempre existiu e sempre existirá.

Esclarecendo o assunto, Laurentino nos mostra que a associação entre o escravismo e o negro só se deu em razão do volume que o tráfico alcançou entre os séculos XVI e XVIII, principalmente, com a demanda de escravos para as diversas fases comerciais das Américas: açucareira, mineração e café.

Tendo como pano de fundo o Brasil como principal importador, a África como principal fornecedor e a Coroa Portuguesa como principal articulador, a obra mostra toda uma engenharia desse negócio lucrativo, embora horroroso ao extremo. A naturalidade como todo o processo era encarado, o tratamento do negro como mercadoria, o processo de captura, a estocagem nos portos africanos, o transporte em navios fétidos e a compra nos leilões no destino, dão uma clara visão de como esse processo era referendado por toda a sociedade, que enxergava nisso apenas um negócio mercantil, por sinal um dos mais lucrativos, não só para a Coroa Portuguesa, mas para os demais países que buscavam seu quinhão nesse vantajoso negocio, como Holanda, Espanha e Inglaterra, o que explica a conexão com as diversas invasões estrangeiras no Brasil.

Chega a ser assustador ver-se frente a frente com toda uma estrutura delineada para dar sustentação ao tráfico negreiro, fomentada pelos mais diversos mecanismos, desde a proteção dos preços, o cálculo do custo-benefício nas diversas etapas do processo, até a existência de empresas seguradoras para garantir um retorno financeiro viável. Além disso, haviam empresas consorciadas, algumas criadas pela própria Coroa Portuguesa, que cediam empréstimos e recompravam escravos, com o objetivo de manterem os preços estáveis e sob estrito controle.

O escravo era, na verdade, única e exclusivamente um ativo financeiro, precisava sobreviver a todos esses horrores com o mínimo de comida que lhe assegurasse a sobrevivência, mas que não se traduzisse em grandes dispêndios a todos os investidores envolvidos no processo, entre os quais o captor, o estocador, o transportador, o leiloeiro e, principalmente, o financiador, que era quem mais exigia altos retornos por seu investimento.

Muito embora se aprenda na escola a existência de maus tratos no período da escravidão, aqui se vislumbra a forma impiedosa com que a maldade humana aflorava, inexistindo limites na criação de castigos morais e corporais, infligidos principalmente aos que tentavam se amotinar. Tudo isso sob o beneplácito da igreja, notadamente dos jesuítas, ao considerarem o negro como ser desprovido de alma. Como digressão, o autor nos faz refletir se não seria esta umas razoes da manutenção do racismo até os dias atuais.

Por conta disso, passamos a ver o tema escravidão sob um novo prisma, ao vislumbrarmos a dimensão desse terrível negócio, posto que nos três séculos e meio em que vigorou o mercado de cativos nas Américas, foram embarcados um total de 12,5 milhões de escravos de predominância africana, tendo o Brasil recebido em torno de 5 milhões, ou seja, cerca de 40% do montante transportado. Veja-se, portanto, a importância do Brasil no cenário negreiro, culminando na sua resistência em acabar com o tráfico, ao ser o último país das Américas a tomar tal medida, mais por imposição principalmente da Inglaterra, do que por vontade própria. Resulta disso que o Brasil hoje tem a segunda maior população negra do planeta, estando atrás apenas da Nigéria.

Dado tais digressões, vislumbra-se de salutar importância o conhecimento e discussão do assunto, posto que um dos maiores definidores das nossas raízes, amálgama que, com suor e sangue, fincou sua marca na nossa identidade nacional.

 

Salustiano Souza

Janeiro/2020

COMPARTILHE: