Esse desconhecido João Ramalho

O português João Balbode de Maldonado filho, o João Ramalho, é um dos grandes injustiçados e esquecidos da história do Brasil. De importância absolutamente vital para a viabilização da colonização portuguesa no Sudeste, é totalmente ignorado nos livros escolares. Contudo, sem a presença e o apoio deste português radicado no Brasil desde 1513, teria sido praticamente impossível que Martim Afonso de Souza conseguisse “refundar” São Vicente em 1532 e que os padres Nóbrega e Anchieta conseguissem fundar, em 1554, o colégio de Piratininga, que evoluiu para ser a grande capital dos paulistas.

E essa mesma São Paulo de Piratininga não teria sobrevivido ao arrasador ataque dos tamoios da Confederação e dos tupiniquins revoltosos de Piquerobi, quando ela foi salva pela ação conjunta de João Ramalho e seus filhos-soldados, aliados às forças tupiniquins de seu sogro, o grande cacique Tibiriçá.

E, bem antes disso, foi ele o fundador de Santo André da Borda do Campo, cuja população foi depois transferida inteiramente para a vila de São Paulo, por razões de defesa e segurança.

Contudo, o grande valor esquecido pelos historiadores provém da intensa atividade de João Ramalho como… reprodutor: casando com Bartira, a filha de Tibiriçá, teve com ela 9 filhos. E, com outras índias guaianases, a bagatela de pelo menos 48 outros filhos e filhas. A descendência que ele deixou foi apenas astronômica. De tal forma que, na gênese da imensa maioria das tradicionais famílias paulistas quatrocentonas estão lá João Ramalho, Bartira e as outras índias. Quase todas têm o pé na mata, portanto.

João saiu de Vouzela, sua cidade natal, em 1512, com 19 anos. Já era então casado com Catarina Fernandes, que nunca mais tornou a ver. No início de 1513 ele partiu de Lisboa numa frota que demandava o Brasil. A caravela em que ele era tripulante afundou nas costas do que é hoje a cidade de São Vicente. Conseguiu salvar-se a caro custo, sendo encontrado desfalecido e a seguir resgatado por um grupo de índias adolescentes.

Elas ficaram fascinadas pela enorme barba preta, desgrenhada e crespa, que o jovem ostentava. Em Portugal esse tipo de barba era chamado de “ramalhuda” e daí veio o seu apelido, primeiro João Ramalhudo e, depois, João Ramalho.

Os guaianases, tribo tupiniquim de Tibiriçá, não tinham barba ou bigode. Muito pelo contrário, mulheres ou homens, não ostentavam nenhum pelo no corpo, depilando os que teimassem em reaparecer.

As indiazinhas adolescentes tinham um altíssimo grau de liberdade sexual, sem tabu de virgindade. Para João Ramalho aquilo foi o mesmo que chegar ao paraíso, assediado que passou a ser, diariamente, por inúmeras moças. Até mesmo mulheres casadas pediam licença a seus maridos para deitarem com o “peró” (português, para os guaianases). E o mais notável é que os maridos não viam problema em dar essa permissão.

O ramalhudo tornou-se completamente indígena. Aprendeu a falar o tupi, a andar sempre nu e a deliciar-se com as comidas da terra e hábitos da terra.

Tornando-se genro do maior chefe guaianã, João converteu-se automaticamente numa autoridade local também. Outros chefes de tribos do planalto e do litoral passaram a lhe oferecer o mesmo tipo de aliança, isto é, filhas com quem o peró pudesse casar. Esses casamentos faziam João Ramalho parente dos grandes chefes e, consequentemente, juravam-se eles mútua aliança e proteção.

Com a enorme descendência que gerou, Ramalho foi formando seu próprio grupo de homens armados. Passou a comprar, de traficantes franceses de pau brasil com quem os índios negociavam, arcabuzes e outras armas de fogo, com os quais armou seus filhos mamelucos e formou o que é, tecnicamente, o primeiro exército legitimamente brasileiro, ao completar esse destacamento de paus de fogo com dezenas, centenas ou, conforme o caso, até mesmo com milhares de indígenas armados de arco e flecha.

Foi com esse exército que João Ramalho salvou São Paulo de Piratininga da destruição pelos tamoios, quando, em 1562, apenas oito anos após a fundação da vila, estes tupinambás fizeram uma aliança com os tupiniquins revoltados de Piquerobi e Jaguaranho e atacaram São Paulo.

