Chore e aceite. É o que nos resta. (Cristina)

E lá vem ela de novo para nos lembrar que a finitude faz parte de forma irrevogável da vida, que é a surpresa certa da qual não conseguimos fugir. A morte sempre nos ronda acintosamente e de vez em quando nos atinge de forma implacável, causando turbilhões de sentimentos, nos fazendo encarar a nossa própria fragilidade. Ela chega e pronto. Não avisa, não pede licença, não admite questionamentos. Então chore, aceite e siga em frente, porque é só o que nos resta fazer.

Um dia olho meu whats e vejo uma mensagem assustada do afilhado dizendo que estava com a mãe no hospital, em estado grave, com suspeita de infarto. Enquanto tentava entender o que estava acontecendo e traduzir a linguagem obscura dos médicos, passava em sua cabeça o filme vivido dois anos antes, quando socorreu a tia que também infartou repentinamente. A sensação de impotência tomava conta de sua mente enquanto via as cenas se repetirem. E no fim da noite, a notícia que ninguém, nem nos piores pesadelos, imaginava: a mãe dele, minha cunhada, amiga desde a adolescência, que me entregou o filho mais velho em batismo porque tinha a certeza de que eu o amava como se fosse meu, morreu aos 53 anos. Era a vida se esvaindo em um instante, sem aviso.

No dia seguinte, ela, a morte, voltou a rondar aqui por perto. Bem cedo chegava a informação de que o confrade Wilson Goelbeck havia falecido. Tinha 86 anos e fazia parte da Academia Joinvilense de Letras – um imortal, vejam só a ironia do destino. Um homem criativo, detalhista, um artista das palavras e das imagens. Estava com uma doença grave, é verdade. Sofria, sabíamos disso. Mas a morte é, em sua essência, inesperada e indesejada.

A gente sempre acredita que ela não vem, que não se lembrará de nós, que escaparemos incólumes. Iludidos que somos. Pelos céus, sobre nossos campos de batalhas pessoais, as Valquírias cavalgam incansáveis, escolhendo os mortos, recolhendo as almas dos que amamos (e, um dia, as nossas), formando um exército sabe-se lá pra quê.

Talvez o único alento nessas horas seja pensar que um pouco dos que se foram sempre permanece. Seja em uma lembrança, um cheiro, uma música, uma brisa suave no fim da tarde, a página rabiscada de um livro… Para o escritor e o artista, a imortalidade está na obra – e isso é inquestionável. Enquanto ele for lido, enquanto seus quadros forem apreciados, ele estará, de alguma forma, presente.

Mas nossos filhos também levam um pouco de nós. Ainda adolescente, me dei conta de que a minha voz e o jeito de falar eram iguais aos da minha mãe e da minha tia, irmã dela. Ao telefone era difícil identificar rapidamente quem era uma ou quem era outra, o que já rendeu algumas inconfidências. Cresci ouvindo minha avó dizer que eu parecia mais filha da minha tia do que da minha mãe. Tínhamos o mesmo jeito quieto e ponderado de andar pelo mundo, a pele morena clara, o gosto musical, o fascínio por determinadas épocas da história, um sem número de afinidades. Quem nunca teve um parente (irmão, mãe, tia) com quem se identificava de uma forma especial?

Minha tia se foi cedo demais, como ocorre com quem amamos, independentemente da idade com que a pessoa falece. E ficou uma saudade enorme, que nunca passa.

Outro dia, porém, percebi que um pouco dela, de alguma forma, permaneceu por aqui. Participei de um documentário sobre o projeto Sarau# nas Escolas, do qual faço parte há anos como assessora de imprensa, e, sei lá o porquê, fiquei estranhamente séria durante toda a entrevista, sem sequer um sorriso para tratar de um tema que eu gosto tanto. De repente, ao me ver com o distanciamento que uma gravação proporciona e sem o sorrido que me caracteriza, percebi, como nunca antes, o quanto dela havia ficado em mim. Havia algo na voz, no jeito de falar, na expressão do rosto que eu conhecia muito bem. E, com certeza, não era do espelho.

A morte é dura, implacável. Aos que ficam cabe a dura tarefa de conviver com o vazio, com a ausência, com a saudade. Tentar encontrar algum significado para o que não pode ser explicado. Mas fica também a certeza que quem se vai deixa um pouco de si em quem fica – o que não deixa de ser uma forma de driblar o fim.

Para ouvir quando der vontade:

“A Cavalgada das Valquírias”, trecho da ópera “A Valquíria”, de Richard Wagner. Quase dá para visualizar a cavalgada desses seres mitológicos pelos campos de batalhas

https://www.youtube.com/watch?v=fJ0bGDG1w2s

Texto da acadêmica Maria Cristina Dias

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