?”Geometria poética” (Lufiego)

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GEOMETRIA POÉTICA

Marcelo Lufiego

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PRIMEIRO LIVRO
PENSAMENTO LIVRE
O LÉXICO DA AGONIA
Escrito num catre de pedras aquecidas pelo teu corpo
Num catre de pedras cúbicas, desbastadas pela mente
Num catre com arestas aparadas pelo teu pensamento
Escrito enquanto o túnel se descuida e nos libertamos
Livres, enfim, das pesadas correntes do próprio medo
Das pesadas correntes da hesitação
Das pesadas correntes de ferro
Pregadas na rocha mais dura
Forjadas no centro da terra
Pelo serralheiro dos deuses
Influxo insurgente que desacomoda a todos
Proveniente das reentrâncias do pensamento
Refluxo que faz os glutões dormirem sentados
Fluxo repelido pelas dobras gástricas azedadas
Forjado na repugnância fétida dos intestinos
Embalado pela milagrosa cadência cardíaca
Que independe da consciente intenção!
Estranhamento na sequência das palavras
Cerceadas por gigantescas limitações
Sim cerceadas! Coagidas e cooptadas
Quase livres dos grilhões do medo
Ousadas no ato comunicativo
Na expressão das obviedades
No vislumbre do inefável
No dia que amanhece
Na noite que reina
Soberana
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Meras palavras lançadas ao vento
Na forma de prolongadas cantilenas
Reconstruídas de outras mais antigas
Encontradas nas noites vazias do poeta
Palavras nascidas do grito dos notívagos
Castigadas pela estupidez destes cantores
Que não acompanharam a evolução da rima
Renascidas das entranhas dos consumidos
Indiscretas, emblemáticas e alegóricas
Irreverentes sobressaltos dos sentidos
Desgraçadas! Soam arrogantes e frias
Parece que nuca tiveram coração
Que jamais conheceram o amor
Tendo crescido vilipendiadas
Pelos ouvidos moucos
Da pessoa amada
Inobstante o desprezo da alma gêmea
Eu vos anuncio, entretidos leitores
O estouro da boiada vocabular
Que passa ruminando ideias
Na egrégora dos neurônios
Da euforia dos sonhos realizados
Ao fastígio da antítese da utopia
Palavras, portanto, cacotópicas
No desespero da mortalidade
Alegorias distópicas da vida
Extremamente opressivas
Antiutópicas
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CANTO REPENTINO
ESCRITO PENDENTE
Sujeito à decomposição da matéria
Aberto à composição do conteúdo
Desencantado sob o novilúnio
Desenraizado dos neurônios
Desentranhado do juízo
Destituído de razão
Desviscerado
Apenas dito
E registrado
Escrito eternamente pendente
Fornalha imaterial de sonhos
Canto repentino e impreciso
Vertente de pensamentos
Cisterna de sentimentos
Variação de sensações
Variação de emoções
Canto dissonante
Quanto distante
Independente
Sem salário
Primário
Arrepio vertiginoso diante do precipício
Verbalização do medo em palavras
Que ecoam renitentes pelo mundo
Onde somos humildes residentes
Palavras endereçadas certeiras
Que ressoam misteriosas
Pelas cercanias
Onde moramos
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É dia . . . chegou a hora da coleta de lenha
Vai o velho lenhador e seu machado
Tosco como a pedra bruta
Pesado sobre as costas
É noite . . . eis a hora de acender a fogueira
Vai o ancião contar suas longevas histórias
Velhas memórias como as pedras do leito do rio
Lembranças de antigas conversas diante do fogo
É noite de sombras sob o plenilúnio
Vai o predador com toda voracidade
Devoradora de mentes despreparadas
Deletéria como um funesto sortilégio
Vai o homem caminhando
Solitário e sem nome
Sem deixar pegadas
No chão onde pisa
Vai o homem rodopiando
Como centro do mundo
Ensimesmado na dor
Da mortalidade
Vai o homem de verdade
Mostrar sua verdadeira face
No palco inexorável da realidade
Vai amargar o sofrimento sozinho
Vai ruminar novos pensamentos
Vai quebrando a casca do ovo
Para morrer e nascer de novo
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PALAVRAS EMERGENTES
DO FUNDO DO ANTIGO POÇO
Texto Insurgente
Escrito malsinado
Exposição Permanente
E mal vista pelos críticos conservadores
Eco maldito que reverbera pelo vale das sombras
Em plena crise da baixa madrugada . . .
Eco maldito que assombra a noite de seres assustadiços
Quando o silêncio é quebrado por sons inauditos
Quando tudo o que existe adormece ou morre
Fruto parido com sangue, suor e lágrimas
Com esforço humano concentrado
Com muitos gemidos de dor
Dentes afiados como acúleos mortíferos
Fantasmas esbranquiçados de pavor
Aterrorizando os mais fracos . . .
Enquanto o suor brota do pescoço
E encharca a gola das vestes
Malsinado Canto
O silêncio é deflorado por um choro terrível
Primeiro recanto arrancado com cruel violência
Demência provocada pelo olhar no vazio do mundo
Muito tempo esperando para nascer redimido e perfeito
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Escrito para revelar o que se queria encobrir
A vergonha de não termos feito acontecer
Canto que não é mal, que não é bom
Desafio doloroso para os mentirosos
Para os pérfidos e para os hipócritas
Que desfilam orgulhosos de dia
E rastejam entorpecidos à noite
Escrito noturno
Noturnos sons lá fora
Rebento da ansiedade
No dizer, no escrever
Fruto aéreo nos ouvidos
Disse o poeta:
“Às vezes me preservo, noutras suicido”
Anjo bom e mal profundamente incrustado nos sentidos
Silêncio quebrado pelo canto do pássaro soturno
Noites de vigília sem a ameaça de bandidos
Noites sem sombras de lobos predadores
E tudo se transforma ligeiro
Sob a Lei da Impermanência
Canto noturno, que era lúgubre
Passou da hora de dormir . . .
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O tempo adentrou pelo túnel deserto da baixa madrugada
E todas as coisas deixaram de ser o que sempre foram
As identidades se perderam no turbilhão das ventanias
E tudo acabou sem sons, reinando profundo silêncio
Depois do vento, silêncio madrugada a dentro
Silêncio! Aqui jaz uma sórdida dissimulação
Arrancadas as máscaras, restou o desespero
Que acabou em choro, que virou gemidos
Que acabou em contemplação
Exauridas todas as lágrimas
Escrito ainda desconhecido pelos doutos e apedeutas
Espremido entre penhascos e montanhas inarredáveis
Acordes terríveis cuspidos por entre caninos cerrados
Viajantes nascidos entre ferros e lamentos de aflição
Canto abafado pelo clamor de vozes impacientes
Seja como for, canto totalmente improvisado
Pelos dementes e ensolarados andarilhos
Das estradas deste mundo sem fim
Canto dos atingidos por demente agonia
Canto de desespero das horas noturnas
Que se vão com o despertar do dia
Sobrevoo dos últimos vagalumes
Que iluminavam a escuridão
Escrito adivinhado sem bola de cristal
Conexão de palavras pré-existentes
E submersas no fundo da mente
Palavras que se desprendem numa ordem misteriosa
Vocábulos renascidos das cinzas de um incêndio mortal
Frutos emergentes que atravessam as trevas para descobrir a luz
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Escrito temporão
Totalmente fora da linha
Fluxo e refluxo que nos prende ao passado
E nos liberta das amarras do presente
Arauto impreciso do futuro
Verdadeiramente
O último suspiro dos loucos
Que vagaram sós pela cidade
Que dormiram sob as marquises
Que olharam do outro lado do muro
Último refrão dos fiéis visionários
Que idearam novas e possíveis verdades
Cantilena de lamúrias dos cantores afônicos
Que não puderam subir ao palco e praticar sua arte
Derradeiro estertor dos moribundos
Enterrados vivos sob pedras e concreto
Que agonizaram solitários no frio e ao relento
Desamparados viventes entregues à própria sorte
Gemido subentendido no silêncio das paredes sem cor
Eco teimoso que reverbera pelos meandros do pensamento
Pegadas ao longo dos caminhos percorridos
Um olhar para trás. Vemos apenas pegadas
Nas calçadas mal delineadas e barrentas
Centenas de cicatrizes pelo corpo
Levado às lutas inglórias
Escrito misterioso
Caminhos escabrosos, que levam ao lugar dos pesadelos
Veredas estreitíssimas onde vingam os melhores frutos
Veredas que levam às regiões distantes do pensamento
Trilhas inusitadas percorridas com profunda atenção
Sempre em busca . . . frenética e magnífica caçada
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Canto redenção
Abertura de todas as portas
Quebra de todos os grilhões
Grito em favor da verdade
Que liberta nossas paixões
E nos torna completos
Ruptura que pavimenta a passagem para um novo ciclo
Onde ocorre o milagre do renascimento dos crentes
Conhecimento velado
Sob símbolos e alegorias
Vento que assobia nos ouvidos
Sopra suave canto e é o suficiente
Para nos manter vivos e conscientes
Com efeito, descortinam-se princípios não revelados comumente
Corrige-se a trama imprecisa da paixão pela fria racionalidade
Escrito sobre a imprecisão da verdade
Escrito inaudito
Renovação do discurso
Mergulho em águas profundas
Águas que limpam máculas pesadas
Bênçãos do Grande Geômetra em repetição
Privilégio concedido aos filhos iluminados
Que se superam resistindo bravamente
Enfrentando escabrosas batalhas
Na luta constante da vida
Sobreviventes, ressurgem mais fortes
Fadados a percorrer o caminho sozinhos
Sobreviventes que perderam o medo de viver
E de dizer a mais pura verdade aos equivocados
Que perambulam pelas ruas sem o mínimo sentido
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Escrito renovado pela inspiração
Magníficas corredeiras de palavras
Que dão forma à grandiosa experiência de escrever
O atrito do barro sobre a pele retira a sujeira do mundo
O corpo se torna leve e se movimenta na direção da luminosidade
A argila mística com o barro se confunde diante dos olhos
As substâncias se misturam num enlace definitivo
Escrito que ascendeu ao palco comovido
O palco vazio da folha virtual em branco
O palco navio a vapor que zarpa ligeiro
Levando nossos sonhos derradeiros
Apoteose verdadeira do navegante
Do ser que respira continuamente
Do coração que bate e não para
Do cérebro que não pensa
Das pernas paralisadas
As mãos fechadas
Dos olhos cegos
Furações e tsunamis devastadores
Do mundo sobrenatural assombroso
Para onde vão todas as almas penadas
Que não se conformam em terem morrido
Escrito do ser sofrido pela limitação do tempo físico
A fogueira da mortalidade queima com estardalhaço
Como preparativo para uma grande viagem de volta
Escrito em homenagem à eternidade vencedora
Que nos atrai para um estranho buraco negro
Escrito entre duas realidades antípodas
No plano físico dos castelos e das masmorras
A fogueira da mortalidade desbasta nossas asperezas
E faz com que guerreemos contra as nossas imperfeições
No mundo sobrenatural temos poções para todos os males
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Escrito de madrugada
Em plena alta madrugada
Escrito depois da madrugada
Reescrito ao alvorecer do dia
A relva ainda coberta pela geada
Escrito sob os primeiros raios de sol
Para receber a mais ampla iluminação
Caminho para o oriente na direção do mar-oceano
Busco a plenitude da insolação livre de sombras
Para dar morada a extravagantes pensamentos
Porteiras fechadas são rompidas de repente
Ondas gigantescas, tsunamis emergentes
Será plena a realização da felicidade
Em prol da consolidação da vida
Na reconstrução da sobrevida
Barreiras muito antigas
Precisam ser superadas
A alma recuperada
Os olhos abertos
O coração ativo
Prossigo!
Canto à nossa absoluta preservação
Reação das mentes rearticuladas
Contra a ação dos delinquentes
Contra à submissão da gente
Cooptada pura e inocente
Pela horda maliciosa
Escrito quando a força da matéria
Da baixa madrugada tão ligeira
Do derradeiro suspiro noturno
Ante da luminosidade do dia
Eliminar todos os males
E os últimos pavores
Da nossa ficção
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Escrito de louvor à resistência
Resistência calcada na pura tradição
Dos que sabem enfrentar a carga pesada
Firmes e sem a vontade hormonal dos iniciantes
Aves canoras maturadas já não cantam como antes
Canto à progressiva demência
Canto ao esquecimento recorrente
Não aceito à dor sem uma explicação
Ajoelho sob as águas correntes da bica
E suporto o peso nos meus ombros
Vasculho escombros e grotas
À procura de sobreviventes
Não procuro esqueletos
Procuro gente
Gente viva
Ativa
Gente que ouça as novas cantilenas
Mesmo que já não ouça como antes
Cantores artistas num coro uníssono
Vozes uníssonas num som intrigante
Os velhos já não cantam como antes
Escrito que parece diferente
Não parece canto, mas é canto
Destinado a todos com pretensão
Escrito específico para confundir
Escrito para o registro da emoção
Escrito sem fundamento nos fatos
Escrito para preservar a linguagem
Das palavras que emergem do poço
Invocação das incertezas do homem
Águas correntes incertas que se vão
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Mensagem afetiva à deriva em procura de uma ligação
Seres iluminados que se encontram e se completam
Que se interpenetram num amplexo secreto
Seres discretos que transitam no mundo
Que reverberam gemidos de felicidade
Seres de verdade na senda da vida
Feliz inspiração que se contenta em permanecer escondida
Imanente ao potencial programado desde sempre na alma
Longe do mundo profano. Jornada de volta desconhecida
Parece canto, não é canto, é apenas o sussurro do vento
É apenas a natureza expressando profundo lamento
Porque percebe paralisada todo o nosso sofrimento
Porque seu único receptor não tem ouvidos
Não tem juízo e muito menos tem coração
Escrito recanto recriado reluzente e acolhedor
Escrito para forjar uma cisterna benfazeja
Um ventre materno quente e inspirador
Canto para conceber entre paredes frias
Esse pesado sofrimento que não passa
Este peso da solidão dos dias e noites
Esse olhar sempre buscando você
Escrito para consolidar pilares resistentes
Ao imenso peso que se arrasta atrás de nós
Canto para abrir as vísceras dos compositores
Dá-me, Senhor dos Mundos, todo o teu sofrimento
Que já sofrestes muito por nós, meu querido Criador
Seja como for fica espancado o sofrimento anacrônico
Escrito para aliviar a tensão dos caminhos deste mundo
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Encanto restrito aos crentes
Limitado ao campo de visão
Aberto à todas as compreensões
Percorrendo os caminhos medianos
Transpondo rodos os limites do tempo
Sem receio de ser assaltado pelo inimigo
Forte ante o sofrimento sem sentido ético
Atento às toadas maviosas que percorrem
As rotas dos Sete Mares e do oitavo oceano
Que reverbera misterioso em nossos ouvidos
Que provém da secreta circulação das sereias
De um lado a outro no bojo distante do inefável
Procurando enfeitiçar os homens livres e corretos
Para que tombem sem volta nas águas escabrosas
Escrito para aliviar a tensão
Milhões de voltes de tensão
Milhões de corações batendo
Homens tresloucados à procura
De signos que definam o código
Enquanto a comunicação existir
Progressão geométrica dos piores pesadelos
Canto para recebê-los como sonhos ligeiros
Enfrento as forças misteriosas da literatura
O sutil desafio da concatenação da mente
Como se fora um poço muito profundo
Emissor de palavras encadeadas
Numa obra imperfeita e finita
Obra bonita de um artista desconhecido
Um artista? Apenas uma obra bonita
Escrita para romper com o mundo
Aquele paralelo em que transitas
Nem mesmo uma obra bonita?
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Apenas uma obra que resgata
O vazio da noite do poeta . . .
Cerebral cisterna
Fonte fecunda de ideias
No cérebro estão palavras antigas
Palavras equívocas, com várias acepções
Gradação de valores estampada na substância
Que viaja livremente pelas pontes de neurônios
Escrito aberto para o dia e para a noite
Canto inspirado na luta dos sentidos
Extraído das armadilhas escondidas
Aprendido nos tombos e recaídas
Estrada aberta, trilha selvática e sinuosa
Que leva às distantes regiões do Universo
Que leva a paragens estranhas do pensamento
Que abre os portais dos bosques ermos e misteriosos
Escancarando as portas dos campos mal-assombrados
Estrada direta para descobertas inauditas e emocionantes
Curso superior de um rio caudaloso
Que nasce nas montanhas distantes
Que leva suas águas corredeiras
Ao abraço do oceano acolhedor
A porta de madeira rústica entreaberta
Deixa entrever o interior da masmorra
Os riscos se fazem sempre presentes
Mas seguimos intrépidos em frente
No mais das vezes, arriscando tudo
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Fazemos tudo para desvendar os segredos
Que nos permitam uma vida melhor
Mas nem sempre é possível vencer
Escrito revelado, sem uma revelação
Ortografado com os pés no chão
Terreno, terráqueo, todo sereno
Filho da cruel mortalidade
Canto entusiasmado pela verdade
Relativa a cada campo de visão
A pensada verdade é variação
É contada pelos velhinhos
Rebentos de cada tempo
Tem múltiplas concepções
Na diversidade de mil olhares
Que miram os diferentes pontos
Por isso, a verdade pertence a todos nós
Depende do coração e do entendimento
A verdade é um supremo momento
Marcado por pontes de encontro
Ao invés de pomos de desunião
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ESCRITO ABRASIVO
Entrementes
A verdade é imposta
Por um tiro de canhão
Deletéria imposição do mal
Estratagema da mente carnal
Geração de submissão e sofrimento
Domínio sobre a geração dos mais fracos
Animal fantasmagórico na saída do túnel
Pesadelo onde nos encontramos presos
Dor que vai minando todas as reservas
Consumindo o fogo que nos mantêm
Corrosão das colunas de sustentação
Tempos de muito frio no meridiano
Os caminhos estão congelados
As trilhas estão inacessíveis
O túnel só tem uma saída
Sempre em frente
Portal dominado pelo animal fantasmagórico
Que nos aterroriza durante a baixa madrugada
E impede que saiamos em busca de nossa libertação
Momentos de silenciosa autointrospecção
É preciso determinação para vencer o medo
É necessário enfrentar as feras mais poderosas
Que habitam as complexas regiões do pensamento
Para conquistar a liberdade de poder ser ou não ser
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Tempos de compreensão da realidade
O macaco gorila veio do seio do homem
É o mais encorpado dos grandes primatas
Heresia biológica aparentemente inverossímil
O comportamento do homem qualifica o macaco
O homem é mera oscilação entre extremos
É mísero pêndulo a balançar vulnerável
Ao ritmo cardíaco do próprio coração
É um ente perdido na multidão, sem nome
Que se encontra nos quatro cantos do mundo
E quando olha no espelho, enxerga a imagem de Deus
ESCRITO FRUTO DE ESPINHOS
Vertente escrita quase vertical
Recepção das águas cristalinas
Que se precipitam em queda livre
Declive muito desejado pela potência líquida
Que necessita explodir suas águas nas rochas
Transformando-se em milhões de gotículas
Que se espalham aleatórias pelas pedras
Metáforas levadas pelo vento
Como se fossem folhas coloridas
Enigmas formados pelas nuvens passageiras
Um raio de sol, em despedida, interrompe tudo
Morte e vida
Vida e morte
Ciclo vertente
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Um raio de sol liga os dois mundos
Ponte luminosa que nos incita à travessia
Na senda da superação dos limites humanos
Acima do plano físico, do profano e exotérico
Esgaçamos ao máximo os nossos sentimentos
Comoção dos seres vivos sensíveis à luz
Renascimento depois de vagar pelas trevas
E escuridões do submundo incompreensível
Superação de nossas limitações
Pelo simples caminhar com direção
Pulo de olhos vendados no abismo profundo
Com a confiança cega de que o bem triunfará
Caminho iluminado, suave e silencioso
Que nos projeta seguros em direção da luz
Com o Sol, a Lua e as estrelas, ao mesmo tempo
Presentes e vibrantes no pano escuro do firmamento
Alhures, escrevi que a verdade é variação
Canto à liberdade de discernimento
Independência de entendimento
Autonomia de intento de ser
Firme intenção de sempre evoluir
Nada obstante as trevas insidiosas
Que nos envolvem sem tréguas
Agora é tempo de escrever poesia
Sobre caminhos e sendas de vida
Não sobre os mais escabrosos
Mas sobre as estreitas veredas
Que nos experimentam
Que nos aperfeiçoam
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Trilhas retilíneas em oposição às curvas sinuosas
Onde amadurece todo o tipo de fruto venenoso
Estrada de vida e da morte tão iminente
Que não permite nenhum titubeio
Qualquer receio é perda de vida
Estrada ladeada por muitos espinhos
Acúleos que supliciam e nos purificam
Estrada em cujo precioso caminho do meio
A frutescência gera apenas os frutos mais apetitosos
Caminhos de luz e de saldável entretenimento
Estância edênica transportada para o nosso deleite
Onde vicejam os pessegueiros e as malditas macieiras
Os primeiros, com suas flores fecundas e alvissareiras
E as macieiras, ah as belas macieiras, escondem a serpente
Fruto maduro para os mais vis sentidos ao alcance das mãos
Olhos maravilhados veem as chamas consumirem o pecado
E a infinita quantidade de estrelas fulgurantes no firmamento
Serão nossas futuras moradas aos olhos dos que tiverem saudades
Pelos caminhos mais espinhosos, os melhores frutos
Antiga sabedoria, que se atualiza a cada geração
Percorri longos quilômetros à margem do rio
Na intenção de cruzar para o outro lado
E quando me deparei com a ponte
A madeira estava podre
Não fiz como o sacerdote cruzado fanatizado
Que não convenceu o Cavaleiro Brancaleone
E no terceiro passo despencou no precipício
Desci a encosta em direção à grota profunda
E cruzei a nado águas cristalinas e fundas
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A travessia para a outra margem foi arriscada
Os menos atentos sucumbiram no abismo profundo
Mas lá os frutos cobiçados se mostraram abundantes
Saciada a fome que nos doma e crucia
Seguimos pelo labirinto de trilhas
Rosetas agressivas sob os pés
Um desafio para os andantes
Perigo ao longo da trilha
Em meio à natureza viva
Flores de todas as cores e formas
Corujas gigantes como sentinelas impassíveis
E os frutos saborosos pendurados por entre espinhos
ESCRITO INDUVIDOSO
Na Terra não existe perdão para os insubmissos
O homem é o pior carrasco de sua espécie
Verdugo sem consciência do inimigo
Os grilhões do erro precisam ser rompidos
E a autoconfiança da gente precisa ser restaurada
Na certeza de que este é o destino da humanidade
Potência solidária humana sobre a Terra devastada
Que acudirá a todos os homens ao se revelar, de repente
Que se abrirá para uma nova era sem conflitos, nem guerras
Com toda gente irmanada na derrocada das ideologias ruins
Difícil experiência de vida e arriscada quimera
Perigosa viagem por trilhas a beira do abismo
Dos que acreditam nos próprios pesadelos
Temor dos viventes à insolação deletéria
Devido à destruição da camada de ozônio
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Fim das sombras das últimas matas, selvas e florestas
Sob o sonoro discurso de demagogos mal-intencionados
Que enganam aos povos desavisados ao longo do tempo
Que desviam o nosso olhar dos objetivos mais relevantes
Maldita ficção fadada a se transformar em realidade
Subjugada pela infalível Lei da Matemática
Múltiplos potencializados garantem a vida
Pelos mundos do infinito macrocosmos
Ainda que outros mundos, numerosos
Se consumam estéreis e desabitados
Aproxima-se o fim da vida que nos resta
O azul se cobriu de cinzas para sempre
O útero estéril sangra silenciosamente
Quando o homem titubeia vulnerável
No emaranhado de seus desenganos
Não queremos ficar sozinhos neste planeta
Não, não queremos ficar isolados nesta Terra
Mesmo que descubramos novas imagens de Deus
Queremos coabitar os mundos pelo Universo afora
Adormeço com a mente abeta para receber os sonhos
Durante o dia percorri a pé as trilhas urbanas asfaltadas
Os olhos arregalados atuam como janelas pirotécnicas
Sensíveis às lâmpadas de néon dos grandes anúncios
As trevas dos becos imundos do submundo urbano
Transformam os ouvidos em caixas receptivas
Por onde entram todo o tipo de som e ruídos
A mente viajou para muito longe à noite
O que foi visto será revelado sem aviso
A energia preciosa que se acumulou
Será despendida em nossa defesa
Contra as forças do improviso
Contra a letal negligência
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A mente também foi armazenando com o tempo
Todas as lamúrias das mulheres desvalidas
Com suas crianças de colo subnutridas
Como prova de seu desamparo
A mente excitada foi armazenando
O discurso desconexo dos bêbados
Que se levam a sério quando falam
Assimilou a arrogância dos tolos
Que têm somente a visão parcial
E se sentem os donos da verdade
O povo eleitor estupefato
Não aplaudiu, tampouco vaiou
O reles discurso dos despreparados
A mente desanimada silenciou sobre a matéria
Os batimentos cardíacos diminuíram sensivelmente
A aura desbotada quase desapareceu levada pelo vento
Misteriosa força que nos arrebata o pensamento para longe
Que nos eleva sobre as rosetas do caminho e nos mostra o paraíso
PRIMEIRAS PEGADAS
PRISIONEIRAS PARA SEMPRE
Confessa, condenada e perdida mente
Isolada num canto qualquer do mundo
Como se nunca tivesse sido o epicentro
Duma dramática e devastadora erupção
Ego pretensioso, como se fosse o único
Mente violada pelos declives do submundo
Estranhas esquinas, desgastadas pelo tempo
Onde pousam as mariposas atraídas pela luz
Poses incitantes amparadas em postes elétricos
Onde figuram os mais coloridos anúncios de néon
Portas abertas que permitem ver corredores estreitos
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No ocaso do sol, além das montanhas oestinas
Depois do fugidio arrebol com suas cores de fogo
Acendem-se velhas e conhecidas luzes intermitentes
Instigantes faróis que imperam sobre as consciências
E como as mariposas, os navegantes perdem o rumo
Corredores percorridos pela perigosa imprudência
Corredores frequentados por visitantes apressados
E por aqueles que se esgueiram entre as sombras
No afã de escapar incólumes da vossa censura
Aqueles mesmos que se esquivam de dia
Para esconder as olheiras reveladoras
Critico àqueles que são os primeiros
A lançar um veredicto condenatório
Sobre os atos de terceiras pessoas
Mascarando a própria ignomínia
Corredores percorridos desde o início dos tempos
Muitos companheiros em busca do desconhecido
Todos solícitos, inconsequentes e desatinados
Aguçaram o olhar na penumbra de vapores
E desceram temerários o declive misterioso
Como cachorros perdigueiros magnetizados
Pisotearam o canteiro e arrancaram as flores
Em busca desenfreada de aventuras noturnas
Damas da Noite, aparentando vinte e um anos
Foram cisternas acolhedoras por três instantes
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E os ditos cachorros, então leves e satisfeitos
Como passarinhos ligeiros e despreocupados
Correram dissimulados de volta para o ninho
Querendo fazer de conta que a vida transcorre
Sem que restem mínimos vestígios das pegadas
Que ficaram esquecidas nestes tristes caminhos
Pegadas eternizadas no barro, que se consolidou
Pegadas esquecidas no vão estreito da lembrança
Escondidas passagens pelos labirintos subterrâneos
Que levam sempre e cada vez mais em direção ruim
CANTO DESESPERO
Invocação dos mais sábios
Insuspeitas e prestimosas pessoas
Anjos cada vez mais raros na Terra
Interlocutor privilegiado do mestre
Que prefere se calar e ir para longe
Percorrendo caminhos de versos
Diversos desvios de obstáculos
Deslizes de pedras evitados.
A rima corta o descampado
E penetra no imo
Do teu coração
Elétron orbitando as camadas do Universo
Conexão entre as infinitas ondas cerebrais
Ruptura com os métodos pré-concebidos
Livre exercício do direito fundamental de descoberta
Respiração profunda que fortalece o pulsátil coração
Liberdade de pasto e de ir e vir para todas as gazelas
Os leões se pacificaram ou foram todos enjaulados
Os tigres listrados perderam a tradicional bengala
E estão se locomovendo em cadeira de rodas
A onça-pintada virou suçuarana
E a suçuarana desapareceu!
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Será que é por isso que eu choro?
Com o músculo cardíaco vibrante
Bombeando sangue pelas artérias
E trazendo de volta o venenoso
Respiro o oxigênio do mundo
Inalo um milhão de partículas
E como um fole poderoso
Espirro renitente
Venenoso sim!
A chuva e seus sons magníficos
Cada respingo em minha face
É um banho de vida
A intensidade do barulho d’água no solo
Caindo vertical e furiosa sobre as pedras
Elimina todos os outros sons da natureza
É como estar dentro das águas da cachoeira
No vão da montanha esverdeada pelo musgo
Respiração profunda que oxigena os tecidos
E libera a audição para a estrondosa sinfonia
A sinfonia natural e singela de um único som
Que deflagra o mais profundo adormecimento
Sono embalado pelas tempestades e seus anjos
Anjos de neon, coloridos e estáticos
Lamparinas dependuradas no teto
Sobre nossas pequenas cabeças
Acordadas dentro dos sonhos
Cabeças ocas transformadas
Onde explodem os acordes
Da sinfonia de um único som
Vida para um intelecto buscador
Emoção de um coração bem formado
Redenção dos desperdiçadores de energia
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Anjos de luz que habitam o Universo
Valentes combatentes na resistência
Contra as forças malignas à espreita
A diferença entre o bem e o mal
É que o bem deve ser construído
O bem prevalece apenas se alimentado pelo homem
Requer cuidados incessantes, senão definha e morre
O mal nasce como a velha e conhecida erva daninha
Cresce mesmo submerso pelas águas da enchente
E vinga prescindindo de água na estação do estio
O velho deserto nos envolve com sua magia
Cactos revestidos de espinhos acenam misteriosos
Uma caveira e duas tíbias jazem jogadas sobre as pedras
Na hora em que a presa e o predador se põem em movimento
Bem e mal, são apenas conceitos sublimes diante da fatalidade
Cruel o desespero dos que veem a manada
Conduzida por pastores inexperientes
Atravessando um rio de piranhas
Cruel o desespero dos que presentem
O macabro movimento das sombras
Bruxuleantes em torno dos homens
E não conseguem se movimentar
Jazem paralisados como rochas
Por um caminho menos perigoso tem andado o cego
Que apesar de não ver a forma do mundo exterior
Sente a presença das sombras em torno de nós
Nos caminhos escabrosos que percorremos
E segue firmemente num rumo diferente
29
É noite de jornadas de busca
Vem a madrugada esplendorosa
E o frio se intensifica mortalmente
É noite de busca pelo Velocino dourado
Participam apenas Cavaleiros destemidos
E submissos ao Senhor de todos os mundos
É noite. Os inocentes estão aprisionados em suas casas
A praça, seus bancos, seus recantos, ficou abandonada
Os personagens diurnos do bem desaparecem de cena
Restando a descoberto os miseráveis sem teto
Encobertos pelo papelão e cobertores úmidos
Encolhidos sob as marquises circundantes
Malsinados e vulneráveis inquilinos do nada
Noites passadas sob anúncios multicoloridos
Neon: luz presente nas esquinas escabrosas
A realidade é como um livro fechado
Para os olhos sem compromisso
As praças ficam desertas no frio
Os desvalidos vão se encolher
Perto das vistas e indiscrições
Dos que passam de carro
Separados do submundo
Por uma película escura
Por uma blindagem metálica
Com os órgãos saturados de fel
Estes que têm um corpo maltratado
E o espírito escravizado a devaneios
Jazem inertes sem pensar no amanhecer
30
Malícia no teu pensamento
Malícia no olhar e no sentir
A serpente rasteja em silêncio
Pedregulhos, cactos e espinhos
O réptil espreita a nossa fraqueza
Assombração dos terrenos baldios
À procura de néscios para o trabalho
Força maligna constantemente presente
Entidade perniciosa e sugadora de energia
Fantasia amedrontadora de um espírito decaído
Fruto partido, arremessado ao chão com desprezo
Este é um tempo infeliz da malvada gente má
Becos sem saída, único refúgio dos toxicomaníacos
Contatos sub-reptícios desde os subterrâneos urbanos
Choro dos desvalidos e vulneráveis abafado pelo medo
De sofrer ainda mais os maus tratos dos entorpecidos
Braseiros diminutos passando em todas as bocas
Olhos rachados, profundamente cavados
Nas órbitas ósseas do rosto
Rugas quase verticais como raízes
De um devaneio violento de vida
E de morte sempre iminente
31
CANTO VERTENTE
Somos indeterminações permanentes
Desconhecemos nossa própria imagem
Que não se reflete na superfície do lago
Variação dos seres pensantes inacabados
Que se metamorfoseiam inconstantemente
E jamais adquirem forma humana definitiva
Voo totalmente livre, sem uma rota estabelecida
Vertente de pensamentos que ultrapassam fronteiras
E deslumbrados tornam as cores da natureza mais vibrantes
Batimentos cardíacos que retumbam e ecoam dentro do corpo
Exercício de invisibilidade das asperezas e arestas
Paralisado sobre uma duna ensolarada e proeminente
Invisibilidade alcançada pela cessação dos movimentos
Apenas a respiração e os olhos perscrutando os arredores
Visões espetaculares de bandos de passarinhos primitivos
E seus voos rasantes rente à vegetação rasteira da restinga
Aparições animadas e multicoloridas
Em contraste com o fundo verde da vegetação
Cactos em plena florescência emoldurando o mundo
Feliz, felicíssima conjugação
Estrelas como orifícios de passagem
Para o mundo dos sonhos, bons ou ruins
Cometas como bólidos de transporte entre mundos
Com destino às regiões universais onde o Sol jamais se põe
Navegação especial em velocidade onírica
Até o outro lado do muro, o lado escuro da Lua
Mirante cósmico de onde contemplamos o espaço
Livre arbítrio do homem para sonhar, escrever, viver
E proclamar a sua liberdade de ser e de poder não ser
32
CANTO DESATINO
CANTO DA MORTALIDADE
Abomino a mortalidade, mas saúdo a morte
Tal como a carne deve se desprender dos ossos
E os ossos tornarem ao pó enriquecendo a terra
A consciência que temos de tudo o que nos cerca
Deve desapegar-se do desejo de viver eternamente
O mundo físico é rico em prazeres
A experiência sensorial é envolvente
Leva ao desejo de viver para sempre
Mas morreremos muito antes do tempo
Num piscar de olhos passamos por este mundo terreno
O que perdemos com a morte? Perderemos algo bom?
Servirá de consolo também perder o sofrimento?
A dor, a solidão, a doença incurável e a tristeza?
E os outros males que nos escravizam dentro de um corpo
Que desde o nascimento vai progressivamente morrendo
Pelo escoar das águas ligeiras sob a ponte do rio?
Seixo rolado até se ver de todo consumido
Sem noção do mundo e sem conhecimento
Fruto parido, untado de sangue e fluídos
Nascido de quentes entranhas humanas
Enquanto os vagões puxados pela locomotiva vão passando
Um a um, na janela do tempo, fruto maduro não colhido
Na ilusão de que o tempo é duradouro
Despenca no chão fruto apodrecido
33
Nada obstante seja fantasmagórica
A personificação da morte é pedagógica
Na figura da tenebrosa ceifadora de vidas
É preciso, no entanto, viver a vida
É possível dar-lhe um sentido ético
Impondo à consciência desapegar-se
Do desejo insano de viver eternamente
Viver esse fugidio e colorido instante
Na impermanente condição humana
Entendendo o que disse o boêmio
É melhor viver com intensidade
Com paixão e envolvimento
O que o tempo permitir
Buscar aqueles desejos ardentes
Que não sejam impossíveis
A busca por um sentido
Busca cotidiana, insana
Turbilhão de pensamentos, devaneios e desejos
Águas revoltas e misteriosas diante dos olhos
A ampulheta do tempo virou de repente
A areia ligeira escorreu para sempre
A vida gira em torno de si mesma
Ascensão, apogeu e decadência
A ascensão é muito lenta
O apogeu é rapidíssimo
E a queda violenta . . .
Com muita dor
Seja como for
Abrupta
34
ESCRITO SOLITÁRIO
Quanta vaidade esconde-se em mim
Que não me permite perceber o óbvio
E coloco o próprio ego no centro do mundo
Querendo ser Adão entre bilhões de homens
Leva à colheita de um único fruto: a solidão
Solidão de quem espera por um longo tempo
De quem acredita sem ser correspondido
De quem ama em silêncio sem ser visto
De quem chora a solidão nas sombras
Solidão sentida por quem vislumbra da janela
A rua escura, erma, as lâmpadas quebradas
Os caminhos e atalhos mal iluminados
Enorme peso na consciência automaculada
Após a euforia marcada nos primeiros segundos
Depois do êxtase sem medida das festas desvairadas
Depois do gozo cujas consequências não foram premeditadas
Muitas palavras, nenhuma interlocução, nada
Solidão dos apaixonados, que amam escondidos
Ocultos pela cortina de não serem correspondidos
Solidão dos visionários que planejam muitos sonhos
E são derrotados impiedosamente pela realidade
Sofrem contritos nos quatro cantos do mundo
Solidão dos poetas românticos
Que falam uma linguagem idílica
E quanto mais cantam mais amam
E cada vez são menos correspondidos
35
Solidão de Deus, ignorado pelo homem
Solidão do homem, ilhado num pesadelo
Coração dilacerado pulsando sem vontade
Solidão profunda, triste realidade
Marcada pelo distanciamento físico
No meio da multidão de internautas
Que esqueceram do calor do contato
Estejam avisados: Cuidado! Perigo!
Trilhas traiçoeiras e atalhos truncados
Declive desconhecido em chão de barro
Corredeiras que se precipitam poderosas
Em direção ao precipício da sofrida solidão
Mergulho frontal na grota escura e misteriosa
Escrito de um ponto solitário e desconhecido
Discurso imaturo, fugaz e despretensioso
Como o grito de homens primitivos
Ecoando pelo coração da floresta
De montanha em montanha
Muito cuidado, perigo!
Discurso de homens solitários e desprotegidos
Que percorrem o caminho de todas as dores
Que percorrem trilhas muito arriscadas
Para, sozinhos, morrer lentamente
O grito apreensivo desencantado de homens
Absorvidos pelo turbilhão do cotidiano
Que ainda não aprenderam a sorrir
Que apenas se dedicam a procriar
Grito persistente na luta pela sobrevivência
Grito que nos liberta das cadeias do esquecimento
Flocos de neve congelando os extremos do mundo
Fazendo os sofridos corações congelar de tanto frio
36
PERCORRENDO A TERRA
Eis que chegou o tempo de movimentação
Percorrendo as veredas repisadas do sertão
O tempo das correrias pelas trilhas estreitas
Quando entre as pedras a jararacuçu espreita
E crava deletérias presas na carne inadvertida
Provocando a fétida ferida nos tecidos afetados
Abatido o homem capitula e morre
Mas depois vem outro homem
E percorre o mesmo caminho
E mais tarde outro, sem parar
Os caminhos são concretados
As trilhas recobertas de asfalto
Até a pior das áspides retrocede
A víbora acuada recua contrariada
Pelas vibrações dos passos do homem
Botas pesadas esfacelam a cabeça da serpente
Mesmo a mais temível encantadora das florestas
Prefere se esgueirar por entre a relva e sumir no mundo
A Terra não é mais a natureza sem fronteiras
A Terra sem limites, os mares e oceanos sem fim
O mundo encolheu parecendo uma pequena aldeia
Os mesmos espaços são disputados com muito sangue
Bandos de homens resistem ao ataque das alcateias famintas
Percorrem unidos longos caminhos migratórios fugindo do frio
37
A natureza foi duramente agredida
A humanidade é uma doença invasiva
Pandêmica da Linha do Equador aos polos
Migram os clãs armados de clavas e crenças
Entrelaçam-se as redes de interesses humanos
Crescem as históricas contrariedades intertribais
Napalm deletéria luz que abre os portais das trevas
Gás sufocante que paralisa as vísceras avermelhadas
Bombas atômicas formando cogumelos no horizonte
Onda mega-atômica de calor que nos elimina fulminante
Fim da jornada dos homens na Terra
Choram as poucas musas sobreviventes
Ficaram aprisionadas no vazio do mundo
Não ouvirão as promessas dos apaixonados
Não terão por quem olhar na senda da vida
Apenas poderão lembrar dos sutis acordes
Produzidos na lira do inigualável Apolo
Terra! Pequeníssima esfera, nossa mágica morada
Pulsante ponto geométrico em viagem acelerada
Na desconhecida direção do universo profundo
Na direção da estrela que também viaja
Para confins que ainda não alcançamos
Senão com o pensamento!
Legado divino para o homem
Herdeiro pensante privilegiado
Cujo mérito é um grande segredo
A sete chaves simbólicas guardado
Além do grau de nossa compreensão.
Quem poderá negar o mérito do homem
Se o Grande Arquiteto o elegeu como favorito?
Eleito e elevado à semelhança daquele Criador incriado
Onde estão os detratores da criatura do Grande Geômetra?
38
Todos, sem exceção, silenciaram!
O homem tem licença para matar
Desde a gênese do paraíso perdido
Jaz esquecida numa cova sem nome
A mais recente vítima do homem
Esse incendiário irresponsável
Que não respeita a Criação
O homem arou a Terra para sobreviver
Derrubou árvores frondosas para morar
Num verdadeiro sapateado edênico
Consolidou caminhos e atalhos
Ao percorrer as mesmas trilhas
Pastoreando seu parco rebanho
Junto aos seus cães pastores
E com seus filhos pequenos
Desde cedo aprendendo
O homem submeteu a Terra para sobreviver
Nas fogueiras domesticou o bicho do mato
Lobos que se aproximaram paulatinamente
Atraídos pelo cheiro inebriante de comida
O homem rasgou o ventre da Terra para sobreviver
Plantou muitas sementes para alimentar seus filhos
E gerou muitos filhos porque não tinha consciência
Dos efeitos deletérios para o pequeno Planeta Terra
A Terra se viu totalmente dominada por uma nova fera
O homem aprisionou os pássaros em gaiolas diminutas
Privando a si próprio a visão do voo das andorinhas
Porque não tinha nenhuma consciência ecológica
Vai o homem arrastando seu arado
Vai derrubando as florestas do Norte
Restam desmatadas as matas europeias
Restam destruídas as selvas setentrionais
Da Nova Inglaterra às costas do Pacífico
E a Amazônia ainda continua viva e fecunda!
39
Entrementes, alimentemos a esperança
A partir do conhecimento do homem
Civilizar o homem na senda da paz
Conhecer a fera, entender sua dor
Defender a Terra vulnerável
Do esfomeado predador
A pirâmide pentamilenar direcionada para o infinito
Símbolo pedagógico para os iniciados nos mistérios
Melhor representa o escalonamento da humanidade
Poucos no ápice da sagrada figura geométrica
Muitos na base aprisionados pela ignorância
O melhor do homem, percebe, critica, conclui e chora
Porém, os milhões que compõem o pesado corpo da pirâmide
Percorrem o caminho do entendimento se arrastando pelo chão
Deixando atrás de si um longo histórico de profundas lamentações
Estamos na Terra, vivendo a vida da adversidade
A vida do desafio, do imprevisto e da superação
A janela do carro é um portal que nos isola
Imunes ao lado de fora, tão ameaçador
Pedras são postas no meio do caminho
Pedras são arremessadas com inveja
A mão que as arremessa é a mesma catapulta
Que, escondida, sempre apedrejou aos outros
Fossem culpados ou inocentes, bons ou maus
É a mão deletéria a serviço da vontade obtusa
É o gesto que faz estremecer nossos corações
É a notícia manifesta nos ouvidos que elimina
Todas as mais otimistas possibilidades de cura
40
Contudo somos os modernos habitantes da Terra
Continuaremos percorrendo as veredas do mundo
Escavando sempre fortes trincheiras de Resistência
Resistência dos que têm fé na teimosia dos homens
A esperança é a heroína que falece no campo de batalha
Ela estremece diante da incapacidade do ser humano
Em perceber o mundo além da janela do automóvel
O animal social definitivamente não é coletivo
Homem parasita e destrutivo
Condenação da Terra à devastação
Homem insidioso sempre operativo
Degradação da natureza pela ambição
Os caminhos desembocam em becos escuros e perigosos
Becos onde o teatro da vida é asperamente dramático
Onde a dor já cicatrizou e sequer faz diferença
Onde pequenas e vulneráveis criancinhas
Acumulam experiências como vítimas
Atores mirins num palco de horrores
Que sofrem e morrem precocemente
Saiamos pelas ruelas escuras à procura
As lanternas foram distribuídas de antemão
Encontraremos grades, cercas elétricas e muros
Saiamos pela noite percorrendo a trilha distante
No alto da montanha onde se esconde a suçuarana
Longe das luzes artificiais e do murmurinho da cidade
Encontraremos estrelas flamejantes e pequenos vagalumes
41
Busquemos a verdade das ruas e das praças
E encontraremos toda sorte de seres abjetos
E suas vulneráveis vítimas. Persistamos!
Meu sofrido coração continua batendo
Batendo lento, mas batendo teimoso
As mãos seguem no triste aceno
Os olhos dormem fechados
Lubrificados internamente
Por lágrimas salgadas
Parece que o alto da montanha já tem dono
Então busquemos outra montanha para morada
Necessitamos estar sozinhos em nossas meditações
Às vezes, distantes do mundo, apartados da vida urbana
Respirando ar puro, livres finalmente do monóxido de carbono
CANTO À EVOLUÇÃO
Um chamamento que ecoa em nossos ouvidos
Uma chama se acende no escuro do mundo
Um coração assustado dispara no peito
E a inteligência vai tomando forma
Percorrendo nossos pensamentos
Fruto que desceu das árvores para pisotear a relva
As palmas das mãos suando frio, os olhos arregalados
Percepção misteriosa que transita entre emoções e ideias
Que faz o coração bater insano, mais acelerado . . .
