Corpo estranho

Era dado a observar abelhas. Por gosto e ofício. Apicultor, aprendera com o pai o trabalho de construir ninhos, instalar telas, fumegar e coletar o mel que era vendido a bom preço na região. A disciplina das abelhas era trunfo de Adamek que, por não precisar pajeá-las, guardava tempo para outra de suas paixões: observar o céu.

Adamek usava sua máquina fotográfica para registrar os movimentos celestes de sua cidade. Naquela noite, observou algo a movimentar-se no espaço: uma bola de fogo cingia o céu escuro. Como uma abelha a polinizar, atravessava a noite, de Oeste a Leste. O apicultor mirou a lente de sua máquina e pôs-se a filmar. Registrou 26 segundos do passeio da bola de fogo em imagem pouco nítida. Deu no jornal. Para Adamek era uma bola de fogo, para a mídia, um objeto não identificado, para os cientistas, possivelmente um pequeno asteroide atravessando a atmosfera terrestre.

O bólido foi visto por Adamek no Planalto – forma de relevo com uma superfície elevada e cume nivelado. O Planalto em questão é o Norte de Santa Catarina e está a mil metros de altura, portanto, mais perto de bólidos, e do céu, do que os que vivem ao nível do mar, onde o corpo encontrado estava de bruços, sem estima, mas em forma de estrela. Não há foto no jornal, mas, estranhamente, posso vê-lo. A olhos nus, não se move, mas talvez esteja atravessando o céu. Não o conheço, não sei que vida regrada ou desregrada manteve, que bem fizera, que mal nutria. Posso, no entanto, sem as lentes de Adamek, identificá-lo gente. Quiçá estrela, como todo ser humano que nasce, brilha e morre. Quiçá, um asteroide, cuja vida estava resumida em arremeter-se contra o planeta, contra o sistema, contra as pessoas e o destino.

Sinto que às vezes olhamos para o céu esperando o mel das abelhas, uma forma de suavizar as desventuras da existência humana; porém, ao nosso lado, continuam caindo corpos estranhos. Estranhos porque deveriam estar vivos e vivos brilharem, mas quedam-se mortos, em formato de estrela e de bruços, esses objetos não identificados das mazelas humanas.

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