Estes dois eram pai e filho, respectivamente irmão e sobrinho do grande chefe Tibiriçá. Morreram ambos nesse combate pelas mãos do próprio Tibiriçá que, aliado constante dos portugueses, por causa de seu genro peró João Ramalho, defendia a vila junto com seu outro irmão, o cacique Caiubi.

Tibiriçá era o morubixaba de Inhapuambuçu, que corresponde hoje ao centro exato de São Paulo, do pátio do Colégio ao Largo São Bento, a colina entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú. Caiubi era o chefe de Jurubatuba, na região do hoje bairro de Santo Amaro. E Piquerobi era o cacique de Ururaí, agora bairro de São Miguel Paulista.

Piratininga era toda a ampla planície nos baixios do Tietê e dos outros rios, que era periodicamente inundada e deixava, no recuo das águas, multidões de peixes a secar (Peixe = pirá; Piratininga = peixe seco).

Muitos anos antes, em 1532, quando Martim Afonso de Souza desceu dos escaleres com algumas dezenas de portugueses nas imediações de São Vicente, passou o maior sufoco ao ver várias centenas de índios armados marchando em sua direção. Alguns portando armas de fogo! Os poucos portugueses poderiam ser trucidados rapidamente.

Mas o alívio surgiu quando o líder daqueles guerreiros, um homem branco tisnado do sol, alto e barbudo, completamente nu, identificou-se como o português João Ramalho. E disse que estava ali para ajudar seus conterrâneos no que fosse preciso.

Junto com Ramalho, Martim Afonso reconheceu o grande chefe indígena que, meses antes, tinha ido a pé de Piratininga para encontrá-lo na baia de Guanabara: Tibiriçá.

Foi graças à ajuda e proteção de Ramalho e Tibiriçá que Martim Afonso pode mandar construir algumas edificações de alvenaria na já existente São Vicente, então um amontoado de menos de dez casebres, mais conhecida como Porto dos Escravos, lugar onde os navios portugueses, espanhóis e franceses se provisionavam de água e mantimentos frescos (no Tumiaru) e compravam escravos indígenas, normalmente da etnia carijó, capturados pelos tupiniquins e por traficantes portugueses e espanhóis de escravos.

Sem João Ramalho, não haveria apoio dos guaianases de Tibiriçá. Sem estes e sem o “exército” mameluco de João Ramalho, não existiria São Vicente e, muito menos, São Paulo de Piratininga.

João e seu sogro levaram Martim Afonso e seus homens até Piratininga, ensinando-lhes aquele que era conhecido como ‘o caminho dos tupiniquins’, uma longa, perigosa e íngreme subida que permitia encontrar uma brecha para se chegar ao topo da serra de Paranapiacaba e, dali, andar até chegar a Piratininga. Começava ali, com a presença de Martim Afonso de Souza em 1532, a tramitação que levaria, anos depois, em 1554, ao estabelecimento do colégio dos jesuítas por Nóbrega e Anchieta, no coração de Inhapuambuçu, a aldeia de Tibiriçá. Graças a João Ramalho, é óbvio.

Que reconhecimento tem João Ramalho em nossa história? Quase nada, em relação a sua imensa importância. Há uma estátua em Santo André e há um município paulista, emancipado em 1959, que recebeu o seu nome. Pequeno, tem menos de 5000 habitantes. Mas marca o reconhecimento dos poucos paulistas conscientes que se lembraram de homenagear seu grande pioneiro, fundador e povoador.

Tocado pela injustiça desse esquecimento, resolvi fazer minha própria homenagem ao peró de Vouzela escrevendo um livro a respeito dele.

Acabaram surgindo dois: “João Ramalho no Paraíso”, que narra as peripécias e os amores do Ramalho de 19 anos em Enga Guaçu (Ilha de São Vicente) e Inhapuambuçu (São Paulo). E “João Ramalho Fundador”, que apresenta o João Ramalho adulto, suas esposas, seus aliados, seus filhos e filhas, seus genros, seu exército, suas batalhas, sua grande ação de fundador (Santo André) e cofundador (São Vicente e São Paulo).

Não são livros de história. São romances históricos, ficção onde uso humor e pitadas de erotismo (como é fácil com aquelas indiazinhas!), junto com a imaginação, para colocar ação, diálogo, trama e significado em um texto que, sem isso, seria tão intragável quanto estas linhas aqui.

E cujo objetivo já foi plenamente alcançado com a distribuição de “João Ramalho no Paraíso”: tornar a leitura dos textos históricos amena, agradável, divertida e atraente para leitores em geral e para os estudantes em particular.

Evoé, João Balbode de Maldonado!

 

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