Falando coisa com coisa

O paciente estava na mesa operatória com a cabeça aberta, conversando. É isso mesmo! Em cirurgias para tratamento de epilepsia é possível manter o paciente desperto, com anestesia local. Essa técnica é utilizada para que o cirurgião possa estimular determinadas regiões do cérebro e ver a resposta imediata, no paciente acordado. Assim ele evita causar uma lesão em alguma área cerebral, digamos, mais importante. Nesse caso, o neurocirurgião iria tratar um caso de epilepsia rebelde desconectando as fibras que unem os dois hemisférios cerebrais.

Em um desses casos ocorreu algo estranho, relatado por um neurocirurgião no Canadá. O cirurgião estimulou um ponto no córtex cerebral direito e o paciente, em resposta, moveu subitamente a mão esquerda, como esperado. O neuropsicólogo, que estava na sala, perguntou ao paciente por que ele movera a mão. A resposta foi: “É que eu tinha uma coceira na perna”. Por que essa resposta?

Novo estímulo, nova resposta estranha. Este foi em outra área cerebral e o paciente deu uma gargalhada automática. “Por que você está rindo”? Resposta: “É que vocês são muito engraçados “!

Por que ele inventou essas histórias? Por que ele não respondeu simplesmente: “Eu movi o braço e gargalhei porque vocês estimularam meu cérebro”?

Essa foi uma experiência extraordinariamente importante para indicar como o raciocínio pode se tornar enganador, ele que é o marco maior do pensamento lógico. Os cientistas canadenses deram um nome para isso. Disseram que o paciente “confabulava”. Ele criava uma história fictícia que desse algum sentido ao absurdo que ele ali vivenciava. Os pesquisadores mostraram que a principal função do pensamento, nesses e em outros casos, não é explicar ou demonstrar as coisas como elas são, mas dar alguma coerência ao mundo ao redor, por mais confuso que esse seja. Assim funcionaríamos todos.

As observações não ocorrem só em pacientes com cérebro dividido, ou com epilepsia. Elas podem ser extrapoladas para situações do quotidiano. Você entra em uma loja e fica em dúvida entre duas calças: uma de corte bem feito, dentro de seu orçamento e outra, especialmente bonita, mas muito cara. Você pensa em suas finanças, “confabula” e leva a segunda.

A Neurociência entende o “inconsciente” como os estados mentais que ocorrem sem a intervenção da consciência. Boa parte de nosso funcionamento mental é inconsciente, sendo o funcionamento consciente apenas a “ponta do iceberg”. As confabulações seriam tentativas inconscientes de trazer coerência ao nosso mundo, tantas vezes dúbio ou mesmo caótico.

As descobertas atuais demonstram que emoções fortes e comportamentos inadequados podem surgir do nada. Isso ocorre muito em condições de estresse, mas pode surgir também em situações normais. Você leva a calça cara porque, na hora da decisão, passou uma rápida imagem em sua mente, na qual você arrasava com aquela roupa linda. Depois explica para si mesmo (e para sua esposa) que a comprou porque “é feita de um tecido melhor e vai durar muito mais”.

Por isso Freud, como o primeiro formulador do conceito de inconsciente, se considerou (imodestamente) como o portador do terceiro golpe narcísico no ser humano. O primeiro golpe foi o de Copérnico, que mostrou que não éramos o centro do universo e nem mesmo do sistema solar, mas um pontinho num canto da Via Láctea. Depois foi Darwin, que demonstrou que não somos a espécie eleita, mas um animal entre tantos, derivado da evolução por seleção natural, um priminho dos macacos. Finalmente ele, Freud, nos dizia que a nossa todo-poderosa consciência é apenas uma pequena auxiliar, uma escrava dos misteriosos processos inconscientes. Pobres de nós.

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