Entrementes chegamos aos extremos do Ocidente
Conscientes do legado recebido por nossa geração
Os pés ligeiros ainda percorrem longas caminhadas
Determinados enveredamos por trilhas de barro e pedras
Um chão de areia e poeira nas subidas ou descidas do estio
42
Abriu-se um grande portal para o cosmos
O Homem engenheiro encolheu a Terra
Os neonavegantes dos mares virtuais
Geração de engenheiros eletrônicos
Neodescobridores do Novo Mundo
Revolucionaram a tecnologia
Os caminhos imateriais do pensamento
São as novas rotas dos descobrimentos!
A inteligência será suficiente para redimir o homem?
Quanto maior o poder de fogo, maior a combustão
Gases perniciosos que se esgueiram por entre vãos
O alarme estridente tem acordado muita gente
Entretanto, sigo renitente e não desisto
Em viajar entre os extremos do mundo
Optando pelo caminho do entremeio
Percorro as verdejantes planícies
Molho meus pés nos alagadiços
Vislumbro os antigos mistérios
Enxergo as antípodas da vida
O que escarafuncha embaixo
E o que olha lá para cima!
A Terra é mera espaçonave
Onde todos nós coabitamos
Na qual viajamos irmanados
Na plenitude de luz e de sorte
Neste bólido vivo varamos o cosmos
É a jornada épica dos Filhos de Deus
Nas veredas infindáveis do Universo!
Nem todos verão a luz dos sóis pelas escotilhas
Muitos morrerão exaustos no calor dos fornos
Nas linhas de produção enlouquecedoras
Que os escolhidos os representem
Quando um novo amanhecer
Surgir para o homem
43
CANTO DOS NOCTÍVAGOS
Primeira Jornada
Uma verdade cristalina se revela:
Para aqueles micróbios unicelulares
Infinitamente menores que o homem
Somos um firmamento desconhecido
Nós também não enxergamos o Criador
A faceta palpável do Grande Geômetra
Assim como os infinitamente pequenos
Não nos veem como realmente somos
São seres ínfimos que desprezamos
Mas eles nos sentem, nos pressentem
Oram cantilenas de alegria em novena
Buscam desesperadamente por proteção
Genuflexos, se tivessem joelhos para ajoelhar
Clamam pela total preservação do nosso corpo
Nós somos deuses pelo calor que emanamos
E os seres invisíveis estremeceriam de emoção
Pelo simples vislumbre de nossas sombras humanas
Estejamos conscientes e sigamos cantando com afinação
Cantemos uníssonos madrugada a dentro
Iluminados pelas estrelas do firmamento
Canto entoado por vozes emocionadas
Canto das aves noturnas misteriosas
Avenidas, alamedas, ruelas e becos
E seus frequentadores noctívagos
44
Olhos enormes, arregalados, perscrutando o derredor
Pensamentos focados na busca do caminho libertador
Que nos leve às estrelas e traga de volta à nossa origem
Andarilhos noctívagos munidos de poderosas lanternas
Solitários se projetam por um longo e sinuoso declive
Para a mais completa escuridão do fim do mundo
A Via Láctea traça no céu figura radiante
E repleta de acontecimentos cósmicos
Sigo pela estreita e escorregadia trilha
Passo a passo sobrevivo e prossigo
Silencioso, focado, com medo
Segunda
Sigo noite adentro concentrado no perigo
Na busca libertadora do Velocino de ouro
Em busca da luz que emana do consciente
E se for preciso flutuo sobre o mar-oceano
Pairando sobres as ondas que se precipitam
A caminho de níveis de consciência luzidia
Cavo o túnel conectivo no coração da pedra
Estabelecendo várias e inexoráveis conexões
Entre estes mundos que nos sustêm animados
Sigo, prossigo e persigo a felicidade do sonho
E encontro o néctar e a ambrosia sobre o altar
Vou ao teu encontro musa da fluência poética
Procuro-te entre as musas que ouvem poesias
Ouço o belíssimo canto do apaixonado Apolo
E seguindo as notas musicais da Lira do deus
Encontro todas as musas extasiadas sob o céu
E o véu que encobre seu belíssimo semblante
Esvoaça repentinamente revelando o mistério
As musas reveladas acolhem e amam o poeta
45
Terceira
Procuro evitar as perigosas grotas profundas
Onde os piores predadores espreitam ferozes
Aguardam famigerados nossa queda primeira
Queda derradeira nos braços da desesperança
No abraço impiedoso e lento que nos esmaga
No último estertor do ser de luz que se apaga
É o desconcertante caos que se instala na baixa madrugada
O tumulto das noites escuras, sem estrelas, sem lua, sem fé
Sinto muito em afirmar que desconheço o verdadeiro poeta
Em dizer que já tomei os piores sustos e quase perdi a festa
Em lembrar que perdi a cabeça e saí correndo mundo afora
Que vi relâmpagos e ouvi o trovão no choque do sentimento
Raízes que penetram insidiosas na parte mais iluminada da mente
Permitindo experiências incomuns numa espécie de concentração
Para sempre retida na memória viva dos que se fizeram presentes
Como uma cicatriz que nunca mais se dissipará dos pensamentos
Os olhos se abrem buscando indícios de uma noite que não finda
O dia uma hora chega, irrompe barreiras, mas ainda parece noite
Noite de vertigens sob o signo da juventude
E quando os olhos se abrem a noite já se foi
O dia amanheceu revelador de um turbilhão
De velhas imagens de desespero penetrantes
Retidas na porção mais sensível do cérebro
46
CEREBRAL ARTICULAÇÃO
O vento entoa uma cantilena antiga
Uivos lastimosos de solidão e de frio
O vento reclama a atenção dos homens
Sopra como uma potência avassaladora
O vento impera sobre a noite chuvosa
Reduzindo nossos egos a quase nada
Interrompendo com força a jornada
Que nos levaria ao nosso destino
Meu pensamento se esconde na gruta profunda
Enquanto meu corpo rasteja no lamaceiro
A gruta está totalmente molhada
Não existe um lugar seguro
Enquanto isso, no mundo do sonho
Sou capaz de dobrar a linha do tempo
Rasgando o futuro ao capricho do vento
Ao capricho de violentas correntes eólicas
Imprevisíveis correntes do presente
Elos pesados encadeados em sequência
Tempestade interminável que nos assusta
Que desconhece a fragilidade dos homens
Matemática autossuficiente da desconstrução
Que prescinde da prosaica moralidade humana
Pura realidade da movimentação dos elementos
Que agem independentes no caldeirão do mundo
47
A verdade sendo revelada
Ensina tanto quanto consola
O aniquilamento da vontade
A condição de total potência
O domínio dos desejos abjetos
Aprisionando o medo perigoso
A exaltação serena da humildade
Saber inclinar a cabeça e esperar
Penetro na imensidão
Os olhos fitos no chão
Numa progressão cautelosa
Num chamamento irresistível
Sobrevivo em meio ao vendaval
Ao pisar sobre a própria vontade
São mil redemoinhos assoviando
Ventos que nos desafiam furiosos
Sopram uivantes vindos de todas as direções
Os neurônios adaptam à mente para o desafio
O cérebro maquina
Cerebral articulação!
A força vital é sentida na plenitude
Os pensamentos vêm cheios de adrenalina
Transitam nas sinapses nervosas reluzentes
Procurando saídas e estratégias conscientes
Nada obstante, mais adrenalina nas artérias
E o rosto pálido encara as tétricas correntes
Vertentes que convergem para uma grota profunda
Onde se esconde à espreita a misteriosa serpente de fogo
Antigamente muito comum nas veredas dos sertões do Brasil
Ponto comum onde linhas paralelas jamais se encontrarão Geometria consagrada como tábua de salvação dos sobreviventes
Que optaram pela segurança e tranquilidade do caminho do meio
48
Viver sem receio
Com os pés no chão
A mente em equilíbrio
Com as mãos agarradas
Para manter o corpo vivo
Seta arremessada certeira e com força
Dentro de um longo túnel de concreto
No qual o claro e o escuro se alternam
Seta que percorre um caminho preciso
Chegando ao destino para nos resgatar
Das teias neuróticas, psicóticas e tolas
Que fazem com que caiamos no fundo
Das masmorras do próprio pensamento
Que não permitem que caiamos mortos
Nos meandros engendrados pela mente
Arqueiro que precisa saber esperar o momento
Ideia que precisa estar conectada com a realidade
Neurônios interligados coordenando o movimento
As manifestações emocionadas do coração batendo
Batendo ora apressado, às vezes lento, mas persistente
Cerebral articulação
Engenho miraculoso
Movimentação de sinais elétricos
Que permitem a vazão do pensamento
Visão bifocal que perscruta o horizonte
Em busca de um ponto geométrico seguro
Conhecido como tal por todos os navegantes
Viagem abstrata pelos recantos do intelecto
O frio excita sobremaneira o nosso raciocínio
O vento, agora inclemente, nos açoita no rosto
Açoita a face daqueles que levantam as cabeças
Para enxergar além dos morros, muros e muralhas
Longa e sinuosa estrada de luzes, relâmpagos e fogos
A perigosa estrada nos leva além dos vales e montanhas
Além do tempo presente na imaginação dos dias futuros
49
Cerebral articulação, o pensamento
Raio luminoso irrompendo na mente
Estalo clarividente que projeta o homem
Além do instinto, sem abrir mão da intuição
Expressão da engenhosa inteligência humana
MÁSCARAS CAÍDAS
Canto sempre
Escrito Diurno
Locução noturna
Apenas em sonho
As repetidas batidas do martelo
Cadenciam a trajetória dos Astros
Cadenciam o pulsar dos corações
Serenam minha alma pequena e perdida
No emaranhado de dúvidas sobre a vida
Um pensamento sobe em direção às nascentes do rio
Subo com ele de volta à grota mais profunda e úmida
Abismo profundo, toca de famigerados predadores
Ali morre o rio e as águas cristalinas e puras
Contaminadas, se transformam em lamaçal
Quanto mais tempo permanecemos na câmara primitiva
Mais nos distanciamos do mundo profano e da sujeira
E as máscaras que nos cobrem o rosto vão caindo
Porque se mostram totalmente desnecessárias
Muitas vezes são lavadas com lágrimas salgadas
Que escorrem discretas até o dolorido pescoço
Máscaras adquiridas nos desvios da vida
Nos becos sem saída, nas ruelas escuras
Frutos paridos pela insegurança
Dos que sobem o morro
Sem apoio nenhum
Mas com tradição
50
Tradição no pensar e dizer
Sem o lado ruim da limitação
Tradição no sentido de aproveitamento
Da base concretada pelas gerações passadas
Reunião de forças para encarar o próprio medo
Sem as máscaras agora decaídas e com coragem
Batidas cadenciadas pelo primeiro ferreiro
Ferro no ferro e meus ouvidos são túneis
Que levam para longe a aspereza do som
Do mais centralíssimo neurônio em rede
À periferia do grandioso mundo exterior
O Cérebro está plenamente acostumado
E as batidas ecoam fortes e significantes
Nada obstante um pensamento persiste
Em libertar-se do relógio e do tempo
Um pretencioso pensamento
Que sobe a vertente quase vertical
Para perscrutar a apoteose do mundo
Visão privilegiada da própria dor e prazer
Dói sim a frustração de não poder abarcar o mundo
Solidão diurna. Choro sem lágrimas. Pele ressecada
Devaneio em que a vontade não se realiza plenamente
E a lucidez faz estremecer um coração lastimoso e frio
Verdade absoluta que nos condena ao sofrimento prévio
O espelho sempre se mantém enganador. Hipócrita
Até que um dia os olhos veem mais profundamente
E enxergam a insignificância de um ser imperfeito
Os olhos perscrutam o derredor, buscando socorro
Os ouvidos sensíveis ouvem o forte chamamento
Os ouvidos ouvem as cantilenas maviosas
Que viajam longe no espaço cósmico
51
Os olhos ficam cegos quando a luz é intensa
Os olhos se fecham quando a visão é plena
Os ouvidos se abrem às cantilenas noturnas
Os ouvidos recebem a mensagem cósmica
Os olhos enfrentam a escuridão da dúvida
A venda física se desfaz imaterialmente
Garantindo a todos nós uma sobrevida
Na senda iniciática que reestabelece
Na senda iniciática que se prolonga
Na senda iniciática que recupera
Que resgata a alma e reanima
E com renovado o ânimo
Reconstruímos a vida
A MAGIA DA TERRA
O crepúsculo liberta formas excêntricas
E cores ao longo do vasto horizonte
A Terra se embeleza toda colorida
O mar se movimenta constante
Ondas que vêm e se vão
Cíclicas e irregulares
Às vezes tsunâmicas
Então devastadoras
A temperatura se apresenta tão aprazível
Que lembra aqueles tempos no paraíso
Nos céus, de um lado o homem
Do outro os pássaros em bando
O homem em esquadrilha
A velocidade do som
Os pássaros voando
Na direção do Sol
Que vai se pondo
Um balé de dançarinos alados
Desenrolando-se sobre nós
No espaço crepuscular!
52
A Lua, em plenilúnio
Despontando no horizonte
Reverenciada pelos seres sensíveis
E pelos pássaros, magníficos em tudo
Alegorias, adereços e plumas e fantasias
Interação. Magia crepuscular
Momento de pura felicidade
Alegria dos serenos viventes
Os pés na fina areia da praia
Os animais ativos caçadores
Correm nas trilhas litorâneas
Da restinga debruçada no mar
LEMBRANÇAS VIVAS
Implacáveis recordações de todos os tempos
A memória cativa e viva como o pensamento
Lembranças renitentes que a nós emocionam
E deflagram uma revolução química no corpo
Submetem o sentimento subvertendo a lógica
Que de repente se transforma em densa bruma
Bruma . . . que cai sobre a floresta dos sonhos
Lembranças vivas gravadas na parede da memória
Quanto mais distantes, mais nítidas diante dos olhos
Lembranças que resgatam fatos e sensações passadas
Como se tempo realmente fosse apenas uma sensação
E a infinita linha cronológica mera circunferência oca
Nos devaneios mnemônicos noturnos
Personagens se confundem com pessoas
Antigas feições, que povoavam o cotidiano
Adormecidas e encobertas por milhares de dias
Emergem redesenhadas e mais vivas do que nunca
53
Lembranças vivas em cores, movimento e feições
Silhuetas que se movem das esquinas para as ruas
Vultos imaginários que figuram no espaço da cena
Estranha interação entre fantasmas e assombrações
Presenças mantidas no mundo dos interiores vazios
Um paradoxo, pois representam ausências presentes
De emergentes interlocutores do passado longínquo
Enfim, chamamento silencioso sem resposta exterior
Lembranças vivas numa pequena alma assustadiça
Desmantelamento da caminhada linear dos anos
Implacável destruição da eterna linha do tempo
Passado, presente e futuro formam uma ciranda
Em torno da qual nos apresentamos para dançar
E as lembranças servem para resgatar momentos
Sob a magia inexplicável da força mental
Momentos se materializam na imaginação
Reproduzindo formas, expressões e rugas
E olhares profundamente significativos
Reviro e revivo recordações
Sinto os mesmos cheiros
O mesmo suor gotejando
Os batimentos cardíacos
Então mais vigorosos
Pulsando no coração
As lembranças emergentes se tornaram perenes
E acompanham a movimentação do pensamento
Alguém percorre sozinho os recantos da imagem
Captada pela visão periférica em estado de alerta
Extremos caminhos paralelos indo para o infinito
Busco a identidade precisa deste vulto misterioso
Que não me esquece e me acompanha à distância
Quem sois meu querido acompanhante temerário?
O Sol majestoso revela se parecerem com sombras
54
É um vulto mesmo, não é assombrado e tem luz
É presença que se mostra e se revela enigmática
Porque não mostra os olhos, mas apenas as mãos
O antigo e famoso outro eu escondido
Além do espaço e do tempo, na saudade
Caminhante solidário pelas veredas da vida
Libertador das mais significativas recordações
Persistente presença nos meandros da memória
Memórias que carregam a substância primordial
Vejo a materialização de fatos passados
Tão cheios de essência e movimento
O momento presente se multiplica
Dando lugar a vidas sobrepostas
Um corpo e vidas concomitantes
Então já não vivo como antes
Vivo resgatando passagens
E revivendo experiências
Chego a ouvir a tua voz
De mãos dadas percorro contigo
Antigos caminhos conhecidos
Olhamos juntos pela janela
Vemos a roda girando lenta
Num processo interminável
Nossos olhos dominam a amplidão da rua
Mas não enxergamos quem nos responda
Quem nos revele uma simples palavra
Que socorra às nossas interrogações
55
Outra vez reina silêncio em torno de nós
Mesmo as lembranças mais vivas emudecem
Diante da inexorável e absoluta falta de respostas
A memória cativa não encontra uma saída para o exterior
As vidas sobrepostas e vividas em concomitância se esvaem
São devaneios pelos quais buscamos nossas antigas conexões
São efetivamente devaneios
Que vêm povoar nossos sonhos
E que depois desaparecem no cotidiano
Deixando à vista a realidade do afastamento
Da solidão e das dores mentais inexplicáveis
ESCRITO REALIDADE
Escrito alegórico, metafórico, mas sem eufemismos
Exercício de ultrapassagem dos limites estabelecidos
Válvula de escape que permite à retomada do raciocínio
Orifício no centro do crânio pelo qual penetra o cirurgião
E por onde escapolem as forças que pressionam o cérebro
Calafrio que percorre do ventre ao dorso
Fazendo com que soframos impotentes
Mas aprendendo com o sofrimento
Ponto mais sensível, abaixo do externo
Onde se concentram as preocupações
Que maltratam intercorrentes
As horas noturnas escoam ligeiras
E o dia já vem com o murmúrio
Das aglomerações humanas
56
O silencio se revela uma miscelânea
De pequenos e quase inaudíveis sons
A meditação é a barca dos argonautas
Que percorrem as rotas dos Sete Mares
Quando a mente se esvazia de pensamentos
Somos poeira ao vento, perdida no cosmos
Nossas raízes mal antecedem ao Dilúvio de Noé
Nossa história está marcada pelo Incêndio de Roma
Um decreto de morte estatuiu a carnificina dos inocentes
Um indigno como nós foi crucificado de cabeça para baixo
Pessoas fugiam pelas ruas em vertiginosa descida
Enquanto os telhados desabavam sobre as cabeças
Apenas os mais rápidos escaparam da ira do vulcão
Amores se perderam numa horrenda noite de cinzas
Amigos foram consumidos apavorados diante de nós
Os que fugiram espertos não puderam olhar para trás
Séculos de viagens pelas estradas abertas pelo movimento
Séculos de guerras insanas pelo predomínio imperialista
Séculos de ladainhas pseudorreligiosas contra o homem
Corporações abstratas corroendo os interesses comuns
Na periferia distante do jogo belicoso entre as nações
No galope alucinado do tempo, passamos ao centro
Nós, os Tamoios! Senhores das matas tropicais
O Brasil finalmente percebendo a própria sina
57
DEVANEIO DOS NOTÍVAGOS
Na verdade, sonho realidade
Pesadelo diuturno da impermanência
Vórtice invencível que absorve a vida
Acachapante despertar no meio da noite
Para perceber como se esvaem as energias
A incerteza é a única constante para o homem
Nada sabemos ou podemos dominar em definitivo
Apenas a ilusão nos consola e embala na escuridão
Sofremos, porque a ilusão fugidia logo se acaba
E muitas vezes sentimos profundamente o desejo
De querer exatamente o oposto daquilo que temos
Porquanto vivemos uma experiência muito variada
Ilusão material sob o império da putrefação
Enquanto o espírito aponta para o eterno
O corpo não resiste e vai envelhecendo
Até o último e breve estertor do peito
Ilusão da mais completa ausência de dor
Poucos atravessam esse percurso sem dor
Ninguém precisa ser valente sentindo dor
A pior de todas as dores é a imaterial
Aquela que não decorre das células
Que não provem de nenhum tecido
Vem de uma região muito sombria
Vem silenciosa e nos torna servos
Quando andamos pelos caminhos
Largos de temerária desatenção
58
Quando não trilhamos por uma vereda estreita
Uma trilha íngreme e cheia de grandes desafios
Uma vereda que liberta de grilhões encadeados
Uma vereda que se mantem misteriosa e longa
Que é clareada por flamejantes relances de luz
E nos conduz por um caminho de crescimento
Onde dor e sofrimento não pesam na balança
Para os que rastejam no chão as portas estão fechadas
Ficam além das mais altas e inacessíveis penedias
Para os que ousam dominar as grandes alturas
As portas também se encontram fechadas
Fantasmas, assombrações e entidades macabras
Submergem no interior das terras e dos oceanos
Nas profundezas inflamadas do magma pastoso
Nas águas profundas das escuras fossas abissais
Na verdade, estão ocorrendo tempestades cerebrais
E o devaneio dos notívagos é uma projeção de imagens
Como as tintas arremessadas manualmente nas paredes
Por um pintor convicto de suas limitadas possibilidades
Complexa coexistência de ideias estreladas
De pensamentos noturnos que só se concebem
Nas horas fatídicas da insidiosa baixa madrugada
Noites cintilantes forjando composições de palavras
Como pedras polidas sobrepostas na nossa construção
Limitados que estamos pela gangorra da impermanência
Que parece um elevador que sobe e desce levando consigo
Tudo aquilo que realmente somos nesta fugaz corrida noturna
59
A LINHA IMPRECISA
A linha ligeira se distanciou da reta
Descambou para íngremes declives
Oprimida por uma estranha energia
Muito mais poderosa que a vontade
Não resistiu e consciente abriu mão
De sua própria natureza geométrica
Para se tornar uma jornada tortuosa
Uma campanha desvirtuada na vida
O coração resistente segue batendo
As lágrimas sobre a face renitentes
Continuam escorrendo pelo rosto
Até que vem a baixa madrugada
E todos se retiram para dormir
Fim da linha que renegou o próprio eixo
Depois da Apoteose, o ocaso vertiginoso
Parada obrigatória para os pontos perdidos
A esperar por aqueles perdidos inicialmente
Que se reencontrem na senda traçada pela linha
Retornando à cisterna que desde sempre os concebeu
A linha definhou esquálida pela falta de pontos
Subdelineada, a linha se curvou ao peso da perdição
Como uma seta arremessada se partiu em dois pedaços
Quando se chocou contra a blindagem de tua armadura
A reta torta, desviscerada e impertinente
Foi subestimada pela régua orientadora
E escapou do papel para aventurar-se
Pelas linhas do espaço desconhecido
Ao olhar-se no espelho da verdade
Pereceu tola, subjetiva e imprecisa
Abalada pela perda dos pontos.
