Como é que eu pude sobreviver? (Hilton)

COMO É QUE PUDE SOBREVIVER?

Hilton Görresen

Considero-me um sobrevivente. Sou do tempo em que se vivia perigosamente, segundo os parâmetros atuais. Sim, confesso que tive uma vida desregrada.
Andava descalço, com os pés na poeira, no lodo e muitas vezes nas pedras cheias de ostras. É verdade que às vezes voltava para casa com um corte profundo na planta do pé, ou pelo menos com bicho geográfico, dando uma coceira danada. Mas resolvia-se tudo com iodo ou mercúrio, e matava-se o bichinho com creolina. Subia em morros e árvores, corria pelo meio do capim-serra, lanhando pernas e braços (e como ardiam), nadava nos rios e mergulhava em poços de água gelada.
Passei a infância lendo os perigosos gibis e assistindo aos filmes de mocinhos e bandidos; carregava um revólver que detonava espoletas, para as brincadeiras de “camone”. Como se isso não bastasse, andava armado de setra (ou estilingue, como queiram), com a qual esperava debaixo das árvores os inocentes sabiás (se isso puder me absolver, informo que nunca consegui matar nenhum dos bichinhos).
Bebia água da carioca, que era colocada sem ferver num filtro de barro e comia ostra crua, pele de galinha e pão com banha e sal, pouco me lixando se mais tarde viriam a “inventar” a tal de gordura trans.
Nadava mar afora sem salva-vidas, bote inflável e outras geringonças de segurança. Corria debaixo de chuva braba, voltando para casa com os ossos ensopados. Evitava apenas ar encanado que, segundo meu pai, podia provocar gripes irremediáveis.
Nas horas de sufoco, disfarçava a timidez com as mãos nos bolsos, e tinha as neuras tratadas com o cinto de minha mãe, sem necessidade de ser encaminhado a psicólogos ou orientadores pedagógicos. Meus dentes se desenvolveram regularmente, sem o auxílio de aparelhos, quem imaginaria colocar tal trambolho na boca? Fumava tocos de cigarro dissolvidos e colocados em um cachimbo feito de taquara, que passava de um para outro dos amigos.
Não somente vivi, como escrevi perigosamente, pois todo texto é passível de má interpretação, e tome desaforos na caixa de entrada de seus emails. Passando por tudo isso, é de admirar que hoje me encontre inteiro na frente do micro, confessando descaradamente tantos desregramentos. Deve ser porque nunca misturei manga com leite, nem tomei banho após as refeições.

TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 02.05.2020

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