Do quanto se pode mudar

– Há dez anos não era assim, não, Schmidt. O sol ia quebrando pros lados do Piraí e a gente já sentia o cheirinho do pão que assava no forno, daí passava um café pra aquecer o peito, fechava a porta pra impedir muriçoca e, quando a noite caía, ligava a televisão ou ouvia rádio, tanto faz. Noite era tempo de voltar pra dentro, pra dentro de casa, ou se desse nas ventas, sair pra um papo de portão, um tropeço na calçada, um boteco na esquina. Tomar uma, beliscar hollmops, falar da vida alheia. Era nessa base a vida da gente, lembra?

Schmidt lembrava disso e, à Drummond, resmungou:

– Eta, vida besta, meu Deus.

– Ora, vida besta! Era muito bom. Tinha tempo pra praticar filosofia. A gente era tudo filósofo. Pensava na vida, entendia a vida, esperava da vida. Hoje, não tem nada disso. É uma correria danada. Veja só a Gisele. Não para mais um dia em casa. Depois que se meteu com essa coisa de cultura, só quer saber de ficar na rua. Até tarde. Não é vida pra moça direita.

– Cale a boca, Nilsinho. Tá falando bobagem. Há dez anos, a vida era um cocô. Os filhos da gente eram criados pra roçar mato ou pegar emprego na indústria, voltar cheio de fuligem. Agora tá melhor. O Vitinho aprendeu a se comunicar, defende as ideias dele lá no meio de gente graúda. Fala bonito que só vendo. Hoje mesmo, saiu cedinho pra uma reunião com os amigos. Coisa de arte.

Nilsinho balançou a cabeça desdenhoso, mordeu o canto dos lábios e atirou longe uma pedra que trazia na mão.

– Vou pra dentro.

Schmidt olhou no relógio.

– É cedo, Nilsinho. Vai ver televisão?

– Não. Tenho que me arrumar.

– Égua! Que novidade! Vai pra onde?

– No lançamento de um livro, com a Gisele.

Schmidt soltou um riso alto.

– Se preocupa não. Amanhã tudo volta ao normal.

Nilsinho deu meia volta, aproximou os olhos dos olhos de Schmidt e, muito enfezado, gritou:

– Amanhã vou ao teatro.

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