Como uma onda no mar (Salustiano)

COMO UMA ONDA NO MAR

No leve marulhar de noite enluarada ela surgiu. Primeiro imperceptível, como leve esgazear sob a agitação do vento, depois um pequeno contorno na imensidão do oceano, rapidamente ganhando volume, convertendo-se em arredia onda.
Olhou ao redor e outras mais se formavam, num átimo eram muitas, a correr na mesma direção, a insana direção da vida.
A consciência de si tomou forma, avolumou-se de corpo e a percepção de algo maior além do horizonte entranhou-se em seu âmago. A paz erradicou-se de seu ser e a mansa dominação da inquietude se fez presente, essa sempre inquietante busca do indizível.
Na esteira das demais, encontrou-se a reverenciar o deus-vento, criador das coisas divisórias de corpo e alma. Oferendas, súplicas e temores se punham no altar do submisso olhar de cantilenas a buscar placidez de alma:
“Pecadores somos, da mácula nascemos…”.
Não encontrava lenitivo no credo, dúvidas ebuliam enquanto tecia crista de branca espuma em sua cabeça, “de onde viemos, para onde iremos?” Na corrida rumo ao tapete de espuma final os arautos e profetas surgiam aos borbotões, oráculos com plena certeza de salvação. “Haverá vida após essa?”
“Tenha fé, entregue-se nas mãos do bondoso deus-vento”.
Como onda intumescida de oceano, crescia e se aprofundava na dúvida. Ensinamentos de antigos e prédicas de loucos se mesclavam na única certeza: Ninguém nada sabia, embora todos estivessem certos de que tudo sabiam. Mas era tentador acreditar no amparo do deus-vento, na sua bondade em moldar as ondas conforme sua imagem e semelhança. Doce era a cantilena do acreditar, a ignorância acalentava bênção, a tortura da dúvida constituía chaga atroz.
“E se não houver nada depois, se apenas nos derramarmos em cálida água? Se apenas virarmos espuma? Se o deus-vento for apenas um delírio? Algo maior, talvez? Muito além de nosso entendimento.”
Ondulando na mesma direção, opunham-se crentes e descrentes em absolutas certezas, engendradas muitas em violência, seguidores da deusa-lua pretendendo incutir rituais blasfemos, lutas sangrentas no afã de incutir um deus, não bastava estar salvo, necessário se fazia que todos cressem na mesma crença, se pela palavra não bastasse, pela espada se imporia. Meu deus é sempre melhor que o seu…
Captava lapsos de ensinamentos, sábios de antigos matizes evocavam o tapete de estrelas como se outros mundos fossem, “há algo sólido chamado terra, de impossível descrever.” Fascinada, quedava-se a ouvir sobre outras dimensões, uma delas chamada dia, onde a deusa-lua tinha tal brilho que era impossível fixar o olhar.
“Não seria o paraíso que tanto sonhamos?”
Tremulando ao sabor do deus-vento, poucas ouviam, muitas riam, eram loucos a predicar duvidosas tormentas, acreditar ainda é melhor, a única certeza era a mão bondosa do deus-vento.
“E se eles estiverem certos?”
Nada de concreto restava, fixados todos no ouvir dizer, manuscritos de duvidosa autenticidade entranhados na certeza da fé, cujo tempo se encarregou de arraigar, demovida que fora a razão.
Como toda a onda, viveu, sorriu e chorou, aproveitou a vida ofertada sem cobranças e sem explicações. A maturidade lhe embranqueceu a crista de espuma, alquebrada pelo tempo sentia o dorso ondulado já curvo e disforme. Apenas a mente permanecia intacta, permeada da sempre dúvida.
Escutava ao longe o quebrar das ondas no espelho de espuma, o inexorável destino de todas. Não sentia medo, apenas a curiosidade do que viria depois. Ansiava que os credos estivessem corretos, que houvesse algo, que houvesse o amoroso reencontro dos que já partiram.
O leve tremor a fez sentir que a hora era chegada. Sua crista esbranquiçada, agora uma vasta espuma branca, ofuscava sua visão, sentia as mãos do deus-vento a amparando, soltou o corpo e lançou-se no grande precipício de espuma rendilhada. No cair olhou para a frente e viu brancas torres na cintilação de muitas luzes, espetáculo indizível de intenso brilho, maior que das estrelas, mais forte que a deusa-lua. Aquilo só podia ser o tão esperado paraíso.
“O céu existe.” Foi seu último suspiro.

Alheios e despreocupados, jovens bebiam na praia, certamente brindando a vida. Ao fundo, Lulu Santos cantarolava:

“A vida vem em ondas / Como um mar / Num indo e vindo infinito / Tudo que se vê não é / Igual ao que a gente viu há um segundo / Tudo muda o tempo todo no mundo…”
“… Como uma onda no mar…”

Salustiano Souza
Janeiro/2021

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