De felicidade e coisas inúteis

Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do que se julgam – compram pequenos sonhos. São crianças no adquirir. Assim escreveu Fernando Pessoa no seu Livro do Desassossego, revelando-se profundo conhecedor da natureza humana. Gostamos de ter coisas, mesmo as desnecessárias. Só por ter, pelo prazer de imaginar que temos posse de algo, precisamos de coisas, mesmo das coisas inúteis.

Antigamente, quando comprar coisas inúteis era impulso permitido aos abastados, o recurso era colecionar caixinhas de fósforo, lápis, papel de carta, latinhas. Colecionávamos coisas inúteis, e ficávamos orgulhosos de tais pertences.

Hoje o mundo gira em torno do mercado e o consumo é imprescindível para a sobrevivência da economia global, a propaganda invadiu nossas almas possessivas e consumistas. A realização pessoal é induzida a perpetrar-se no comprar coisas, cada vez mais coisas e, por fim, coisas inúteis.

Os compradores de coisas inúteis já não são os sábios do tempo de Pessoa. Aqueles agiam assim por impulso pessoal, de dentro para fora, num gesto infantil, como disse o poeta. Não. Definitivamente, não somos os sábios de Fernando Pessoa.  Gostamos de comprar, e como gostamos! A felicidade só se tornou possível com a possibilidade de consumo, porque desejamos coisas…e, na medida em que desejamos, é impossível sermos felizes.  Por quê? Porque desejo é falta, disse Platão, e porque falta é sofrimento, deduziu Sponville.

Então, como sermos felizes mergulhados que estamos num sistema que obriga a comprar, mas reserva o privilégio do supérfluo a poucos? O que fazer com a classe média brasileira, empobrecida e desencantada? O que fazer com as classes C e D, igualmente seduzidas pela sanha das ofertas, do crédito facilitado que os endivida ainda mais? O sistema é perfeito, apesar de tudo. Inventou as benditas lojas de R$1,99.

Quem, entre os excluídos dos privilégios do supérfluo, não fica extasiado no interior de uma loja de R$1,99? Por um precinho de nada podemos levar para casa as mais diferentes quinquilharias – e fantasias. Quando entro numa delas, sinto-me num reino de possibilidades – de compras inúteis. Posso comprar o que eu quiser…um porta-retratos, uma louça com estampas delicadas vindas da China, como se eu estivesse adquirindo uma peça de antiquário; um cálice para vinho como se fosse cristal da Boêmia; uma taça para champanhe com a pompa de quem vai usá-la para degustar um legítimo Veuve Clicquot…

E assim, com o desejo tornado fantasia, sou feliz por um momento. Um momento só, porque na atual arquitetura econômica tudo é descartável. Até a felicidade… Mas não tem problema, é só voltar ao R$1,99! (Publicado no A Notícia, 20/1/2007)

 

Sobre o dito e o não-dito acima (Em 2015)

 

Ao escrever o artigo de 2007, minha intenção foi levar ao leitor alguma reflexão acerca da relação entre felicidade e consumo na atualidade. Escrevi num tom de bom humor, pois, na verdade, as lojas de R$1,99 – R$3,99 – não têm outra finalidade que não seja proporcionar o consumo barato, ao mesmo tempo em que seus proprietários ganham rios de dinheiro. Buscamos felicidade ao percorrermos seus corredores abarrotados de mercadorias e coisas inúteis.

O trinômio consumismo – felicidade – dinheiro define com clareza a aura que envolve a sociedade contemporânea. Foi assim que o mundo do século 21 foi arquitetado, fugindo dos ideais iluministas. O progresso não ofereceu à sociedade a solução para muitos dos seus males.

O principal objetivo dos filósofos do Iluminismo – Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros – era a busca da felicidade. Aliás, desde os clássicos a felicidade tem sido assunto recorrente, afinal para que estamos neste mundo? Ao contrário do que desejavam os iluministas, a sociedade rendeu-se ao consumismo. Nas primeiras décadas do século 20 os valores ainda eram relativamente estáveis e a sociedade de consumo apenas se esboçava. Freud se adiantava e concluía que o indivíduo já não podia ser feliz na civilização moderna, e publicou O mal-estar na civilização (1930).

Para Freud o que era fator de infelicidade entre os séculos dezenove e vinte – altas taxas de mortalidade, fome, trabalho árduo, ausência de conforto, enfim, as agruras que o progresso bania aos poucos do cenário social – deixavam pouco a pouco de atormentar a humanidade.  O mal-estar, no entanto, não desaparecera. Este estado de espírito ou mal-estar ou infelicidade tomou novas formas na pós-modernidade. O homo faber perdeu sua importância para tecnologias modernas, novas mídias, e a consolidação da sociedade de consumo no mundo globalizado.

Os novos valores reeditam o Tudo o que é sólido desmancha no ar, de Marx, nascem novas certezas ao lado de novas ignorâncias, tamanho é o jugo do dinheiro na contemporaneidade. Depois de Nietzsche declarar que Deus está morto, o Mercado tomou seu lugar.

É comum hoje em dia presentear-se a si mesmo por qualquer motivo. Vai-se às compras por que se está triste, vai-se às compras para comemorar algo, vai-se às compras para dirimir as frustrações, vai-se…  Se Deus, em tempos passados, era o sustentáculo para suportar-se a vida e o medo da finitude, hoje recorre-se ao poderoso Mercado.

Os pobres e não tão pobres precisam de dinheiro para consumir coisas úteis ou inúteis, estimulados pela propaganda, pelo modismo e, por vezes, pela necessidade – criada – de ostentação, uma questão de poder.

Nietzsche, ao criar a figura do Super-Homem – que nada tem a ver com a indústria cultural americana –, estava falando de um homem que tem coragem de lidar em cada segundo da sua vida com o conflito que é a escolha de cada situação, e que não atribui isso nem a Deus, nem à moral. É o Homem além do homem, que tem a capacidade de ler, rever e construir a si mesmo, prescinde do temor a Deus. Nietzsche apresenta a ideia do homem que se supera. Então, imagino que diante da máxima pós-moderna segundo a qual o consumo dá (ou é) o sentido da vida, precisamos ser quase um Super-Homem ou Supermulher, ou criar pequenas fantasias como eu, que ao entrar numa loja de R$3,99 fico extasiada diante de um reino de possibilidades. De compras. De coisas inúteis.

 

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