Bipolaridade do tempo

Sempre que eu penso no tempo, uma ideia permeia minha mente: ele cura tudo. A ele pertence o poder de levar embora os males, de curar as feridas, de apagar os sulcos vincados na terra. É como um avô bondoso, de barbas brancas e longas, com uma bengala nas mãos a lhe auxiliar a caminhada.

Mas engana-se quem pensa que ele é sempre benevolente.

O tempo, senhores, é implacável. Diante dele, tudo perece, tudo envelhece, tudo oxida. O tempo faz despencar a juventude dos rostos, faz o sopro da vida esvair-se dos pulmões, aos poucos, segundo após segundo.

O tempo que se encarrega de levar embora amores mal resolvidos e tristezas infinitas é o mesmo que se encarrega de levar embora almas bondosas que conosco convivem e pequenas felicidades que não voltam jamais. O tempo engole nossas lágrimas, mesmo aquelas choradas no banho, debaixo do chuveiro quente para que ninguém pudesse nos ver. O tempo engole nossa inocência, nossas pipas coloridas e bonecas de pano com cabelos de lã, cujas tranças foram amarradas com laço de cetim da cesta da vovó.

Vi sua foto nas redes sociais, um sorriso sem mostrar os dentes, meio de ladinho, com cara de menina sapeca. E você era, mesmo, muito menina e pouco sapeca. Um coração enorme, sempre disposta a elogiar quem estivesse por perto, mesmo os mínimos detalhes.

Há seis anos, numa manhã comum de aula, antes das sete e meia da manhã, seu facebook dizia: “minha mãe faleceu hoje.” Meu coração se apertou, mas eu não entendia o porquê – eu não conhecia sua mãe. Mal sabia eu que, no recado, não era você quem falava: era sua filha, e a mãe que se despedia do mundo, nessa hora, era você.

Eu não tive tempo de me despedir. O tempo, esse senhor bipolar, estava preenchido com obrigações inadiáveis. Quando vi a nota no jornal, já era tarde demais.

O tempo não consegue apagar minhas saudades. Quando penso na pessoa que você era, meu olho insiste em querer uma lágrima, mas meus lábios não conseguem conter o sorriso. Esse é o seu efeito em mim, é o seu efeito em quem a conheceu de verdade.

Meu remorso de não ter dito adeus o tempo aplacou. Não conseguiu desmanchar, talvez nunca consiga. Mas já não dói mais pensar que eu tive um pressentimento e não fui atrás. Um dia, o tempo há de me levar, haveremos de nos reencontrar, e hei de ouvir de você, com essa carinha sapeca: “oi, bonitona.”

Até um dia, amiga.

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