60
Entrementes, recuperada a reta
Começa a caminhada em direção
Ao ponto geométrico desconhecido
Encurvada, a reta se arrasta pelo plano
Desesperada atrás dos pontos extraviados
Sucumbente ao mal olhado se retira do projeto
Para definhar silente e esquecida num ponto distante
Mortalmente ferida, com as vísceras expostas ao vento
Vítima do assédio cruento de forças muito poderosas
Reúne os pontos remanescentes para a despedida
E, num derradeiro suspiro, retorna ao zero
Supremo deleite para aqueles que foram pontos
Na sequência delineada da linha decadente
O zero os recebe generoso e acolhedor
Como se voltassem ao útero materno
A física se transforma em metafísica
E todos são absorvidos contentes
Pela entidade maternal universal
Apoteose do reaproveitamento
Para o delírio de Lavoisier
61
CANTO DEVANEIO
O canto continua e o som continua o mesmo
Continua sempre, enquanto houver energia
Enquanto houver sangue bom nas artérias
Enquanto houver um olhar suplicante
Penetrante nos meandros do mundo
Canto e lamento a decadência do homem
Choro e vejo a cidade de pedras imunda
Maculada nas esquinas inseguras
Onde esvoaçam as mariposas
Antiga sina, novas meninas
Velhas mulheres na parede
Passantes por um mundo insano
Transeuntes de veredas estreitas
Grande jornada dos viventes!
Oradores que sobem à elevada tribuna
Para tecer longos discursos de contradição
Palavras decrépitas e falsas que caem no chão
Como gotas venenosas duma deletéria chuva ácida
Palavras que não refletem a verdadeira natureza do ser
Versam apenas sobre a superfície das coisas e dos fatos
Versam sobre cantilenas maviosas de sereias inexistentes
Versam sobre interditos proibitórios e cerceamentos morais
Versam sobre versos que se desconectam e se desconstroem
Numa corrente ligeira de palavras sinceras quanto duvidosas
É noite. Isto é uma certeza
As horas tornam-se silenciosas
A tribuna continua aberta à oração
Dos oradores notívagos e crentes na fé
Que remove montanhas e sustenta o céu
Fazendo com que as leis da mecânica celeste
Sejam universais para a total alegria de Kepler
62
Os discursos foram interrompidos
Nestas horas de silêncio profundo
As emoções fazem mais sentido
Nestas horas de recolhimento
Os sons são reveladores
Os andarilhos da Lua Crescente
Irmanados pela mesma emoção
Percorrem caminhos estelares
Em busca de refúgio seguro
As estrelas são pequenas lamparinas coloridas
Piscando no céu escuro pela falta do Sol e da Lua
A obra do homem arquiteto é interminável e complexa
Os sentimentos são contraditórios e desfraldam a verdade
O canto é realmente misterioso e provém do sopro do vento
O devaneio é pessoal e não cria raízes com o passar dos anos
Ao contrário, os números operam a multiplicação dos resultados
Os elos se encadeiam e passam a compor uma corrente de ideias
63
REFLUXO INOMINADO
As antigas angústias caem esquecidas
Substituídas que são, sem nenhum esforço
Por um turbilhão de demandas mal calculadas
A curta jornada dos viventes é finita e complexa
E pode transcorrer como se fosse enganosamente eterna
Esvaindo-se o tempo precioso sem que seja aproveitada a vida
Gotas que não irrigam o solo, que endurece seco e infecundo
Passageiros distraídos, que terminam a longa viagem de ida
Sem ter olhado uma única e primeira vez pela janela aberta
Obliteração dos sentidos, frutos que despencam decaídos
Que morrem precocemente sem ter amadurecido
Jazem no chão e não completam o ciclo
Notória desumanização do indivíduo
Processo de imbecilização do coletivo
Somos cadastros numerados nos arquivos
Arquivos de máscaras usadas e sujas
Pensamentos que não se materializam
Ilusões infantis travestidas de realidade
Verdade! Tudo não passa de encenação
Movimentação de seres desprovidos de efetividade.
Seres sensitivos que habitam solitários em seus corpos
Indivíduos martirizados pela incompreensão da natureza
Da lei natural, por onde percorre a palavra que não muda
Consolo no sono bem dormido enquanto é possível
Consolo no mundo fantástico da produção literária
Consolo na fala que soa baixinho quando anoitece
Consolo no silêncio embalado pelas ondas do mar
Consolo no teu olhar, que me resgata da solidão
Consolo na canção entoada pela sereia fictícia
Consolo na visão da abóboda celeste pintada
Sobre nossas cabeças abertas para o cosmos
64
Longa e perigosa sinuosa estrada
Percurso empoeirado e pedregoso
Refluxo inominado de quilômetros
Por onde transitamos totalmente sós
Junto à ansiedade que nos acompanha
Sempre conosco, enraizada no coração
Estado de emergência permanente
Duto venoso por onde passa o sangue grosso
Sangue saturado arremessado em jorros dentro do peito
Cruel realidade dos que dependem de células para sobreviver!
Atroz redação de palavras insurgentes
Que se encadeiam cooptadas e crentes
Submissas ao plano maior dos sentidos
Atroz meditação sem palavras na mente
A linha do horizonte se funde com o mar
E os ventos de sudeste continuam soprando
Novos invernos nos quais podemos hibernar
Com o desgaste provocado pelas intempéries
Escarpas basálticas se decompõem em poeira
Cujas partículas inominadas viajam para longe
Levadas sobre o continente pelo sopro do vento
Viração indômita que esculpiu tuas rugas
Que fez os cabelos voarem em liberdade
Que permitiu os sonhos primaveris
Com o verão não muito distante
Furação em fúria sobre a superfície
Pradarias, com suas árvores retorcidas
Galerias subterrâneas onde nos escondemos
Dos nossos pesadelos mais antigos e secretos
Objetos siderais percorrendo os caminhos do céu
Refluxo de energia que percorre as artérias e veias
Refluxo inominado que serpenteia, que rasteja no chão
65
ARESTAS
Nervuras persistentes ao longo do corpo
Nos membros, na cabeça e no tronco
Asperezas relevantes sobre o dorso
E sob o ventre a serpente de fogo
Ranhuras internas incrustadas profundamente
Dissimuladas no interior das células silenciosas
Escondidas sob camadas subcutâneas de tecidos
Mergulhadas no âmago misterioso do organismo
Como se não existissem, mas certamente existem
Sigo renitente no permanente desbaste das arestas
Artífice contumaz dos próprios problemas e soluções
Firme criador de palavras e de expressões neológicas
Fazedor de música com o bater do maço na bigorna
Tripulante desconhecido embarcado secretamente
Na nave capaz de atravessar as águas do dilúvio
Prossigo plantando árvores
Para compensar as que derrubo . . .
Para recuperar o esgoto a céu aberto
Para recuperar as sombras refrescantes
Pelo certo deveremos replantar florestas
Para compensar o dano é o que precisamos
Refazer a natureza devastada no Setentrião
Refazer quase todo o território do Texas
Fazer desaparecerem as megalópoles
Recuperar o entorno do Reno
Revitalizar a nossa crença
Na recuperação da Terra
Aparando loucuras
Aparando arestas
66
DANAÇÃO
Expressão vomitada com matéria putrefata
Expressão industriada com conteúdo fétido
Expressão arrancada do intestino sangrando
Expressão poética gerada pelo fígado ferido
Palavra catequética para um coração sofrido
Palavra que apazigua a raiva dos contendores
Que se conformam em simplesmente coexistir
Melhor que danação, livramento
Ensaio que espia uma região profunda
Em busca de um sentido ético para vida
Busca interminável, que mantém a sanidade
Num mar de tempestades cerebrais permanentes
Palavra perdida
Senha misteriosa
Que abre todas as portas
Que abre secretos portais
Que abre todas as comportas
Permitindo que a água represada
Escoe pelos vales e cercanias sedentas
Palavra perdida nas atribulações da vida
Palavra perdida no fracasso dos planos
Palavra que revela sentidas frustrações
Palavra que perdoa o ocaso do mundo
Palavra que revela a minha amargura
Só não revela o sentido ético da vida
Os motivos que nos levam a escalar montanhas
Precisam ser consistentes além da palavra perdida
Na dinâmica do tempo presente e na projeção futura
67
Revelada ao público a senha misteriosa
Já não existem porteiras, nem cercas
O muro é derrubado com as mãos
Como se fossem picaretas
Cada dedo um cinzel
A bigorna no chão
Cai muro nefasto
E o muro caiu
As câmeras não são retiradas das ruas
Os transeuntes andam ligeiros
Primavera dos estudantes
Primavera dos cientistas
Noite dos pensadores
Dia dos analistas
Noite das bruxas
O cachorro uiva
Noite enluarada
Fantasmagórica
Noite danada
Lá se vão os fantasmas, sem rumo
Absortos em sua própria maldição
Fogo fátuo que assombra multidão
De seres assustadiços e ignorantes
Pobres, no fundo tem bom coração
Danação dos que usaram e abusaram
Danação dos desavisados transeuntes
Danação dos desviados na madrugada
Dos que renegam a própria humanidade
Danação dos bichos do mato desalojados
Dos seres que evoluíram desde antigamente
Desde os tempos mesozoicos dos dinossauros
Danação do homem autocondenado ao isolamento
Dos seres que consomem todos os recursos que têm
68
CANTO À RUPTURA
Com as portas abertas
Para que todos entrem
E se sintam à vontade
Rompe-se o cordão umbilical
E o choro estridente não passa
Revelando uma abrupta ruptura
O corpo desafiado vem ao mundo
E ultrapassando dantescas barreiras
Chega ao destino em primeiro lugar
Um dia o corpo se romperá
Incapaz de conter o espírito
Que em seu íntimo abrigou
Um último e triste suspiro
Revelará inaudita ruptura
Misteriosa dissolução dos sentidos
Marcada por baixas temperaturas
E pela pálida rigidez cadavérica
Um nascimento imaterial
Explode para a eternidade
As fronteiras do Universo
Se rompem para a passagem . . .
Canto mavioso à ruptura
Para um novo crescimento
Para um perene aprendizado
Nesta escalavrada estrada da fé
Reina a mais pura ignorância fática
Daí a dúvida que sempre incomoda
69
Como dito alhures
A palavra continua perdida
Mas deixa marcas e ensinamentos
A possibilidade de que a consciência não resista
Ao caos dos tecidos, putrefação da matéria, assusta
A escada que nos transporta para cima pode ser finita
Finito o homem
Finita a humanidade
Perdida a geometria divina
A hipotenusa está subentendida
A mente carnal está à deriva
O naufrágio é iminente
É difícil entender um triângulo
Que só apresenta dois lados
Nascimento e morte
Onde foi parar a hipotenusa?
Não a enxergamos no triângulo
É certo que mentes menos carnais
Têm garantido enxergar o terceiro lado
Testemunhos de fé inocente ou maliciosa
Muitos caminhos levam a muitos destinos
Todos os caminhos de fé levam à montanha
Ao Grande Geômetra e Criador dos Mundos
Se os caminhos forem realmente verdadeiros
Deus estará lá para abraçar seus rebentos
Se Deus não estiver lá, nos esperando
É porque os caminhos são falsos
70
Ainda assim é preciso trilhar pelos caminhos
Não podemos permanecer parados à espera
Quem espera, está provado, nunca alcança
Finita Possibilidade que se aproxima sorrateira
Quando a carne podre se desprende do esqueleto
É porque nada restou para recontar nossa história
Assim como as coisas não existem por si mesmas
Pois dependem de que as conheçamos com certeza
A consciência não pode ser apenas uma brincadeira
Não existe outra passagem além deste mundo
O ego, que era tão importante, deixou de ser
O misterioso portal para um novo patamar
Era pura ilusão, está perdido para sempre
Apenas uma parede rochosa e fria
Além do apoio vigoroso de Atlas
Maior que a força de Hércules
No limiar do tempo, se erguia
Uma parede muda e fria
Feita de pedras sobrepostas
Eternamente duras e estáticas
71
ESCRITO PARA FIXAÇÃO
Dos pés descalços no chão
Do trapiche que enfrenta as ondas
Do concreto que encorpa o edifício
Dos sentidos que continuam aéreos
Busca pelos frutos corpóreos, gomosos, suculentos
Frutos também aéreos, comprometidos com a natureza
Consumidos com fome pelos filhos e filhas do homem.
Matéria escrita no segundo caderno
Sem nome, sem título, sem preço
Matéria que ludibria o espelho
Mas que não engana o tempo
Conteúdo subentendido negado pela boca
Mas revelado pelo olhar do inocente
Que não consegue se esconder
Que é transparente e puro
Escrito como aquele dos anúncios dos viventes
Desde os cartazes escolares feitos por crianças
Até aquelas letras retorcidas e multicoloridas
Em cujos dutos correm gases de neon
Luz que pisca e confunde os transeuntes
Ao longo de uma estrada perigosa
As fileiras de árvores gigantescas
Formam colunas concretas
Por onde passamos
A toda velocidade!
72
Fixação de todas as letras
Na longa coluna alfabética
Fixação do escrito no papel
Diante dos olhos bem abertos
Fixação da redação no espelho
Onde a consciência se enxerga
Fixação dos pés no subsolo
Por onde vão as raízes profundas
Fixação dos bons propósitos
Na solidez de troncos robustos
Que nos fazem plantas na Terra
Vivas, enraizadas e em movimento
Árvores gigantescas enfileiradas ao longo da estrada
Vivas e perfiladas formando um longo túnel verde
Testemunhas oculares da passagem pelo caminho
Testemunhas do nosso surgimento para o mundo
Testemunhas de um célere momento de apogeu
Companheiras mudas dos anos de decadência
73
SEGUNDO LIVRO
ALQUIMICA POÉTICA
As portas do conhecimento estão sempre abertas para nós
As regras estão gravadas na face de um grande rochedo
Enquanto a cabra amamenta os filhos dos homens
A mãe natureza é como o ventre da mulher-mãe
Nas vísceras do qual somos todos geridos
Mulher sem marido, estrelando solitária
Mulher, uma cisterna, chamada Gaia
Assim começa nossa história alegórica
As ricas criancinhas são amamentadas
Por boas cabras e lobas maternais
Traduzindo aqui o sentimento
Dos gêmeos Rômulo e Remo
A força atávica no mundo
Planeta ventre materno
Astro vivo telúrico
O homem, um buscador
Com os cabelos longos
Esvoaçando ao vento
O homem arquiteto
De belos castelos
De masmorras
O homem, atrevido construtor
Esquadrinha e mensura o grande rio
E diante do perigoso Crocodilo do Nilo
Dobra os joelhos com o coração contrito
74
A ambrosia e o néctar são eleitos o alimento dos deuses
Os Mistérios são conhecidos apenas pelos iniciados
E rapidamente a verdadeira luz se revela no monte
No monte sagrado desde os primeiros movimentos
Sai o homem pelas estreitas veredas do mundo
Com os pés bem firmes no chão prometido
Irradiantes as sete velas do candelabro
O homem aprende o valor do silêncio
E confia ao bode seus segredos
O homem não perdeu o medo
O risco é uma constante
A batalha é permanente
E seguimos decididos
No enfrentamento
Mundo maravilhoso, repleto de perigos
Vim apresentar a intimidade do ego
Desvendando as entrelinhas do ser
Maldito pela sorrateira serpente
Genuflexo diante da existência
Finito diante do tempo terreno
O caminho é longo e repleto de atalhos
As trilhas são longas e escorregadias
Os corredores são longos e escuros
A dúvida está sempre presente
O medo está sempre conosco
Mas seguimos em frente
Perdendo sangue
Ganhando a vida
Platão levantou bem alto a lamparina
Vitruvius projetou as linhas geométricas
Da Vinci retratou o âmago do humanismo
E Hermes lecionou a todos eles com maestria
75
Vai o homem galopando no tempo
Destemido e colonizador pioneiro
Cruzando as águas oceânicas
Em direção ao desconhecido
Ocupando a Terra toda
E na proa de seus pés ligeiros
Vai conquistando o conhecimento
Vai o homem dominando os quatro elementos
Executando o princípio e o fim da boa obra
Vai sorvendo da bendita água alquímica
Em projetos de aquisição de sabedoria
Vai o homem confiante em seu guia
Seguro pelos caminhos do mundo
Subindo e descendo montanhas
Penetrando no âmago da Terra
Escavando tuneis e galerias.
Vai o homem sedento pelo imenso deserto
À procura de água para purificar seu corpo
À procura de água para não morrer de sede
Enfrentando a inclemente estrela flamígera
Para sobreviver e vencer o porfiado combate
Dos sentimentos ignóbeis que nos escravizam
Das paixões abjetas que nos levam para baixo
Uma hora a travessia do deserto se encerra
E assim como depois da tempestade vem o Sol
Os verdes vales se abrem para o nosso regozijo
A abóbada celeste entremeada pela brancura das nuvens
Ao longe, as montanhas cobertas pelo verde das matas
As águas do rio correndo serenas de alfa a ômega
Nas colinas, as torres dos templos consagrados
Apontam para o infinito permanentemente
E peregrinos percorrem a mística estrada
76
Partem os peregrinos aventureiros pelas quebradas dos sertões
Ficam parados os hesitantes que abriram mão do movimento
Triângulo repleto de vida apontado para o centro da Terra
No teu ventre materno se formou o homem arquiteto
Triângulo vazio em direção ao centro do mundo
Onde os rios desaguam no oceano profundo
Triângulo cheio direcionado para o cosmos
Dentro do qual se formam os furacões
Triângulo de fogo mirando o Sol
Fornalha que molda o homem
Seria Apolo entre as Musas
Tocando sua lira sedutora?
O que vejo no horizonte?
Os elementos girando
Girando girassóis
De olho no Sol.
As montanhas na base do mundo
O bravio oceano no fundamento
Os ventos entrecruzados no alto
E a salamandra cuspindo fogo
Os quatro elementos nos sustentam
Os símbolos contam a nossa história
E as musas permanecem no entorno
Silentes ao abrigo das intempéries
Apenas observando atentas
O que sairá do velho poço
O Sol consolador e a Lua lampejante
O fogo aquece a vida, a água purifica
O homem falível se mantém errando
Mas já não pode errar como antes.
77
O Macrocosmos é um reflexo do Princípio Criador
É o lado de dentro do espelho da morada de Deus
As leis da mecânica celeste são um belo exemplo
Da formosura do Grande Arquiteto do Universo
Da inteligência divina do Grande Geômetra
As últimas lágrimas secaram faz tempo
A putrefação devolve o corpo à terra
E os carneiros pastam a tenra relva
As flores desabrocham em cores
As abelhas fazem seu trabalho
Estamos no curso iniciático
Da estação da primavera
O espírito corre em direção à alma
Iluminado pelo solstício de verão
Que se revela em cores e formas
Quando a claridade resplandece
A prevalência do dia sobre a noite
Permite aos ferozes leões adormecerem
Deixando as gazelas pastarem contentes
A vida inexoravelmente segue em frente
Centauros remanescentes tidos como extintos
Cavalgam na emergência do corpo destrutível
E influem no magistério para a plenitude do sábio
Do fogo místico emana o elixir da eterna juventude
E a ampulheta é esmagada sob o peso da eternidade
O peão girassol, colossal centro do mundo
Marcha na direção das profundezas abissais
Dos jardins siderais da galáxia de Andrômeda
Pelas cercanias cósmicas do Caminho de Leite
78
Nada mais do que a poesia dos quatro elementos
Nada mais do que o ritmo das três fases da obra
Nada mais do que uma aventura pelo labirinto
Onde se realiza a transformação da matéria
Um mero poema secundário nos neurônios
Um eloquente poema para os sentimentos
É necessário olhar através do tempo
É proveitoso perscrutar o horizonte
Mensuro a fundura da lagoa com uma pedra pesada
Formam-se os círculos em torno do ponto central
Ondas concêntricas se mantêm em progressão
Eterno movimento que leva do paraíso
Às entranhas ígneas do inferno
Disse o poeta pela voz da musa sedutora
Não tenha medo de descer ao inferno
E voltar à superfície do mundo
O inferno fica no coração magmático da Terra
Basta furar o solo de Jerusalém e ir para o fundo
Todavia, para subir ao paraíso o caminho é longo
E mais do que longo, o caminho é bastante estreito
Antes é preciso purificar o corpo de todas as arestas
Na transição dos arrependidos na parada do purgatório
Então a nave de Argos nos levará diretamente ao paraíso
Ultrapassando todas as camadas da atmosfera terrestre
A nau argonáutica passa ligeira, em céleres segundos
Revelando aos nossos olhos o lado escuro da Lua
79
Na navegação ao paraíso, vamos percorrendo o Zodíaco
Deixando para trás a estrela flamejante e seus planetas
Cruzando a Via Láctea a partir do Braço de Órion
Para ir muito além de suas fronteiras diminutas
Passar por Andrômeda
Percorrer veloz Laniakea
Perfurando a essência do tempo
Transpondo os limites do espaço
Revendo o momento em que a Singularidade
Explode em bilhões de partículas formando o Universo
Do tosco troglodita à racionalidade do Homo sapiens
Dos pés no chão com a inteligência de Aristóteles
Ao sonho de uma dimensão platônica superior
Seguro pelo incansável anjo-da-guarda
Submisso ao Reinado de Cristo
Sigo apressado para o paraíso
Neste elevado mister é preciso decompor os elementos
No outono melancólico o verde se transmuta em amarelo
Percorro caminhos próximos de casa onde eu possa chorar
E choro lágrimas pesadas, sobrecarregadas de dor e sofrimento
E choro tanto e tanto, até inundar todas as reentrâncias da Terra
As lágrimas, no decurso do tempo, secam sob as queimadas
As lágrimas que escorreram pelo rosto são águas passadas
As matas queimam sob os raios fulminantes do Sol
O fogo purifica as gerações de coitados pecadores
O verão nos permite suar a cólera contida na alma
E seguimos vivos com o sangue pulsando
Em plena Primavera da vida
Graças ao ar que respiramos
No final do ciclo elementar meditamos
Com o olhar nas alamedas desfolhadas
Adornadas por figuras fantasmagóricas
Contornadas pelas árvores caducifólias
Que povoam desde sempre a imaginação.
80
OLHOS VENDADOS
A Revelação Sonora
A Música Iniciática
Cantilena aflautada, bem tocada, sem tambores, suave e sussurrante
Vinda de longe; recebida como um legado de sábios predecessores
Onda sonora quase imperceptível que nos absorve felizes
Quando nos reunimos sob a sombra de nossas Colunas
Quando confraternizamos sob a sombra da Acácia
Acácia Negra, Acácia Amarela, sem espinhos
Apenas um ninho de colibris fecundos
E um banquinho onde podemos sentar
Para ouvir as notas da Flauta Mágica
Uma a uma, encadeadas e vivas
Palpitantes e iniciáticas
Psicodramáticas
Reveladoras
Estrépitos de espadas percorrendo caminhos frios e desconhecidos
Caminhos inicialmente sem sentido por misteriosas veredas
Sons metálicos de lâminas afiadas ecoando nos ouvidos
Vendados, não contamos com o sentido físico da visão
Ouvimos somente inesquecíveis sons interiores
Fontes iluminadas de inspiração para sempre
A Luz
Fiat Lux!
