É bicho ou gente? (Fiuza)

É bicho ou gente?

Eu dei plantão no Hospital Municipal por mais de 30 anos. Era um plantão à distância, que chamávamos de sobreaviso. Quando havia alguma urgência da especialidade, eles me telefonavam. Eram raras as madrugadas em que não havia um chamado. Aprendi então que a pior hora para um telefone tocar era entre meia-noite e 1 da manhã. É um momento em que eu estava sempre dormindo fundo e ainda não havia descansado o suficiente. Acordava então confuso e assustado.

Naquela noite eu não fui chamado como médico, mas como diretor do hospital, cargo que exerci por alguns anos. Acordei sobressaltado e ouvi a voz agitada do outro lado.

— Doutor, precisamos do senhor aqui! Parece uma alma penada!

— Calma, calma, o que houve?

— Doutor, estamos apavorados, ela não para de gritar. Escute o senhor mesmo!

Eu ouvi então um grito horrível, uma espécie de gemido alto, fino e rouco, longo.

—Que é isto? — perguntei, já mais desperto e já assustado.

—Chegou agora, Doutor! Estamos todos em pânico! Não sabemos o que fazer!

No fundo os gritos continuavam, altos, sem interrupção.

— Mas o que está acontecendo aí? Quem está gritando assim deste jeito?

— Ninguém sabe o que é, Doutor. É um bezerro com cara de gente!  A coisa mais feia do mundo! Trouxeram em uma camionete. Chegou gritando e não parou mais!

— O que você está falando? Um bezerro com cara de gente? Que é isto?

— Pois é, tá um monte de gente aqui na frente do Pronto Socorro. O pessoal que trouxe quer que a gente interne aqui. O que vamos fazer, Doutor?

Depois soubemos a história toda. Foi um bezerrinho que nasceu com uma grande malformação na cabeça. A enorme deformidade fez a cabeça do animal ficar arredondada e alguns acharam que era humano. Muito feio, monstruoso mesmo, mas a cara parecia com gente. Ele gemia e trouxeram para o hospital. Ficaram na entrada do Pronto Socorro. Ali as pessoas foram se ajuntando, chegou repórter, virou notícia, saiu nos jornais.

Entretanto, na hora do pânico, a confusão reinava. O enfermeiro chefe do plantão arfava do outro lado da linha e os gritos continuavam.

— Venha logo, Doutor!

— Calma, rapaz. Vai lá e pergunta pros responsáveis se a mãe da criatura é uma mulher ou uma vaca. Vai lá agora!

Dois minutos depois: — É uma vaca, Doutor! Nasceu na fazenda há umas duas horas!

— Então manda embora, que eu quero dormir.

 

Dedico esta crônica ao confrade Herculano Vicenzi, que relatou a sequência desse caso em seu livro “Nos fundões de Joinville” e me fez lembrar da história.

Ronald Fiuza

 

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