Um mergulho nas trevas
Dos meandros enrugados
De uma gruta macabra
Revela luminosidade
81
Há Luz
O túnel assustador tem fim e é bastante iluminado
Mas antes é preciso percorrer caminhos escabrosos
Enfrentar a íngreme descida ao interior dos mundos
Absorvendo humildemente esotéricos ensinamentos
A Luz
Resplandece vinda do Oriente do mundo para iluminar o céu
E enquanto ouvimos melodias crepusculares sem percussão
Hieróglifos sonoros vão sendo insculpidos para sempre
Na lembrança iniciática de uma magnífica lição
Arcanos revelados aos corações sensíveis
Cujas cascas se corrompem na morte
E renascem viçosas na brotação
Introspecção
Não encontro o silêncio absoluto
Mesmo que cessem todos os sons
Uma voz, provinda das profundezas
Penetra nos ouvidos sorrateiramente
E sussurra antigas fórmulas mágicas
Renasce manifesta de dentro dos nossos neurônios
Força para a qual os mistérios do universo se abrem
Lenda fantástica dos grandes grupos de agricultores
Semente estirada sobre a terra que se quebra fecunda
82
Cerebral articulação!
Cantilena de vozes uníssonas, envolventes, linguagem cifrada
Melodia arrancada daqueles furacões que assaltam caminhos
Murmúrios lúgubres das carpideiras de todos os renascidos
Vagalumes de gás neon maravilhados com própria luz
Faróis salvadores que orientam a consciência iniciada
Corujas vigilantes que conspiram contra a indecisão
Estátuas iluminadas acenando nossas lembranças
Viadutos urbanos transversais conectivos
Ruas que se abrem em largas avenidas
À procura das respostas iniciáticas
Pedagógica meditação no escuro
Onde há fortes luzes cerebrais
Onde a água passa ligeira
Sussurrando cantigas
Antigas fórmulas
Ritualísticas
Sublimação
Sobre a relva muito verde, os olhos fixos no cosmos
As galáxias e as estrelas são diamantes resplandecentes
São mundos incandescentes que alcançamos com a imaginação
São os portos do mar-universo que nos agasalha de infinitas formas
Sob os ângulos retos dos fantásticos cálculos do Grande Geômetra
Os elementos químicos formadores do corpo perdem densidade
E a alma flutuante no espaço cria asas e voa pelos mundos
E leva nossa consciência no caminho dos corpos celestes
E eleva nossa compreensão ao patamar cósmico
E demonstra a relatividade de todas as coisas
E anos-luz se transformam num segundo
O pensamento transpõe as distâncias
Porém a mente precisa estar livre
Das pesadas correntes de ferro
Que nos prendem ao chão
83
O Ternário Reunificador
O Universo se expande num movimento incessante
Precedido pelo status quo do Criador antes da criação
A matéria densa concentrada num único ponto original
Singular cisterna geradora, o Zero de nossas existências
Figura sem começo nem fim, útero que engendrou o mundo
O Criador se manifesta e a Unidade triunfa sobre o caos
Contrários se estabelecem e a permanente contradição
Entre todos os opostos, entre o sim e o não
Entre todas as antípodas
Para o bem do homem
Pode ser superada. . .
Pelo ternário reunificador. . .
Que nos reporta à Unidade
Que nos transmite equilíbrio
Que desenvolve potencialidades
Estampado nos vértices do triângulo
O ternário é a força que nos resgata do caos
Transferindo sanidade e inteligência para a vida
E a vida é subida, é permanente ascensão do ser
A vida é um caso de sucesso dos viventes
A vida é misteriosa, é surpreendente
A vida é intensa, é recompensa
Apoteótica experiência
Cerebral articulação
Interpenetração
De corpos
84
OLHOS ABERTOS
A Imagem Revelada
A Caverna
Neste corpo universal, que se expande
Coabitamos num ponto geométrico
O planeta Terra, matriz da vida!
Terra que já foi disforme e vazia, caótica, oceânica
Um grande vazio transformado em ventre fecundo
Artisticamente enriquecida de mil formas e seres
Pelos cálculos precisos do Senhor dos Mundos
Terra que abriga o homem
Terra que abriga a mulher
E a prole do casal humano
Que os embala e alimenta
Por entre feras, famintos
Assustadiços, nômades
Vivendo em grupo
Perdendo o medo
E sobrevivendo
Terra, experiência geológica longeva
Submetida aos caprichos do homem
Martirizada pela indústria humana
Verdadeiramente vulcânica
Terra: veio precioso que se degrada
A Humanidade tem em suas veias
O sangue de muitas gerações
Dos tempos onde a caverna
Era o abrigo inseguro
85
O homem ainda traz, no fundo, o medo
Arraigado nas profundezas do inconsciente
Povoado por longevos pesadelos de sobrevivência
Ainda restam lembranças soterradas no fundo do ser
Antigas reminiscências de vidas vividas em torno do fogo
Manifestações instintivas ainda nos dominam
E nos tornam cativos da psique traumatizada
Os abusos cometidos pela força marcaram
A carne rasgada pela fera ainda sangra
O intelecto resiste, luta e sai vitorioso
Do porfiado combate entre as forças
Antagônicas que se digladiam
Diante dos nossos olhos
E do nosso nariz
Sombras projetadas nas paredes
Lutam contra os feixes de luz
Mas se ficam iluminadas
Desaparecem fugidias
Coito Espetacular
Primeiro Ato
Deitada sobre a relva
Pontilhada aos milhões
Consubstanciada na umidade
Entrementes virgem
Entretanto variada
Entremeada
“Como a menina
Que não era carioca
Mas morou no Rio”
86
Retorcida calha
Inaudito escoadouro
Que sorve lentamente
A inefável semente vital
Garganta sem nome
Parada no fim da linha
Para engolir o cotidiano
Para sorver os teus pruridos
E resolver todos os impulsos
Gemidos e mais gemidos
Cada vez mais próximos
Gemidos e cheiro de cio
Atração todo-poderosa
Ninguém aqui resistirá
Jamais alguém resistiu
Segundo Ato
Animais sensitivos que se amam no escuro
Ecos progressivos na escuridão, gemidos
Suores que se misturam, milagre vital
Odores inebriantes que provocam
Aa penetração dos notívagos
Interpenetração de dois seres
Entrelaçados na escuridão
Fluídos corporais misturados
Absorvidos pelos lábios sedentos
Fundidos a fogo num beijo de amor
Corpos reunidos num abraço sem dor
Abraço alienado de tudo, longe do mundo
87
Terceiro Ato
Carnal interação
Fluídos misturados
Sem nenhuma razão
O pensamento possuído
Pelo orgasmo continuado
Numa interação de gametas
Intercruzados na concepção
Quarto Ato
Competição de seres ferozes
Que se digladiam entre mesas
Planuras de tábuas ensimesmadas
Recobertas de espinhos que matam
Cobertores sujos, encardidos, no chão
Palavras cuspidas na parede opressora
Endereçadas aos corações entristecidos
Arremessadas com violência e desprezo
Rocha duríssima, partida para sempre
Competição de seres ensandecidos
Meia rocha arremetida, com raiva
Seres que litigam entrincheirados
Disputando caudas de javali
Chapéus de jararaca
Garras de gavião
E presas de tigre
88
PALAVRAS REMONTADAS
Antropológica Mente
Despencadas das altas penedias do cérebro
Remanejadas para um arquivo vivo
Arrumadas numa pasta maiúscula
Reta aguarda pelas curvas tardias
Retiradas do fundo do poço
A esfera é muda
Realidade é crua
Oca de conteúdo
Desprovida de ar
Vácuo silencioso
Areia do Tempo
A vida rasgada no ventre da apedrejada
Com foice de tara embrutece
A vida arrancada do ventre da apedrejada
Com foice de sangue condena
A vida rasgada com enxada
Com o suor escorrendo
Também enruga
No tempo
A esfera é muda
A verdade é crua
Diante dos olhos
89
A Fêmea Perpetua
Na vida rasgada no leito do rio
A água corrente sobrevive ao tempo
A vida gerada em potência abrangente
Sustenta as colunas de nossa humanidade
Na vida de verdade
A fêmea entra no cio
Não adormece na relva
Água ardente que queima
A fêmea perambula no mato
Espreita o macho desconhecido
Que lutará até a morte para acasalar
A fêmea é pura
A fêmea perpetua
A fêmea sai à procura
Em busca da cobertura
Escondida Mente
O sátiro mente, madrugada adentro
Todo sorridente, derrapa na curva
Encharcada, enlameada, perigosa
Curva nervosa que impõe receio
A vida reiterada no mero instinto
Aproxima lobisomem do homem
Sem pelos, sem caninos, despido
Nascido sob o jugo do plenilúnio
O homem-lobo de assalto tomado
Vive solitário em ermos labirintos
Afastados do mundo, antro escuro
Até que uma noite se põe a rondar
E ronda, e gira e torna à escuridão
90
Os pés, enormes pegadas em torno da casa
A esfera muda, realidade crua, vida desgraçada
Alaridos noturnos, sirenes em noites alucinadas
O sátiro fugiu de mãos dadas com o lobisomem
Entraram pela porta do Inferno e desceram fundo
Lá ficaram para sempre presos ao magma pastoso
Violação
A vida violada no coração
A violência não será perdoada
Em masmorras subterrâneas e frias
Permanecerá para sempre trancada
Triste Visão
A terra fecunda que não foi sulcada
Que restou esquecida pelo lavrador
Não produzirá frutos, nem sombra
Nem água, não produzirá nada
Inóspitos caminhos surgirão
Imensidões adjacentes estéreis
Nuvens carrancudas e pesadas
O calor fustigante, abrasador
A antiga roda d’água, parada
Quadro ruim diante dos olhos
A esfera muda, realidade crua
Diante dos olhos semifechados
A esfera transmuta suas cores
Diante dos olhos semicerrados.
91
CONTENDA DE HORRORES
Uma boca desdentada e faminta
Barriga – bolha d’àgua – inchada
Um olhar profundo e assustado
Uma praia sem ondas, desolada
Um beco duvidoso, desalmado
Um mundo sempre perigoso
Um susto quase permanente
Um túnel estreito escuro
Uma lagoa traiçoeira
Areias movediças
Sob os teus pés
Um homem derrotado, submisso
A casa invadida, a cerca tombada
Um filho morto, a mãe desesperada
Muitos olhares curiosos
Nenhuma mão estendida
Uma única opção silenciosa
Línguas paralisadas, emudecidas
Arrancadas de cérebros constrangidos
Atiradas com total desprezo aos porcos
Marimbondos de metal incandescente
Escarrados contra bocas desdentadas
São cuspidos de escopetas traidoras
Contra barrigas bolhas inchadas
Marimbondos letais, catapultas animadas
Sem vergonha escarram matéria mucosa
Em nossas caras lívidas de espanto
92
Cara de gente que não é pálida
Mestiça, mameluca, cafuza
Que não é vinda da África
Que não é transportada
Que não é portuguesa
Que não é ameríndia
Que é neobrasileira
Cara verdadeira
Marimbondos genocidas
Bocarras, barrigas d’água
Pobres bocas desdentadas
Barrigas, bolhas de farinha
Cisternas d’água, perfuradas
Ataque letal encerrado
Barrigas magras, sangradas
Bocas, bocarras escancaradas
Enquanto membros desnutridos
Exalando vapores nauseabundos
Pendem esquálidos para os lados
E longe, em fechados condomínios
Entrincheirada atrás de seus satélites
Sob o demente império dos televisores
A elite encastelada se sente estarrecida
Ante a corriqueira contenda de horrores
CONTENDA DE HORRORES II
Nos braços da apedrejada, filhos desprotegidos
Procurando um rumo seguro erram pelas ruas
Caminham vacilantes de encontro ao muro
E mijam água destilada nas calçadas
93
Ruas de todas as mãos
Realidade perversa e crua
Meninos abduzidos ao nada
Todos os dias andando a esmo
Meninos sem nenhuma opção
Acabam absorvidos peões
Meninos-ratazanas presos
Nas ratoeiras urbanas
Esperneiam em vão
Pelo longo caminho
Folhas caindo no chão
Os meninos entorpecidos
A pele trigueira encardida
Abandonados, as unhas roídas
Injuriados, com a glande a ferida
Necessitados, mas o mundo diz não
Nas esquinas posam outras meninas
Marcadas como loucas mariposas
Maltratadas fêmeas apocalípticas
Enquanto esperam moribundas
Oferecem instantes de ilusão
Sombras esgueiradas pelos becos
Sem a mínima iluminação
Almas assustadiças
Caras máscaras
Sem capuzes
Escondidas
Esfera muda
Realidade crua
Diante dos olhos
94
Lágrimas de Solidão
Os anos passaram e fiquei sozinho
Meu coração chora solitário, com medo
Das horas noturnas que já vão chegar
O único consolo na vigília solitária e permanente
É chorar. Um choro longo e silencioso, sem soluços
Apenas as lágrimas escorrendo pelas laterais do rosto
Eu fiquei sozinho, o vento levou os dias e as noites
E o preço da liberdade de não ser o que era esperado
Foi a solidão dos que não fizeram a vontade dos outros
Tem sido o frio que penetra nos ossos, dói e não tem cura
Caminho à procura da porta da casa
Da casa acolhedora que não existe mais
Ruínas que jamais serão reconstruídas
Só me resta chorar de saudades
Lembrando das manhãs ensolaradas
E do sorriso que aquecia o meu coração
Só me resta chorar
Lágrimas de emoção
Só me resta dançar sozinho
Porque o palco está deserto
As luzes já se apagaram
Tudo ficou tão escuro
Pois perdi meu amor
Não sei para onde ir
Os dias estão terminando
Será que alguém me ouve?
As portas estão fechadas
As janelas não se abrem
Nas ruas o movimento
De atores sem nome
Onde estão os amigos?
Nunca existiram de verdade
E ninguém pagou meu resgate
Permaneço preso num intermúndio
Flutuando na presença de fantasmas
Que assombram o meu coração solitário
95
TERCEIRO LIVRO
A Montanha Vulcânica
Do imo da Terra
Do profundo oceano
Pelo cone vulcânico emerso
Com pedradas e línguas de fogo
Com matéria magmática que esfria
Na passagem ligeira dos séculos e milênios
A montanha fere o céu e transmuta a geografia
Agora já existe terra
Onde antes não existia
Angras, enseadas e baías
O mundo em transformação
Vai se formando forte e belo
Enquanto unigênito da erupção
A montanha é feita de pedra viva consolidada
Que pulsava misteriosa no coração do mundo
Nas profundezas intestinas do magma pastoso
E agora orna a superfície acidentada do Planeta
Terra, água, ar, fogo e o elemento desconhecido
Pedras que explodem arremessadas para o infinito
Milhões de partículas e cinzas espalhadas pelos mares
Gênese das ilhas vulcânicas que abrigaram os náufragos
E que foram envolvidas por imensas ondas piroclásticas
A montanha é expelida ígnea pela boca poderosa do vulcão
É criação da energia magmática e fruto de movimentos globais
É filha do poderoso Vulcano, divindade das entranhas da Terra
É palco de tórridos fenômenos e de apoteóticos estremecimentos
Que nos envolvem indefesos à mercê da fúria dos quatro elementos
96
A montanha fere o espaço do céu
E o fragmento ósseo também fere
O céu da boca do riacho perigoso
Filetes microscópicos de sangue vertido
Escorrem pelas reentrâncias das mucosas
Da boca de rios que desaguam no oceano
Palavras ocas como se fossem cisternas descarregadas
Vias uterinas vazias, senilidade estéril, epílogo infértil
Confusão dos conceitos e das definições concebidas
Desconstrução aguda das células, tecidos e órgãos
Destruição das abóbadas e dos altos pilares
Dependência definitiva dos satélites
Independência dos acorrentados
Ressurgimento dos crentes
Morte dos inocentes
E a montanha se enerva formando mil arestas
A montanha fere a circunscrevente atmosfera
Irrompendo nas sobrepostas camadas aéreas
A ogiva também fere a poluída atmosfera
Devastando a superfície do Planeta Terra
Encerrando processos vivos de adaptação
Terminando longos relacionamentos
Interrompendo experiências valiosas
Profanando templos muito antigos
Desesperando mães amorosas
Fustigando filhos malfeitores
Deixando corpos retorcidos
Sobre a frieza do chão.
Pétreo pináculo dos malditos
Gélido mármore insensível
Montanha austera e silente
Pico eternamente nevado
Onde eu vivo solitário
Com os cachorros
97
Pico eternamente nevado
Onde eu sonho solitário
Devaneios anacrônicos
Onde eu suo de medo
De morrer congelado
Mármore insensível
Granito impassível
Granizo perigoso
Agudo e pesado
Pedra desconhecida
Permaneço genuflexo
Derramando lágrimas
De sangue, água e sal
Solitário e em silêncio
E quando eu menos espero
Hordas de bárbaros ensandecidos
Cruzam precipitados os altos picos
E milhares morrem pelos caminhos
Esmagados pelos próprios elefantes.
Menos aqueles pré-históricos desbravadores
Assombrados, rendiam sincero culto ao fogo
Em algum momento de suas vidas perigosas
Alimentaram mamutes de olhos penetrantes
Conquistando o direito de livre passagem
E, com raro efeito, passaram incólumes
Pelos trogloditas comedores de homens
A pedra mal começava a ser polida
A pedra era composta de arestas
A pedra era embrutecida e dura
A pedra foi iniciada impura
Fruta pétrea amadurecida
Pedra bruta parida
Pedra Cúbica
Transmutada
Em segredo
98
A montanha fere o céu virginal com força
Irrompendo no espaço além das nuvens
Arredando a atmosfera rumo ao infinito
A montanha fere o céu com impiedade
Emergindo das profundezas da Terra
Arredando para sempre a atmosfera
Sobre a relva não paro de sonhar
Imagens que se materializam
Nas reentrâncias cerebrais
Parindo estas palavras
O reflexo do teu belo rosto se eterniza
Nas ondulações da superfície da lagoa
De águas salobras escuras e profundas
Onde se esconde a misteriosa serpente
O arco-íris se encontra descolorido
E o pote de ouro se virou em barro
Restando todas as moedas furtadas
E os íntimos desejos interrompidos
Na face mais preciosa do diamante
Um risco grotesco fere a harmonia
Todas as moedas de ouro perdidas
Os cofres dos ricos foram estourados
Os cofres dos ricos foram esvaziados
Os horizontes se encontram convexos
Os horizontes se encontram encobertos
Os horizontes se encontram a descoberto
Para longínquas incursões neste submundo
99
As trilhas que cortam a montanha estão silenciosas
As águas dos lagos e dos rios também estão silentes
Nos rochedos inóspitos encobertos pela bruma misteriosa
Além dos meus ouvidos humanos, reina profundo silêncio
Além de todos os sentidos, a vida explode em intensidade
Assim como além da constituição física do mundo comum
Existe a dúvida que pende em favor da mera biologia
Existe uma velada conspiração contra a metafísica
Existe o homem vigilante e vigiado
Existe a pureza e o pecado
Em nossas consciências
Além da biologia
– Contradição!
Silêncio no alto das mais frias penedias
Rochedos inacessíveis pendentes no ar
Parques onde cavernas muito antigas
Abrigam as nossas feras primitivas
Montanha sem base, sem pé, flutuante
Altura pétrea atingida pelo pensamento
Coração contrito, dilacerado, condenado
A viver em constante ansiedade e receio
De que o teto do mundo caia sobre nós
Reduzindo-nos a nossa insignificância
Penhasco projetado para o infinito
Montanha da minha existência
Que me aprisiona nas alturas
E me faz despencar culpado
Sobre a frieza do chão
Nu e desprotegido
Desprezado
Desprovido
100
Pináculo superior estático
Pedra totalmente áspera
Mármore insensível
Pesadelo inaudito
Cadeias partidas
Células mortas
Sem vida
Sem ida
Sem volta
Sem existência
Células degeneradas
Estruturas cancerígenas
Pináculo superior vencido
Pedra esquadrinhada e polida
Perdida nas profundezas do mar
Corpo estirado na pedra
Esquecido para sempre
Abandonado pela vida
Vazio nas entranhas
Corpo enrijecido
Coração parado
Sem coloração
Corpo estirado no chão
Sem movimento
Sem explosão
Sem tempo
Sem vida
Sem ida
Sem volta
Sem compaixão
Com documento
Com certidão de óbito
Nas profundezas do mar
Nas fossas mais abissais
Onde não transpassa a luz
101
No vácuo dos espaços siderais
Onde o silêncio faz estremecer
O mais horrendo dos fantasmas
Corpo abandonado na via pública
Pisoteado pela multidão apressada
Desprezado pelos vivos que correm
Candidato a seguir o ermitão Zaratustra
Até que os lobos o reclamem para refeição
Mundo-Cão
Deus fez o inferno, o purgatório e o paraíso
O homem foi expulso do Jardim do Éden
E no purgatório vive com medo
Das labaredas do inferno
Ah! O homem
Macróbio alienígena
Pertinaz perambulante
Das trilhas e descaminhos
Que ora nos levam às grotas
Onde feras perigosas se escondem
Ora nos fazem beirar uma vida superior
Onde operações matemáticas misteriosas
São resolvidas pelo Senhor do Planeta Terra
Oh Deus!
Nosso Pai
Nosso Criador
Responsável por nós
Talentoso e ousado cientista
Que nos laboratórios celestiais
E segundo as regras da alquimia
Divina e incompreensível alquimia
Fez surgir este fenômeno do Universo
Enquanto entidade em constante expansão
102
Meus Deus!
Qual será a verdadeira natureza da energia escura?
Uma condenação para o isolamento da humanidade?
Existirá um cenário a nossa espera após a última reta?
De que modo e quando poderemos percorrer o tempo
A fim de que consigamos alcançar os astros distantes?
Precisaremos mesmo abrir a nossa Caixa de Pandora?
Que chance teremos então diante da atroz realidade?
Nos pequenos mundos engendrados pela Humanidade
As cadelas estão parindo como se fossem ratazanas
E por detrás do coito está a malícia do homem
A carrocinha passa e os cachorros não ficam
São todos recolhidos para virar sabão
No Planeta China tudo é comida
De aranhas ao próprio cão
Cisterna de pandemias
Já na linda Terra dos Papagaios, neste lado do mundo
Sob as palmeiras que atraem seres alados, coloridos
Ainda há pouco eu sonhava com entes mitológicos
E no meio do caminho, impedindo a passagem
Estava o cão dos infernos: Cérbero!
Cão de guarda dos subterrâneos
O repugnante cão tricéfalo
Da mitologia helênica
O demônio do poço
A caveira misteriosa das noites aflitivas de terror
Agora sorri enigmática com os dentes arreganhados
A consciência da responsabilidade pelos próprios atos
Permite retribuir com um sorriso ainda mais misterioso
103
Com receio de ser mordido
E sem interesse na Medusa
Não pude adentrar aos infernos
E retornei para o mundo dos vivos
Mundo-Cão! A vida anda por um fio
O poeta fracassou em destruir-te o ego
E é possível que estejamos todos perdidos
O sexo já era perigoso
Agora está perigosíssimo
O oceano já restou poluído
Existe uma ilha de plástico
À deriva no corpo oceânico
O ar não será mais compartilhado
O amor será um mero ato eletrônico
A água será revendida a peso de ouro
As fronteiras serão muros intransponíveis
As lágrimas humanas continuarão amargas
Apenas os mais inteligentes serão escolhidos
E a guerra fratricida continuará ceifando vidas
Dos que forem condenados a permanecer aqui
Neste mundo iníquo e degradado, deixado para trás
Fornalha que nos queima por onde passamos descalços
Purgatório por onde transitam os reincidentes pecadores
Ordinária condenação dos indivíduos mais sensíveis às trevas
Mundo-cão!
Desilusão dos poetas
Que se perderam da rima
Que superexcitados os sentidos
Voltaram a sofrer do Mal do Século
Abreviando a própria juventude, doentes
Deprimidos, esvaziando garrafões de vinho
Cultuando o péssimo exemplo do louco Byron
104
Retorno ao Mundo-Cão
Um poeta mais antigo
E muito mais talentoso
Decompôs o ego da noite
Penetrando-a com valentia
Para deparar-se com a acidez
Que remete ao ponto do absurdo
Eu que também sou um aventureiro
Subo e desço os caminhos escabrosos
Da montanha rosa pétrea dos meus sonhos
E em muitas vertentes colho sérios pesadelos
Fantasmas macabros e assombrações horripilantes
São meras figurinhas inócuas de um álbum qualquer
Sereias hipnóticas e lobisomens espumando de raiva
São terríveis personagens de histórias em quadrinhos
Os pesadelos não são representações do mundo onírico
Nem a expressão de fobias neuróticas sem razão de ser
Mas refletem a realidade humana em sua dramaticidade
Dor e sofrimento
Solidão e abandono
Abuso, sevícia, estupro
Câncer, loucura, pandemia
Estrada, sangue, morte
Amargura e opressão
Dor e sofrimento
E agora:
A Febre Amarela . . .
Revigorada e deletéria
E o letal vírus da China
105
Mundo-Cão Ordinário
Triste mundo-cão
Estudemos a matéria:
A mãe exige da escola
Que não repreenda sua filha
Por causa da saia muito curta
Acusa a escola de interferência
E afirma que caráter não se mede
Pelo uso de minissaias extravagantes
Para dizer o mínimo:
Confusão das confusões!
Confunde-se o ambiente escolar
Com a pista de dança de uma casa noturna
Mamãe! Não se esqueça de abençoar sua filha
Antes de ela sair com os amigos para ir ao baile funk
Ora, ora, mamãe, não se esqueça, sobretudo
Se ela for com aquela saia muito curta!
Eu por minha conta e diligência
Enfrento todos os dias e noites
Uma guerra de possantes arados
De ameaçadores ponteiros de relógio
De tratores e pesados tanques de guerra
Que amassam todas as roseiras e sebes vivas
Quando nos encontram vulneráveis pelo caminho
E sou obrigado a conviver com essa espécie de coisas
Geração dos desgraçados crescidos nos becos imundos
Onde o drama existencial desce mais fundo no inferno
Dos estressados, fulminados pelo infarto do miocárdio
Geração de despreparados habitantes do Planeta Terra
Seres humanos enquadrados pelo brilho dos televisores
Geração de bilhões de mendigos do intelecto e da razão
Em um notório retrocesso para o lado obscuro da ponte
106
Geração de incautos que atravessam a estrada correndo
Sob o arco de concreto da passarela, erguida inutilmente
Geração dos imprudentes que transitam por becos escuros
Nas reentrâncias misteriosas da fatídica baixa madrugada
Onde reverbera a todos o canto insidioso do ente noturno
Geração violenta que degola seus inimigos na TV ao vivo
Causando um grave abalo moral para toda a Humanidade
Geração que foge da verdade misturando os pensamentos
Com falsas soluções ideológicas contrárias ao bom senso
Geração dos flagelados, dos famintos, dos contaminados
Daqueles esquecidos nos imensos bolsões de miseráveis
Geração dos hipócritas que rezam contritos na televisão
Em tablados religiosos iluminados pelas luzes de neon
Geração de vândalos mascarados que desafiam a todos
Geração de pichadores desprovidos de conteúdo ético
Geração dos estúpidos e néscios que destroem a natureza
Geração de viciados que vagam desorientados pelos becos
E também dos bêbados, em transe, pondo todos em perigo
E dos velhos desamparados, que vivem solitários em asilos
E das mulheres sobrecarregadas de trabalho e muitos filhos
E dos homens que doaram o esperma e sumiram no mundo
E dos vis vigaristas que espreitam pobres vítimas indefesas
E dos videntes e adivinhos que predizem todas as desgraças
E dos falsos pastores que conduzem verdadeiros rebanhos
Para os meandros e becos sem saída de labirintos mentais!
Eu prossigo abençoado
Eu só não enfrento os espinhos
Que nos eram sempre reservados
Devido à Salvação que não mereço
Enfrento, nada obstante, os perigos
Que se escondem como sutis armadilhas
Armadas por mãos escusas e inescrupulosas
Durante o silencio misterioso da baixa madrugada
107
Já perdi pés, pernas, mãos e braços
Nas minas subterrâneas do sentimento
Mas não lamento, por força do que já senti
Já perdemos pés, pernas e a nossa dignidade
Nas minas explosivas enterradas em Angola
E vamos lamentar para o resto de nossa vida
A dor dos mutilados inocentes e esquecidos
Mendigando doentes nas ruas de Huambo
Mundo-cão ordinário
A ferida sangra para sempre
Exalando fétida excrescência
Marcando o compasso de espera
Marcando o peito da humanidade
Com o sinal indelével da mortalidade
Mundo-cão
Cachorro louco
Sacrificador dos incautos
Canídeo hidrófobo mordedor
Que conduz rebanhos de homens
Uma chaga se abre a cada segundo
Uma chaga que se alastra pelo corpo
Uma chaga para cada canto do mundo
Os pulmões estão quase sem oxigênio
Os neurônios estão perdendo a conexão
Enquanto o sol se põe no último crepúsculo
Larvas carniceiras consomem a carne putrefata
Mundo-cão do ego humano
Sobretudo do mundo masculino
Superdimensionado interior subjetivo
Cada um de nós colabora para o fim do mundo
108
O que será das criancinhas e dos animaizinhos
Que preenchem nossos desditosos corações
Fazendo com que as feras, por um segundo,
Suavizem o seu rugido e se tornem mansas?
A fera que se esconde em nossos corações
Jamais revelada para o grande público
Construirei para mim uma cabana no meio do deserto
Estarei muito mais perto das estrelas e longe dos homens
E se a ira de Deus recair sobre mim como um raio mortal
Morrerei soterrado pelo movimento das dunas gigantescas
Por Um Novo Fim
Quando Hamlet decidir como dará a resposta ao povo
E a eterna dúvida for dirimida com muita inspiração
Quando rugas adornarem as linhas do teu rosto
E a experiência transformar-se em professora
Quando as palavras se revelarem ao mundo
E as pessoas ouvirem o nosso chamamento
Quando as palavras saírem pela tua boca
Quando fluírem pelo espaço feito loucas
Quando confessarem a pura verdade
Os corações baterão compassados
As canções soarão harmoniosas
Os ritos serão bem executados
E nós dormiremos em paz
Na paz que embala o sono
No sono dos exaustos
Exaustos de trabalho
Trabalho do bem.
109
No canteiro da boa obra
Executada com perícia
Entre os quatro pontos
Demarcadas as linhas
Os obreiros da Arte
Constroem castelos
E catedrais . . .
Quando o contemporâneo é considerado primitivo
E a sabedoria é arredada para dar lugar à esperteza
Quando o caminho mais rápido se mostra escabroso
Repleto de declives inesperados que levam às grotas
Onde existem seres ferozes capazes de nos devorar
Quando o destino se apresentar exatamente o oposto
De tudo quanto sempre foi muito esperado por todos
Quando teu jovem coração bater solitário e desditoso
(E nada pudermos fazer para restituir-te a felicidade)
Então será necessário respirar fundo e determinado
Ir embora para longe sem olhar para trás
E se Deus quiser, recomeçar do zero
Recomeçar para um novo fim
Uma colheita de novos grãos
Construindo uma nova cultura
Segundo conceitos diferentes
Este é um precioso ensinamento
De um famoso mestre brasileiro:
Recomeçar por um novo fim!
110
E agora repare:
Quando a solidão não for o suficiente para o equilíbrio
E o coração tiver que se humilhar para não ficar sozinho
Quando o escuro da noite for mais que ausência do Sol
E as trevas invadirem as horas fatídicas da madrugada
Provocando o caos em certas realidades individuais
Quando a mentira for apresentada como verdade
E os fatos vivenciados forem negados sem razão
Quando os teus olhos se desviarem dos meus
Procurando o chão com a boca entreaberta
Quando não restarem mais velas acesas
E a escuridão dos eclipses inesperados
Limitar nossos íntimos pensamentos
Então caríssimo amigo desocupado
Também será hora de não olhar
E resoluto redirecionar a visão
E partir para bem longe
Sem virar para trás
E finalmente:
Quando o admirável gado novo se tornar velho
E ainda assim for passando o resto da vida
Sem arriscar a mínima reação libertadora
Ruminando antigas e doidas frustrações
Então a atmosfera se tornou pesada
E o ar muito difícil de respirar
E se Deus deixar (já é tarde)
Iremos embora correndo
Sem olhar para trás
Na busca por uma nova atmosfera
Onde o recomeço aconteça
Na direção de outro fim
111
Estilhaços em Movimento
Tablados, tabuleiros e lajes de concreto
Raias de areia nas pistas do hipódromo
Veias perfuradas e artérias entupidas
Longas carreiras de poeira deletéria
Neurônios alucinados
Em mentes adoecidas
Cachimbos enjambrados
Nos bancos da praça pública
Enquanto os sonhos percorrem
Longos caminhos inconsequentes
E a baba escorre pelo canto da boca
Derrota do tempo
Vômito nauseabundo
Vertigem ladeira abaixo
Vingança predeterminada
Vontade que nunca é atendida
Verdade que nunca é revelada
Verdade que não se oculta nas vertentes variadas
Que se manifesta nas mil entrelinhas do texto
Que é escarrada diretamente no teu rosto
Que recebe o holofote principal
E ainda assim não é percebida
Do primeiro ao quinto todos são conhecidos
No entanto o sexto continua subentendido
Relativamente presente no canto profundo
Que penetra insidioso em nossos ouvidos
Cantam arapongas metálicas e quero-queros
Ecos de um passado distante onde o homem
Ainda dormia inocente nas grutas e cavernas
Hoje adormece e acorda culpado e confesso
112
Saem da garganta do bardo contemporâneo
E reverberam ecoantes pelas arquibancadas
As rimas certeiras que arrebatam corações
Outras notas e acordes desconcertantes
Reverberam como sirenes ensandecidas
Anunciando a emergência de nossa vida
Intervalos e longas corredeiras
Dias e noites sob os holofotes
O prato de vidro estilhaçado
Barato, quebra sob o fogo
E os cacos se espalham
Sobre a superfície
Estilhaços em direção oblíqua
Dos pontos da rosa dos ventos
Do Oriente ao Ocidente
De Norte a Sul
Do mundo
113
A Rosa
Famigerada rosa pálida
Rosa náutica perversa
Rosa náutica diversa
Daquela hereditária
Daquela rosa morta
Daquela radioativa
Derradeira flor
Rosa Fétida
Escandalosa
Rosa explosiva
Rosa encardida
Rosa malfadada
Rosa contemporânea
Estampada no horizonte
Eivada de vícios na fonte
Contaminada por malefícios
Antirrosa dos ventos malfazejos
Cogumelo
Flor de papel
Flor enigmática
Falsa rosa pálida
Falsa rosa branca
Verdadeira madrasta
Perigosa como a bruxa
Malvada, malvada, malvada!
Devastadora como uma onda piromaníaca
Rosa insalubre se expande no horizonte
Mensagem antiprosa-antipoesia
Falsa rosa disfarçada de cores
Sem estrutura e sem conteúdo
Sem letras nas legendas vazias
Rosa da morte, largada, sem nada
114
Sem prosa, sem rima, sem poesia
Roda da vida, rolada, desgastada
Sem volta, sem rima, sem alegria
Partida para nunca mais voltar
Estourada pelos sete mares
Em ondas circunscritivas
Antiprosa-antipoesia!
Vitória da expressão
Contra os opressores
Que nos aprisionam
Contra os maliciosos
Que aplicam o golpe
Do conto do vigário
Entrementes:
Vento maligno que vem e que passa inclemente
Deixando um rastro de destruição e sofrimento
Vento que arrasta árvores, casas e edifícios
Imprimindo em nossos corações um pavor
Que os nossos filhos jamais esquecerão
Perversa rosa radioativa
Quente como a pior fornalha
Explosiva como a mais sensível espoleta
Degradante como as feridas nas dobras da pele
Maligna como os tumores inominados e desconcertantes
Antiestética como as cabeças calvas curvadas para baixo
Dantesca rosa radioativa
Invasiva como a maré alta no rio
Penetrante veneno no imo dos tecidos
Falsa rosa deletéria, coroa de espinhos
Desconstrução de memórias e edifícios
115
Fruto etéreo ecoando dentro dos ouvidos
Rosácea de veias e artérias penetradas
Onde corre o nefasto trinitrotolueno
Rosa letal que nos condena ao eterno sofrimento
Onde os tecidos são consumidos pela radiação
Coração que bomba um milhão de toneladas
Coração doído que sofre sempre silencioso
Coração misterioso que acolhe
Variados sentimentos
Coração assustado
Olhos arregalados
Ouvidos alertas
Adrenalina
Nas veias
Pétalas projetadas para o infinito
Maga cega que rasteja pelo chão
Maga que pragueja pragas
Triste feiticeira tenebrosa
Como uma loba solitária
Sedenta por sangue
Faminta por carne
Toda matéria
Maga desencantada
Megassofrimento
Megaestrondo
Megamegaton
Sufocante
Energia
116
Mania de não desencanar
Mania de morrer tão cedo
Mania de morrer de medo
Mania de estar vulnerável
Medo de ser surpreendido
Pelo problema sem solução
Medo do declínio da saúde
Devido ao escoar do tempo
Falsa rosa despetalada
Triste rosa desvirginada
Rosa incendiária bandida
Que nos arrebata a vida
Antirrosa do velho poeta
Rosa em riste prestes a cair
No eterno e frio esquecimento
Depende apenas de passar o tempo
Depende apenas do teu desprendimento
E o tempo vai passando
Já são 14 bilhões de anos
Desde a explosão primordial
Esperando um novo advento
Nada sei sobre o elemento
Que se revela misterioso
O tempo escoa pelo ralo
Entre os dedos dos pés
Absorvido pelo escuro
Do buraco negro
117
Coração Deserto
Pupilas dilatadas
Batimentos acelerados
Rigorosa vontade divina
Coração de cavidades frágeis
A caminho de um destino certo
Escravo dos influxos incertos
Destinado a impermanência
Destinado ao sofrimento
Submisso à má sorte
Desditoso batimento
Vendaval constante
Direcionado vento
Sempre arriscado
Inserto no peito
Do coração cansado
Do peito transformado
Da mente superexcitada
Emergem nereidas mitológicas
Que acenam apontando o fundo do mar
Olhando de cima vejo as três pontas do Tridente
E suponho que se pudesse me aprofundar ainda mais
Certamente acabaria encarando o vetusto deus Netuno
O olhar, no entanto, enxerga mil redemoinhos de areia
Os ouvidos ensurdecidos não ouvem o canto das sereias
Os velhos conhecem os riscos e os perigos dos sortilégios
E os jovens continuam correndo atrás de sonhos inauditos
Sonhos que nos levam a mundos interessantes
Sonhos que nos revelam o que exatamente somos
Sonhos onde a Caixa de Pandora se encontra aberta
Sonhos onde o decano prisioneiro inocente se liberta
118
Os Fastos da Terra
Eis outra contradição:
Ratifico o uso do cajado no lugar das catapultas
Por outro lado, não recomendo o uso do arado
Para sulcar profundas cicatrizes na Terra
A agricultura transforma a natureza
Substituindo a forma divina variada
Pela forma humana precipitada
E uniformemente invariável
Infelizmente necessária
Para a sobrevivência
Da humanidade
Devo retificar a ideia
Nas savanas ecoam urros
Nas serras mora a suçuarana
Nos cerrados ecoam esturros
Ondas reverberam estrondosas
Energias oscilam nas linhas elétricas
Os tambores enobrecem todos os ritos
E a mente amadurece cada vez mais engenhosa
– Menos o corpo que não acompanha!
Na floresta, insisto no grito
Os sulcos da terra nos condenam
As trilhas percorridas nos denunciam
Revelando que estamos em movimento
119
Fugimos das areias escaldantes
Para escrever lucubrações circunscritivas
E viramos iceberg que se derrete pelo mar
Sem estranhar a nossa espalhafatosa presença
Bugios vermelhos vêm nos encarar frente a frente
Cobras cipós nos enlaçam após caírem sobre a cabeça
Esqueça todos os compromissos e corra para o paraíso
É preciso libertar os próprios ombros de todo este peso
É preciso que se revelem mais cedo os nossos segredos
Confidência
Acredite em mim
Determinado leitor
Juro que estou bem
Juro que não sinto nada
Juro que não vejo suricatos eletrônicos
Ou aracnídeos e ratazanas subindo pelas paredes
Ao contrário dos viciados em xaropes e barbitúricos
Que se arrastam pelas calçadas em suas alucinações
Juro que não vejo focos de fogo fátuo entre os túmulos
Ao contrário daqueles místicos observadores notívagos
Que se dão ao luxo de passar ao largo da vida profana
Juro que não ouço as estrelas falantes de Olavo Bilac
Nem vejo discos voadores abduzindo seres humanos
Nem pandorgas ensandecidas serpenteando no céu
Juro que não pretendo vaticinar sobre o futuro
Nem prever a corrida salvadora da Cavalaria
Nem ver os propalados javalis presos à cauda
Nas abas do chapéu do Mestre da Loja
Na penumbra branca da luz negra
Nada vejo além das formas cotidianas
Além da mediocridade preponderante
Além dos muros altos que dividem
Além dos olhares que humilham
Além de mãos que suplicam
E não são atendidas
120
Meus olhos estão abertos e mesmo assim não vejo
Minhas mãos acenam e não são correspondidas
No registro das palavras não encontro a rima
E mesmo assim subentende-se a melodia
E a mensagem soa como música
Nos meus próprios ouvidos
O coração? Bem, o coração é pétreo
O coração não tem batimentos vivos
Tem ânsia de vômito e medo da vida
Medo mórbido dos próprios ouvidos
Vislumbre
Agonia dos que vão morrer sitiados sem piedade
Lamento dos abandonados à própria sorte
Silêncio dos condenados à vida difícil
Desespero dos condenados à morte
Choro dos aliviados sobreviventes
Vazio em todos os corações vis
Destruição dos neurônios
E da nossa vã filosofia
Pela verdade nua
E crua
121
Miragem
Colunas de fumaça
Carruagens de fogo
Urubus de cabeça vermelha
Cruzam os céus sobre as nossas casas
Sobrevoam atentamente os nossos quintais
Prenunciando que o tempo está bom para voos
E que em breve sentiremos o cheiro nauseabundo
Da carcaça que jaz putrefata vítima da mortalidade
Erupções inesperadas sobre a pele culpada
Catapultam baionetas ígneas que incendeiam todas as coisas
Os neurônios queimam e o espírito conhece o fogo do inferno
Os pés andam em brasas e nos dedos a pele se funde grudada
Dantescas ondas piroclásticas
Devastam a superfície da Terra
Os homens se tornam subterrâneos
Vespas incendiárias saem dos meus olhos
Vespas caçadoras mortais preto-azuladas
Os zumbidos inundam os teus neurônios
E vão atingir o cerne do teu coração
Onde mora apetitosa tarântula
Criada com outras tarântulas
122
Atlântida Perdida
Atlântida desaparecida
Experiência inaudita de vida
Nas tão antigas terras do Egito
Muito tempo antes de Mercúrio
De Hermes, de Zeus e de Júpiter
Incidente
Incidente vascular cerebral
Incidente na Nebulosa
Incidente em Antares
Insustentável leveza
Risível fragilidade
Do homem
E do ser!
Fruto dependurado aéreo sobre o mundo
Fruto da labuta dos filhos mestiços
De índios, brancos e negros
Não o mestiço, que é o nosso orgulho
Mas o malicioso, que não vale nada
Fruto bandido sem sabor
Sem conteúdo, sem teor
Alcoólico, entorpecido
Drogado, maldito
123
Destino
Não era para ser repetido
Não era para ser visto
Não era para ser
Mas foi
Abanam-se os leques e abrem-se as sombrinhas
Guarda-chuvas destinados desde sempre
Para uma única chuva
A chuva diluviana
Derradeira
Heroica
Pernilongos de longas pernas e asas transparentes
Circundam portadores de vírus maléficos para o homem
Circundam esfomeados e são atraídos pelo calor do corpo
Circundam com longas e afiadas agulhas em busca de sangue
Circundam cicatrizes que se eternizam na dor e no sofrimento
No enfrentamento da vida difícil pelos pobres e desamparados
Por outro lado, sejamos persistentes o suficiente para sobreviver
Circuito integrado
Peça de teatro onde os atos
São escritos para o nosso estupor
124
Contradição
Não sou poeta, fico convencido
Repudio a antiguidade da métrica
Repudio a voluptuosidade da rima
Esbravejo se sou vítima de fantasias
Suspendo o arado para não sulcar a terra
Desfaço quimeras para não eclipsar o Sol
Sapateio de preferência na madeira de lei
Sem leitores, sem público cativo
Escrevo o que trago comigo
Sem ter o que temer
Não por um milagre
Mas depois de longa espera
Antigas cadeias foram abertas
Cadeias que aprisionavam o bem
Que fugiu pelas avenidas movimentadas
Sem nenhuma orientação geográfica específica
Onde estão os defensores da ética e da moralidade?
Estão paralisados diante da própria imagem no espelho
Profundamente constrangidos porque também atentaram
Onde estão os que venceram as elites burguesas?
Estão jantando com os coronéis do Maranhão
Ou estão presos e envelhecendo na cadeia
Onde se esconderam as lâmpadas cheias de luz?
Foram surrupiadas em defesa da escuridão
Onde está a coerência tão esperada?
Está sob o ataque da contradição
E até as gôndolas acabarão por proibidas
Uma vez que as águas se mostram destruidoras
Invasoras línguas líquidas onduladas sobre a praça
125
O Fascínio da Lua
É noite
Penetro nas entranhas silenciosas
Das horas fatídicas da baixa madrugada
Para ouvir a mais absoluta falta de sons
O silêncio se torna um quinto elemento
Vejo um rastro de antigas lembranças
Vejo pegadas por onde ando sozinho
Vejo marcas ao longo do caminho
Vejo o próprio caminho findo
Nada mais é possível ver
O corpo se cansa
Os olhos se fecham
Num sono profundo
É noite envolvente e arrasadora
A atmosfera noturna tem cheiro
O silêncio acoberta vozes fantasmagóricas
O túnel se alonga em curvas e retas intermináveis
O coração acelera na busca de um sonho improvável
– Acredita cegamente na antiga promessa de felicidade
E bate ligeiro para irrigar todas as reentrâncias do cérebro
Primeira noite secreta
Sem nome, sem calendário
Sem palavras, apenas olhares
Sem sofrimento, apenas lágrimas
Que escorrem com muito sentido
Que lavam o rosto ordinariamente
126
Somos Todos Alienígenas
Alamedas desconhecidas
Alamedas de árvores decíduas
Com os galhos retorcidos como braços
Que abraçam todos os sonhos e pesadelos
Que abarcam as abstrações do espírito
Corredores e galerias subterrâneas
Onde bate teimoso o meu coração
As comportas do silêncio se abrem rompidas
E a noite é invadida por uma miríade de sons
Estranhos estalos provocados por línguas de vento
Provindas do sopro do Criador e Senhor dos Mundos
Estranhos ruídos arranham os meus ouvidos
Assédio de sequências de sons sobrenaturais
Séries de rumores de insatisfação e repúdio
Às cantilenas que hipnotizam os homens
Fazendo com que se atirem ao mar
Para morrer basta descuidar
Para viver é preciso trabalhar muito
Enfrentar um sem número de doenças
Neste mundo estranho à nossa conformação
Somos náufragos do espaço
A sociedade humana mal adaptada
Reside no Planeta Terra de improviso
Nele dormimos inconscientes, acordamos
E pagamos um altíssimo preço de adaptação
E lutamos até a morte contra elementos daninhos
E sofremos para superar os nossos instintos primitivos
127
Liberdade Tardia
Melhor silenciar o coração para sempre
Queimar todas as ferramentas de madeira
Derreter o metal em lingotes geométricos
E nadar de peito aberto até o mar de Luanda
Façamos o caminho inverso dos antepassados
Os escravos negros africanos vindos de Angola
Porém não nos mesmos porões insalubres e frios
Mas como homens livres que retornam à origem
De Uma Coluna Para Outra
Estávamos ouvindo a Acácia Amarela
Um profano veio bater às portas do Templo
Confessou ter interesse pelos nossos arcanos
Pediu para ser iniciado nos augustos mistérios
Disse querer conhecer os grandes arcanos da alquimia
Disse querer conhecer uma nova e contundente gnose
Disse querer conhecer os segredos da cabala hebraica
E nada mais declarou porque foi convidado a calar
Sentado num tosco banquinho de madeira
Quase soluçou quebrando o silêncio absoluto
Vulnerável sorveu o gosto amargo do cálice da vida
Também conheceu extasiado o gosto adocicado do mel
Apresentado aos extremos lances da vida do homem
Tremeu sobre os próprios pés e tombou inconsciente
Salvo por uma força emanada da bondade de Deus
Despertou para um estado superior de consciência
O que foi imediatamente reconhecido por todos
Ergueu-se e caminhou pela estrada da retidão
Percorreu a Terra de Norte a Sul
Do Ocidente ao Oriente
E saiu vitorioso
128
Liberdade de Ir e Voar
Arribam voo as Aves do Paraíso
Outros faisões voam de improviso
Gaviões famintos sobrevoam a presa
A lógica da natureza se mostra contundente
Na Lufthansa voam livres os falcões dos Emirados
As noites árabes ocorrem em grandes tendas no deserto
E os morcegos hematófagos seguem em busca de sangue
Voam livremente pelas pontes aéreas noturnas
E depois rastejam para lamber tuas veias
Enquanto dormes vulnerável e inocente
Liberdade de Expressão
Continuo insubordinado
Defensor ardoroso do dissenso
Assíduo leitor das páginas mágicas
Do intrépido filósofo do Iluminismo
Demiurgo da liberdade de expressão
Discordante defensor do teu discurso
Faço minhas as tuas palavras
Faço minhas as tuas impressões
Utilizo-me da tua técnica de redação
E liberto as palavras da prisão perpétua
Na brancura ensandecida desta folha virtual
A tribuna, entretanto, permanece aberta
Poucos se levantam e ocupam a tribuna
Tudo o que está posto pode ser dito
Toda verdade pode ser revelada
Toda verdade será relativa
Os ouvidos que ouçam
E colham o trigo
129
Sonhos Crepusculares
Nos meus devaneios inauditos
Percorro longas escadarias de pedra
Geometria pétrea cravada no chão do mundo
Por onde andamos, ou melhor, subimos e descemos
Os pés apoiados em misteriosos e vetustos monólitos
Um longo e sinuoso caminho em direção às montanhas
No alto das quais poderemos colher uma única flor
Um único dia de primavera e depois o inverno
Degraus esquadrinhados no passado distante
Por mãos calejadas e espíritos sofridos
Por corpos doidos e machucados
Pela extenuante jornada
Em direção da morte
No meu sonho extenuante
Vejo árvores decíduas que acenam
Tanto para os vivos quanto para os mortos
São incontáveis árvores de formato exótico
Que desaparecem no retrovisor da máquina veloz
Cada vez menores, cada vez menores, mais distantes
Agora, apenas uma tênue lembrança arquivada na memória
Como se o tempo fosse uma sucessão de folhas do nosso caderno
Devaneios Vocabulares
No mundo onírico sou prisioneiro da realidade
Meus sonhos são pesadelos que refletem a vida
Sonhar apenas bons sonhos faz parte do passado
A inteligência não é um atributo genuinamente humano
A inteligência é um atributo divino do qual comungamos
A inteligência tanto pode ser uma máquina de destruição
Como pode ser o vetor capaz de nos conduzir ao paraíso
130
Devaneio Urbano
Retorno à cidade das mariposas
Que levam a vida assustadas
Retorno aos becos sem saída
Dos homens desorientados
Das mulheres desditosas
Das bruxas e feiticeiras
Das ladeiras recurvas
Dos vários círculos
Das esferas abertas
E dos quadrados
Cidade de linhas retas
Irmanadas na ortodoxia
Da geometria planejada
Aérea, plana e subterrânea
Cidade surda, sem ouvidos
Engolido pela malha urbana
Frio, sou digerido lentamente
Cidade de verdade
Dos círculos imperfeitos
Dos antigos vales descampados
Dos morros esculpidos a picareta
Das ruas e avenidas repletas de gente
Sem nome, sem coração, sem destino
Em rede ativa, superlativa
Reanimo, retorno, reafirmo
E reivindico a condição de ser
A dúvida do filósofo ficou superada
Do alto da escada deponho o síndico
131
Um tal de seu Maia
Deixem o cantor cantar
Deixem a energia acumular
Deixem o coração bater compassado
Sedento para voar em direção da luz
Que extasia ao ponto de levar à morte
Metamorfose em constante movimento
Um peão girando em torno de si mesmo
Correndo de braços dilacerados e abertos
No desejo de mitigar a dor e o sofrimento
Tomo a primeira poção, a segunda e a terceira
Livre das respostas pela inexistência de perguntas
Livre do estio, liberto das corredeiras sub-reptícias
Pronto para singrar nas águas profundas e cristalinas
Com dor sim, com sofrimento
Mas singrando o pensamento
Do instante primordial
Ao tempo presente
Sigamos em frente
Por que parar? Continuemos
Abaixo a cabeça do Robespierre,
Que existe teimoso dentro de mim
Decapitai-a com orgulho manifesto
132
Devaneio Noturno
Prosaica manifestação do espírito pós-moderno
Antiprosapropoesia protomatéria do escritor
Antiprogramática retórica poética da dor
Preciosa poção mágica antirrábica dos pesquisadores
Pernicioso ato de agentes antiéticos que negociam propinas
Devaneios filosóficos peripatéticos dos que tem sede de saber
Chamamento virtual contemporâneo a todos os predicados do ser
Invocação das criaturas desavisadas que habitam as regiões ermas
Sublimação do jogo decisivo, que foi suspenso, porque o avião caiu
Dos homens da Terra poucos são os escolhidos
O fastígio da vida é simbolizado pelo nível
Do pedreiro que talha e talha a pedra
Pela estrela do padroeiro
Que benze e reza
Senhores, de pé e à ordem!
Atentai para a seguinte revelação:
Somos protofantasmas vindos de fora
De uma região muito longe da Terra
Além da imaginação condicionada
Somos verdadeiramente náufragos neste mundo
Seres alienígenas vitimados por inúmeras doenças
Seres que se maravilham com as formas da natureza
Estranhos ecossistemas vagarosamente desvendados
Pelos grupos humanos aqui chegados há muitos anos
Somos náufragos do espaço sideral em expansão
E no mundo virtual criamos o ciberespaço
Por onde navegamos com a esperança
De que existam do outro lado
Portos realmente seguros
133
O estado “permanente” é um fenômeno relativo
Pois nada permanece intacto por muito tempo
Tudo permanece imprevisivelmente
Oliveiras crescem nas calçadas
Ao longo do bom caminho
Azeitonas descaroçadas
E os caroços no chão
E tudo passa
Ácido corrosivo nas entrelinhas do texto
Onde Deus escreve certo por linhas tortas
Onde o homem planta mensagens cifradas
Onde as namoradas são levadas para passear
Pelas trilhas traçadas nos meandros cerebrais
De nossas mentes tão repletas de pensamentos
Eu faço apenas o registro
Das peripécias infanto-juvenis
Da complexa experiência varonil
Da fabulosa vivência da senilidade
Enquanto consciente jornada de vida
Se quiser abro mão do ser
Não insisto, somente transmito
Uma qualidade de poder não ser
De poder estar totalmente errado
Conquanto o erro não fira ninguém
No entanto, ardo nas labaredas do inferno
Quando se evidencia a qualidade de poder não ser
De que tudo esteja acobertado pelo manto ensandecido
Da profundamente dissimulada e perigosa esquizofrenia
Vício nefasto de uma consciência maliciosa
Desço do palco, este lugar reservado aos atores
Arranco as máscaras com as duas mãos molhadas
Naquele momento em que se revelam os interiores
Dos corações calejados e dos cérebros dos homens
Não quis enganar o respeitável público, mas enganei
134
Nunca fui um ator de verdade, mas apenas um espectro
Que se arrastava furtivo e cambaleante pelos quadrantes
De um palco invadido por todas as formas dissimuladas
Ao descer os degraus até a plateia renasci mais forte
E para não ser mais um expectador, mero assistente
Juro que quebrei as cadeiras e poltronas do teatro
E depois num ato de pura e inabalável convicção
Levei a encenação de secretas passagens da vida
Para o céu aberto das praças e das ruas
E me tornei um verdadeiro ator . . .
De rua, um saltimbanco
O teatro perdeu as cortinas e o próprio palco
Mas ganhou as calçadas malconservadas
Perdeu as antigas e caras arquibancadas
Mas fugiu para as ruas mal planejadas
A peça findou de forma assustadoramente abrupta
Todas as lâmpadas foram retiradas em silêncio
E as velas se apagaram misteriosamente
Permanecendo tudo na escuridão
Até o amanhecer do novo dia
135
Confissões da Madrugada
Da fatídica e misteriosa baixa madrugada
Quando lobisomens e fantasmas se recolhem
E a Caixa de Pandora hermeticamente fechada
Nada revela à deletéria curiosidade do homem
Quando a alma é absorvida pela física quântica
E a biologia nos comove como única realidade
Quando, sejamos certeiros, a natureza humana
Nos condena às cruéis penas da racionalidade
Tornando muito mais árdua a nossa tarefa
De fazer menos infeliz a este ser pensante
Emergimos revigorados para um nível
Mais elevado de consciência
De minha parte prossigo nesta curta jornada
E, sem delatar ninguém, confesso toda culpa
Sou inocente da primeira acusação imputada
Porém resto condenado sem nenhuma prova
Entretanto . . .
Sou culpado pelos atos cometidos na madrugada
Nas horas frias e fatídicas da baixa madrugada
Quando até o galo desperta sobressaltado
Quando pequenos seres obtusos
Espreitam com suas cartolas
Sem nos olharem nos olhos
Sou culpado pelas sensações e pensamentos
Capazes de modificar bases muito antigas
Sou culpado pela minha própria cegueira
Pois não enxergo o buraco da fechadura
Sou culpado pelas pedras cardíacas
Que endurecem o meu dia a dia
136
Sou culpado também pelas pedras brutas
Que preciso extrair da pedreira perigosa
E pelo risco que assumo ao enfrentá-la
E ainda sou culpado de toda culpa possível
Pelas pedras do rio que rolam na enxurrada
Na busca do diamante formado sob a tromba d’água
Sou culpado declarado como tal pelo próprio olhar
Que se reflete na superfície da lagoa enluarada
Que se reflete no espelho revelando meu rosto
Que faz pensar desconfiando das aparências
Que se reflete na expressão do interlocutor
Que perscruta o lado de dentro das formas
Para ao menos vislumbrar a teor do espírito
Para entender os mecanismos que nos regem
E escapar das tuas artimanhas preconceituosas
Um olhar focado para dentro da vida
Uma descoberta desconcertante
Um turbilhão de descobertas
Verdades sempre latentes
Verdades muito distantes
Verdades deprimentes
Outras verdades
Outras ondas
Piroclásticas
Presentes
A primeira é que o tempo não para
Nascemos morrendo infelizmente
A segunda é a natureza do homem
Covarde e extremamente egoísta
137
E a terceira deve ser a derradeira
Encontrada no fundo do túmulo
No fim do mundo animado
Corpo inerte estirado
No mármore morto
Nada obstante, sou culpado de muitas lágrimas.
Esculpimos em conjunto as linhas mestras do rosto
E vimos à formação de muitas outras linhas afluentes
E mesmo assim desconhecemos o caminho da inocência
O diabo anda a solta
O diabo precisa ser preso
O diabo não pode estar solto
Onde estão os carcereiros de Deus?
O diabo anda à espreita
Sorrateiro e malicioso
Bonito e bem-posto
Disfarçado de anjo
Para te subjugar
Gritos perdidos na noite
Palavras de baixo calão
Andrajos fedorentos
Muito Cuidado
Fique atento
O diabo tem a cara preta
O diabo tem a cara branca
Cuidado com o anjo decaído
Cuidado com o anjo bandido
Ele toma conta do teu corpo
Ele toma conta da tua mente
138
O diabo está sempre presente
O capeta expulsado invejoso
É preciso exorcizá-lo com energia!
Ele toma conta de muita gente
Penetra no seio das nações
Prometendo lindos sonhos
E entrega terríveis pesadelos
Espaços obscuros nas arestas
As mais conhecidas e próximas
A saliva é adoçada artificialmente
O sangue se derrama nas vertentes
E escorre pelos dois lados do rosto
Madrugada Em Mim
Meu coração
Eis o meu sentir
Sem reservas mentais
Eis o meu pensamento
Revelado inteiramente
Diante dos meus olhos
Entreabertos na escuridão
Longe, muito longe da Humanidade
Além das dunas em constante mudança
No mundo das formas que se transformam
Impelidas pela vocação primeira da mãe natureza
São ouvidas antigas cantilenas que acalmam a alma
Enquanto as lagartixas correm ligeiras
Deixando rastros reveladores no chão
Reflexo da magnífica luz das estrelas
A abóbada celeste noturna se revela
E nesta vertente sideral inspiradora
Os sonhos não inventam pesadelos
Sendo simples aventuras espaciais
139
Sons da madrugada em mim
Prisioneiro dum tempo voraz
Laçador de utopias na cidade
Nos becos sem saída, nas ruas
Nas amplas e arborizadas avenidas
Onde as folhas nas calçadas rodopiam
Levando embora o nosso largo chapéu
Laçador de outros vendavais no campo
Onde emas e seriemas correm faceiras
Onde se arrasta em silêncio a serpente
Onde se esconde o meu triste coração
E meus olhos miram humildes os teus
Embora não existas em carne e osso
Sinto plenamente a madrugada em mim
Prisioneiro do corpo inerte sobre a cama
Personagem no bojo de um psicodrama
Perplexidade face à crise de consciência
Estremecimento com o vislumbre da luz
Força que seduz
Clarão que obscurece
Ouçam a última prece
E se retirem para dormir
O bom sono da eternidade
Madrugada adentro que se abre inteira para mim
Tempo de ir embora depois de abraços e acenos
Tempo de adiantar as posições vencendo limites
Tempo de preparar o terreiro para outra lavoura
Tempo de preparar o terreiro para uma entidade
Que nos garanta tempo para construir a verdade
Reconstruir a estrada à ponte que religa a mente
Eis o grande desafio que sempre nos acompanha
140
Quando olho o dorso de minhas mãos
Vejo cactos e descaminhos desérticos
Vejo o Monstro de Gila sobre a pedra
Vejo a cascavel à espreita sob a pedra
Enxergo a silhueta do teu velho corpo
Visões paradoxais
Sentimentos contraditórios
Atitudes de pleno enfrentamento
Das mazelas inerentes à condição humana
Somos um complexo pêndulo que oscila no espaço
A nossa principal dificuldade é a permanente reflexão
Sobre o sentido ético de nossas espetaculares existências
E eu, o que quero de mim?
O que sou não me abandona
O que sou me identifica com as luzes
E as sombras que se digladiam em mim
Sou o sangue vital que flui nas veias e artérias
Sou uma sequência irresponsável de pilhérias
Sou o teu único conforto no meio do deserto
Sou aquele que sempre esteve mais perto
Pronto para tomar da tua bebida
Sorvo a seiva da misteriosa vida
Com a avidez dos sobreviventes
Sorvo dia e noite o fluído vital
Com o amargor dos sofredores
Sou o beijo proibido no canto da boca
Sou o desejo reprimido que sufoca
Que permeia a baixa madrugada
Que espanta para longe o sono
141
Sou absolutamente nada neste episódio infeliz
Uma rajada de vento nesta quadra desditosa
Uma aparição fantasmagórica improvável
Uma andorinha solitária indo embora
Porque o verão ensolarado passou
E a bomba que carrego dentro do peito?
Sou um homem-bomba em movimento
Sou um homem racional em julgamento
E não encontro motivo para ser absolvido
O elemento preponderante é o fogo
Por isso estou totalmente queimado
Na boca se abre uma enorme fenda
De onde são tiradas palavras torpes
Na pele se abrem pequenas fissuras
Por onde corre o sangue venenoso
Para Onde Ides?
Simplesmente vazio!
Sem nenhum sentimento
Sem nenhum pensamento
A mente completamente vazia
O coração completamente vazio
Filhos da humanidade
Filhos da dor e do sofrimento
Rebentos gerados sem motivo
Rebentos famigerados dizendo:
– Já era! Não precisa ter sentido
E de fato não tem
Não faz sentido
Embora gire
Lentamente
142
Girassol em movimento
Girando lento em torno da Terra
Girando lento em torno do astro-rei
Penetrando lento no lado escuro da Lua
Que também se revela pródigo em crateras
Ides ou vindes? Se vierdes, o que trazeis?
E se eu for às montanhas colher pequenas flores
Delicadas prímulas altaneiras, acaso iríeis comigo?
Até o ninho misterioso do último condor-dos-andes
Na mais alta penedia que se debruça sobre o mundo?
De qualquer forma alerto:
A fama de carregar bagagens
Devo reconhecer, era verdadeira
Hoje, porém, nada mais levo comigo
Prossigo e não tenho parado para descansar
Porque a trilha forma um longo túnel de luz
Só paramos em determinados pontos
Para entoar cânticos meditativos
E comer bananas suculentas
Eis uma boa notícia, sempre alentadora:
Existe um tempo em que tudo fica tão difícil
Que numa piscadela de olhos tudo fica tão fácil
Porque passa a ser uma questão de sobrevivência
E rapidamente percebemos que o nosso caminho
Corresponde ao círculo de nossas existências
E de tudo o que existiu, existe e existirá
Quem não percebe desatina, ou pior, é desprezado
Será vitimado pela dor aguda que se torna crônica
Pelo sofrimento permanente que enlouquece
Pela falta de ar que asfixia lentamente
Pela ideia nebulosa que embrutece
143
Crítica à Morte
Dosimetria da Dor
Desiludido com as tuas promessas
Despojado de forma e oco por dentro
Destinado ao mais cruento sofrimento
Destituído de qualquer forma de amor
Desviscerado diante de todas as crianças
Decaída estrondosa sobre os joelhos nus
Desprovido de qualquer meio de proteção
Decaída do reconhecimento em praça pública
Depois de tantos e tantos discursos inflamados
Muito decepcionado com o desfile em carro aberto
Procuro o experto que determine com absoluto rigor
Os parâmetros para se chegar à justa dosimetria da dor
Derrocada do posto de herói sob olhares severos
De quem foi carregado nos braços sobre as nuvens
Derrocada dos Exércitos do Senhor no campo de batalha
Diante das ameaçadoras hordas de guerreiros ensandecidos
Membros decepados espalhados por todos os lados
Cabeças decapitadas espetadas em varas na estrada
Mundo caótico anterior ao primeiro dia da Criação
Mundo adverso absorto em profunda desarmonia
Mundo cachorro do mato fedorento e esfomeado
Mundo cão no dizer do poeta da noite de ácidos
E ele tem razão: encontramos a dor ou o vazio
A dor física continuada perturba o pensamento
A dor da imaterialidade da vida além do corpo
Faz envelhecer o nosso espírito tão precioso
Quando o vigilante afrouxa a sua guarda
Somos abduzidos pela baixa madrugada
Que nos desafia com mistérios e perigos
144
Voos além das rotas conhecidas e seguras
Vertigens nas alturas dos montes artificiais
Vidas descomprimidas no aconchego do lar
Vértebras amassadas pelo peso atmosférico
Verdades distantes do alcance dos homens
Vozes que reverberam nos nossos ouvidos
Versos que se aproximam da mera filosofia
Versos que não rimam assim tão facilmente
Versos vomitados na brancura destas folhas
Vertendo palavras equívocas e dissimuladas
Mas suficientemente umedecidas, molhadas
Vítimas passivas de um princípio de incêndio
Debelado pelo diligente Corpo de Bombeiros
Palavras apetitosas ruminadas pelo boi primitivo
Palavras destinadas aos nossos acústicos ouvidos
Estampidos sonoros deflagrados a esmo no entorno
Em busca dos corações mais fragilizados e carentes
Em busca das mentes mais susceptíveis e abertas
Em busca da feliz eternidade para todos nós
A ampulheta me castiga diuturnamente
A ampulheta castiga a todos neste mundo
As lágrimas escorrem pelas laterais do rosto
Misturadas ao suor de assustadiços viventes
Viram verticais corredeiras que vão ligeiras
Encharcar as entrâncias adiposas do pescoço
Chegando a molhar a gola das minhas vestes
São lágrimas amargas bastante sentidas
São lágrimas tristes derramadas com razão
Lágrimas nascidas da saudade do que passou
Nascidas da lembrança do que não voltará jamais
Vertidas sem constrangimento diante da multidão
145
Na verdade, são as últimas lágrimas choradas
Sob a égide da anacrônica e bisonha mortalidade
Que escorrem por sulcos definitivos cavados na pele
Encharcando nosso peito explodindo de sentimentos
Se me derem um espaço infinito para levar a vida
Não aceito menos tempo que a eternidade para morrer
Se me derem células, tecidos e órgãos para sobreviver
Não aceito menos que o corpo para levar a vida eterna
As lágrimas que nos carreguem para os céus nas alturas
Espírito libertado e mente segura para entrar no paraíso
Dosimetria da pena imposta ao infrator
Conheço apenas as camadas da atmosfera
Conheço o vácuo interplanetário e interestelar
Conheço até a poeira cósmica que nos envolve
Mas desconheço por inteiro o sétimo céu
Desconheço o caminho que leva ao paraíso
Posso dar testemunho da Terra e do inferno
E fantasiar sobre as Walkirias e sobre Walhala
Vivo na superfície degradada do terceiro planeta
Navego por águas poluídas e respiro fumaça tóxica
Eu adentro e saio das regiões infernais do mundo
Eu conheço o mais profundo de todos os lamentos
Eu enfrentei o pântano repleto de cobras venenosas
E acabei morrendo vítima de uma picada de mosquito.
Para meu eterno descanso fui enterrado morto
E assim prossigo deitado para sempre no concreto
Eu particularmente não sofro, não sinto nenhuma dor
Apenas as lágrimas saudosas que lavam a minha lápide
Causam certa aflição, porque já não posso fazer mais nada
Pelos que sentidos se ajoelham e choram de saudades de mim
146
É verdade que tudo o que era
Fica diferente do que era antes
Perdem-se as cores do arco-íris
Porque já não se formam no céu
Secam-se as gotículas de orvalho
Porque já não coexistem nuvens
Geometria da Vida
Perde-se o calor das mãos e o brilho do olhar
Perde-se a voz que embalou muitos sonhos
Mas o amor sobrevive ao tempo da morte
O amor transcende os limites desta vida
Será mesmo verdade essa bonita crença?
Será um delírio dos poetas românticos?
Eu não sou um poeta romântico
Não vos iludam essas quimeras!
A chuva nem sempre irriga o solo seco
Muitas vezes escoa pelos verdes vales
Pelas perigosas encostas escarpadas
Pelos declives que levam a grotas
Onde residem seres misteriosos
Seres capazes de nos ludibriar
Seres ferozes que nos devoram sem defesa
Outros seres peçonhentos que nos assaltam
Provocando uma febre insidiosa e galopante
Dor profunda na gangrena que desfaz a carne
A dor é uma constante em nossas vidas
O sofrimento é a nossa malfadada rotina
A esperança é a primeira que nasce viva
Por isso dizem que é a última que morre
147
A esperança é a primeira luz que reverbera
Como uma chama que tremula no espaço
Quando tudo está realmente perdido
Por isso é considerada uma âncora
E assim tem o homem sobrevivido
Aos assaltos dos predadores
E emboscadas do inimigo
No coração das matas fechadas e chuvosas
Nos vales até a foz dos rios volumosos
Nas aleias de acácias e cinamomos
Impregnadas de energia
Tem o homem vivido
Sob o sino da sorte
Catapultas acionadas
Muralhas em ruínas
Tem o homem vivido
Sob a sombra da morte
Como um forte
Que desmorona
Progressivamente
Tem o homem morrido
Sob os lençóis da cama
Como um rebento desgarrado
Prestes a ser pego pela suçuarana
Tem o homem fugido do próprio drama
Cabeças enterradas até o pescoço
Cabeças que se escondem na terra
Espetáculo de cabeças guilhotinadas
Cabeças vazias sem nenhum conteúdo
148
Cabeças condenadas a raios e trovões
Saraivadas de balas de borracha
Disparadas contra a multidão
Um ferido, dois, três, muitos
Aparece o primeiro morto!
E os estampidos, os gritos e gemidos, as explosões
Provocam o voo descontrolado dos quero-queros
Diretamente para dentro das turbinas do avião
Voo de alto risco em céus repletos de abutres
Nos jardins da nossa casa vivem jacus e aracuãs
Vivem sabiás-laranjeira, saíras-de-sete-cores
E as saracuras do brejo correm ligeiras
No subsolo vivem lagartos que só saem no calor do verão
Vivem poderosas ratazanas mais rápidas que um olhar
São manifestações da sabedoria do Grande Geômetra
No nosso quintal vive escondida a perigosa jararacuçú
E não raras vezes encontramos a armadeira sob a cama
Nossos jardins de Mata Atlântica são bem frequentados
São também assolados por ciclones tropicais violentos
Jardins paradisíacos do inspirado José de Alencar
Onde perambulava a Virgem dos Lábios de Mel
Índia da tribo dos tabajaras e filha de Araquém
E onde agora voam iluminados pirilampos
Onde cantam as cigarras apaixonadas
Pelo frenesi do próprio canto
Expulso da noite pela baixa madrugada
Penetrei num alvorecer sem fim
Excelsa flama emanada do sol
Que a tudo energiza!
149
Resignado sob o peso da mortalidade
Absorvo cada dia como um privilégio
O coração continua batendo solitário
O coração oscila entre os mundos
O coração continua o mesmo
O coração não pode parar
Como é bonito e longo o caminho
Andarilhos percorrem quilômetros
O trem passa, passam velhas carroças
E os carroções carregados também passam
Passam carregados de ilusões e esperanças
Levam muitos meninos e meninas inocentes
Apostando a própria vida num novo recomeço
Bólidos planejados flutuam sobre a estrada
Aviões a jato riscam o quadro azul do céu
Longas diagonais de fumaça nos levam
Além do que a visão pode alcançar
Mas a loucura não passa!
O descompasso se mantém
O espaço é relativo e o tempo
É uma corda bamba que nos enlaça
Firme pelo pescoço até o rompimento
Neste alucinado psicodrama existencial
Sou contra o fundamento excludente
Sou resistente e persisto no encalço
Dos fascistas disfarçados de gente
Sigo o rumo da erva daninha
À direita e à esquerda
150
Combatendo o joio pelo bem do trigo
Persigo a fera que se esconde fora de mim
Numa luta sem fim porque não teve começo
Foi herdada de tempos para sempre perdidos
E as misteriosas cavernas não estão muito longe!
Esqueletos dos nossos antepassados pré-históricos
São encontrados por todos os lados do continente
Nossos antigos avós, os primeiros e derradeiros
Ecos na Imensidão
Roda-gigante em constante movimento
Gira girando lentamente, determinada
Esmagando as sementes sob o peso
De um milhão de toneladas
Nas frias areias do tempo
O que entra em mim
– Turbilhão que a vida impõe
Determina o que sai de mim
– Correnteza de paradoxos
Sou as pegadas que deixo no meu caminho
Pegadas que não deveriam ser esquecidas
Que se perdem na quantidade de passos
Na cegueira da rotina sempre nervosa
Na rapidez como as pessoas passam
Na efemeridade de nossas vidas
E em todo este duro sofrimento
As nuvens multiformes e misteriosas
Espelham o âmago do meu intelecto
O amálgama dos meus pensamentos
A eternidade de minha consciência
151
E sigo noite adentro à tua procura
No entanto persigo um vulto
Que se movimenta ligeiro
Que não olha para mim
Que se parece comigo
Na verdade, sou eu!
As hordas de vândalos avançam desordeiras
A resistência não consegue deter o inimigo
O fosso dos crocodilos é ultrapassado
As sólidas muralhas são derrubadas
As torres mais altas são invadidas
E as virgens indefesas raptadas
Sem chance de resistência
São levadas para sempre
As riquezas mais concretas viram água
E escorrem por entre os dedos das mãos
Escorrem em direção ao ralo e desaparecem
A força dos músculos arrefece
O rigor dos movimentos se esvai
A lua perde para sempre o plenilúnio
E entra assustada em permanente eclipse
Provocando muitas interrogações e dores
A terra murcha simplesmente
Mas não na energia fundamental
As árvores são dizimadas até o fim
As águas sobem invadindo o continente
E nas areias remanescentes choramos arrependidos
Ajoelhados diante de cadáveres em estado de putrefação
Podridão inominada dos últimos corpos estirados no chão
Nós homenzinhos ficamos à mercê da vontade caprichosa
São corpos de profanos inocentes espalhados pelas ruas
Não tendo tido qualquer forma de batismo na iniciação
No momento derradeiro não tiveram o devido enterro
Ficaram ali inertes, exalando odores nauseabundos
152
Com as vísceras abertas para alegria dos vermes
Com os olhos saltados fora das órbitas oculares
Todos com a mesma expressão de profundo sofrimento
Todos estigmatizados com a triste cicatriz do desespero
Todos seviciados, torturados pela crueldade desumana
Roda gigante silenciosa
Roda para sempre roda
Roda gigante em movimento
Sobre a linha do espaço-tempo
Sobre as nossas cabeças pensantes
Roda gigante em movimento
Sob as estrelas da abóbada celeste
Coroada pelos astros mais brilhantes
Roda gigante em movimento
Esmagadora no declive acentuado
Implacável com os próprios rebentos
Roda gigante parada no topo da colina
Enquanto os homens miram no horizonte
Enquanto os homens dormem em suas redes
Enquanto as vozes são silenciadas pelo vento
Enquanto os comensais esquecidos da realidade
Alienados inocentes, filhos da geração do celular
Ocupam os quatro cantos da mesa com o olhar fixo
Na tela colorida de teus computadores multiuso sem fio
Roda gigante que nos esmaga!
Roda pesada que gira sobre nós
Que nos fulmina o pensamento
Que esmaga nosso mísero corpo
Não nos dando nenhuma chance
Roda gigante que gira desgovernada
Que nos esmaga em nossa insignificância
Que nos reduz a nada em nossa fragilidade
Que nos revela a verdade sem condescendência
153
MORTALIDADE
Desperdício matemático
De uma equação perdida
Todos nós como perdedores
A humanidade adoecida
O macaco está a um passo
De perceber que o infinito
É capaz de acolher a eternidade
A um passo, e o evoluído homem
Muitos degraus acima de seus primos
Não se rebela contra este plano limitador
Que nos mata de mil formas e sofrimentos
E que indignados chamamos de mortalidade
Indignemo-nos ainda mais!
Bofetada cruel e permanente
No meu, no teu, no nosso rosto
Natural brutalidade, sem sentido
Busco a fórmula da almejada cura
Busco a figura de cactos retorcidos
Mas até os cactos já terão morrido
Desconheço a verdade e me vejo cercado de mitos
Sou prisioneiro do desejo de viver eternamente
E sigo sem provas que sustentem a esperança
Até onde a minha inteligência alcança
Começo e encerro o rápido processo
Nos estritos limites da biologia
Concepção dos condenados
Gestação de parasitas
Nascimento de feras
Envelhecimento
E morte
154
No mundo da parabiologia
Além das células e dos tecidos
Nenhum oásis jamais foi encontrado
Embora muitas histórias sejam contadas
Gigantescas dunas em todas as direções
E nenhum oásis no Oceano de Areia
Onde as tempestades são abrasivas
Onde os ventos são constantes
E uma longa onda hipnótica
Entra na cabeça dos crentes
Todos nós simples mortais
Observadores estarrecidos
Somos crentes inocentes
E ainda que procuremos
Não encontramos oásis
No deserto escaldante
Que nos aprisiona
Subservientes
No mundo da metabiologia
Encontrei lucubrações humanas
Compostas durante a baixa madrugada
Encontrei elocuções humanas gravadas na pedra
Em sessões de desbaste que se estendiam por todo o dia
Lucubrações de um prisioneiro dedicado à fuga
Um verdadeiro trânsfuga na circunscrição de universos
Elocuções vazias sem nenhum conteúdo e destino certo
Nascidas de corações assustadiços e de sistemas internos
Paulo de Tarso a partir de uma grandiosa visão
Escreveu várias cartas aos seus interlocutores
E saiu pelo mundo para pregar o Evangelho
155
Ao contrário de Judas, não traiu
Ao contrário de Pedro, não negou
Mas abraçou Tomé fraternalmente
Enaltecendo os corações em dúvida
Demonstrando consideração e respeito
Por aqueles que começam a se perguntar
Então tudo não passa de uma experiência biológica?
As diversas teologias são produções da cultura?
Por isso entendimentos tão antagônicos?
A consciência é a claridade do corpo
O clarão é a qualidade da lâmpada
Quando a lâmpada se quebra
O clarão se extingue
Quando o corpo soçobra frágil no tempo
A consciência se extingue lentamente
Apostemos tudo contra a dúvida
Menos a própria dúvida
Que nada responde
Que é consistente
Que é relevante
Única certeza
Os sinais ao longo da vida
São profundamente desanimadores
Profanação permanente do solo sagrado
Um milhão e tanto de doenças diferentes
Um sem número de desastres e calamidades
Crianças inocentes pagando caro o pecado dos pais
E do outro lado nada de concreto, apenas a esperança
Passamos pela calçada concentrados no chão
O olhar atento às irregularidades do caminho
Despreocupados como se fossemos eternos
156
Atroz Meditação
Daquela passagem, naquele instante preciso
Até que as memórias também se esvaneçam
Restará por mais tempo apenas uma imagem
Na memória dos que nos observam de longe
Até que o ciclo da Humanidade se acabe
O Universo está em permanente expansão
O tempo também se expande neste diapasão
Depois do Big Bang vivemos bilhões de anos
Antes da explosão primordial temos a eternidade
Cuja natureza é um atributo exclusivo da divindade
Depois da explosão primordial temos a eternidade
Cujas rédeas encontrar-se-iam nas mãos de Deus?
Depois do colapso cataclísmico temos a expansão
Premidos pela devastadora energia escura
Para que dormir se não é possível sonhar?
A noite revestida de absoluta obscuridade
Vira um refúgio para a mente tão cansada
A vigília caracteriza a madrugada silente
Sem que, no entanto, os olhos se abram
Definitivamente para o vasto Universo
Entrementes, o túnel derradeiro se aproxima
E a travessia terminal se apresenta complexa
Neste emaranhado de incertezas que somos
Uma coisa é certa: o conhecimento é eterno
Útil numa eventual cadeia de reencarnações
Atroz meditação
Não, não e não!
Não aceito!
Rejeito!
157
Não aceito passivamente a mortalidade
Rejeito aos gritos à condição de finitude
A susceptibilidade desta mente em expansão
A fragilidade deste corpo aquoso e vulnerável
Prestes a abrir-se e revelar a verdadeira face da vida
Talvez sejamos um casulo destinado ao rompimento
Um ser todo luminoso conectado com a imortalidade
Uma manifestação autoconsciente de energia quântica
Eu, uma força que também te leva para viver no infinito
A consciência será transportada para além da Terra
Os sentimentos excederão todos os limites do coração
Os pensamentos serão como frutos maduros na colheita
E nossos antigos amores ressurgirão em toda a plenitude
Atroz meditação
Sim, sim e sim!
Quero acreditar
Quero eternizar
Os sentimentos
Sim! Quero ser
Feixe luminoso
Um foco de luz
Atroz meditação
Que irrompe a noite
Tudo é apenas um sonho?
Às vezes um terrível pesadelo?
Que sensação horrível a de que a vida
Não passa de uma piscadela de olhos!
Agarramo-nos a salva-vidas inexistentes
Construímos castelos de areia inconsistentes
Viajamos por oceanos limitados em todos os lados
E quando olhamos para o horizonte multicolorido
Parece que algo importante continua faltando
Um elo libertador de tal forma subentendido
Que permanece oculto e misterioso
158
O que é se transforma e se perde inexoravelmente
A velocidade com que nos precipitamos à morte
Não permite que os nossos planos sejam perenes
Somos sim um sopro misterioso, talvez divino
Somos seguramente um fenômeno biológico
Somos reles reféns do imponderável destino
Prisioneiros do princípio da impermanência
Não temos ciência dos limites do Universo
Não temos ciência dos limites da vida
Não temos ciência
Tateamos no escuro
Professamos o otimismo
Buscamos uma atitude proativa
Mas estamos isolados pelo silêncio
Estamos aprisionados numa cadeia cósmica
Aguardando o dia da consecução da sentença
Desconfiados do que nos reserva o desconhecido
Construindo templos há milênios para viver na dúvida
Num mundo diminuto e esquecido na periferia da galáxia
Entrementes . . .
Uma coisa é certa: estamos morrendo
Na verdade, já nascemos morrendo
Flor que murcha sobre o mármore
Do frio altar da efêmera existência
A alternativa que não oferece risco é viver intensamente
O exíguo tempo em que permanecemos vivos na Terra
Mas como viver intensamente?
Os medos limitam o raciocínio
Os medos se fazem presentes
Como viver intensamente?
159
Vendo as horas se perdendo na areia da ampulheta
Sentindo o ácido da ansiedade nas artérias e nas veias
Percorrendo os caminhos que transpassam o coração?
Atroz meditação
Sina que se abate sobre o homem
Refém de seu próprio pensamento
E se vemos tão longe
Ao mesmo tempo tão perto
O que virá depois do Universo?
A mansão celestial do Criador?
A morte faz a ronda há muitos anos
E agora se coloca muito mais perto
Percorre longos e frios corredores
Sobe e desce várias escadas
Colecionando degraus
Nas panturrilhas
Nas pulsações
Do coração
Com o corpo pesado vagueio no deserto
Com os membros arrastando no chão
Com os olhos vidrados no horizonte
Sou a forma derradeira que se deteriora!
Serei a ponte que transforma o homem?
Uma coisa é certa: descendo do macaco
E sou o soberano de todas as florestas
Reles mortal que se dá o direito à arrogância
Que peca pelo excesso de individualidade
Que transita pelas ruas do mundo
Como se fosse o dono . . .
. . . e depois morre num segundo!
160
Feliz daquele que morre abruptamente
Vitimado pelo choque do infarto devastador
Ou pelo aneurisma que explode como a bomba
Não adianta lastimar o leite derramado
A mesma razão que faz do espaço infinito
Faz do tempo uma passagem irrecuperável
O passado é apenas um peso na memória
O presente é sempre uma queda impressionante
Nas vertentes do abismo insaciável dos segundos
E o futuro um filme que ainda sequer foi escrito
E o futuro um filme que ainda não foi rodado
E o futuro um inaudito caminho no escuro
Onde a desarmonia se instala sozinha
E a harmonia requer muito trabalho
Deus criou o mundo
Deus criou os elementos
Deus criou o barro e o ouro
E escolheu o barro para criar o homem
E escolheu a costela para criar a mulher
Criando-nos frágeis pacientes da desgraça
Decorrerá daí esta contundente mortalidade?
Quais os desígnios do Criador e Senhor dos Mundos?
Atroz constatação sobre o desconhecimento profundo
Ignoro, logo me angustio
Ignoro, quanto mais perto
Da vida mais me distancio
Minha cadeia não tem barras de ferro
Não tem cadeados, nem portas pesadas
É feita de células, tecidos e órgãos limitados
O açoite que castiga as minhas pobres costas
Tem pontas de ferro que rasgam a carne
Tem o peso inflexível do tempo
161
Morte
Preliminarmente
Com os pés sobre o solo gelado
Antes do mérito e inexoravelmente
Sem instância superior para recorrer
Sofro até o dilaceramento dos tecidos
Até que o corpo pague um caro preço
Até que os cabelos se tornem grisalhos
A frustração desta desconfortável ciência
O sofrimento desta excruciante constatação
De não ter sido recepcionado pela infinitude
De ter sido relegado a um recanto da galáxia
De conviver numa época bastante conturbada
Como consequência da explosão demográfica
Como corolário de uma humanidade sem rumo
Que perdeu totalmente o caminho da felicidade
No Mérito
Estamos muito abaixo de todas as expectativas
Estamos andando a esmo pela estrada do destino
Estamos flertando com a vida sem uma definição
E todos os cruzamentos são inéditos e misteriosos
E todos os santos foram depostos em nome de Deus
Profundo corte nas veias abertas do meu antebraço
Estopim aceso desde o nascimento dos mortais
Célere voo, rápido clarão, atroz meditação!
Malfadada sorte a sina da mortalidade
Num universo infinito em números
No conjunto de circunscrições
Das dimensões universais
Caberíamos eternamente
162
Paradoxo para a nossa sensibilidade
Insanidade mental dos que ousam pensar
Sinuca existencial sem defesa e sem ataque
Experiência negativa que nos impede de dormir
Desligados do pesado fardo que devemos carregar
Sorrisos se apagam pelo escabroso caminho
Vozes se calam para sempre sob o silêncio
Corações choram sozinhos e desolados
Lágrimas secam nas bordas do rosto
Joelhos se dobram esperançosos
Diante dos altares perfumados
Diante da verdade inexorável
Que os olhos não veem
Somos mais que pó
Somos grãos de areia
Soltos e desamparados
Diante das ondas do mar
Somos grãos de areia perdidos
Nas dunas do infinito deserto
Somos absolutamente nada!
Somos a sede em pessoa que jamais será saciada
Somos o início, o meio, e o fim da jornada
Somos, repetindo, grãos de areia perdidos
Na vastidão da vida, esperando a morte
Na escuridão do mundo
Nos subterrâneos e nas alturas
Todos são mortalmente atingidos
E caem moribundos um após outro
163
Um esqueleto se mexe no armário
Uma múmia acorda no sarcófago
Uma assombração passa rápido
Mas é flagrada pela câmera
Um morcego se transforma
E ataca o teu pescoço
Sugando teu sangue
Tua alma e força
Uma senhora maldita vestida de preto
Uma cor escura diferente do negro
Sem a beleza do negro, sem a vida
Uma senhora funesta à espreita
Para te apanhar desprevenido
E esmagar teus neurônios
Arrebentar teu coração
Entupir tuas artérias
Matar-te de fome
Inexorável destino dos mortais
Encontro com o buraco negro
Que suga toda energia
Um negro sem a beleza da negritude humana
Um negro desumano, sem vida, sem brilho
Um negro que emana da boca maldita
Vaporoso como a praga de Moisés
Nem os gigantes pálidos do setentrião
Nem os israelitas das águas do Jordão
Nem os africanos ao sul das cataratas
Nem os faquires purificados pela dor
Ninguém, seja quem for, sobrevive
Ao golpe certeiro da última dama
Paga, não bufa, não reclama
Apenas chama pela Santa
164
É uma cigana que decepa tua mão
É uma derrama que explode teu coração
É um aneurisma que se rompe traiçoeiro
É, na verdade, um gigantesco e oco bueiro
Que te suga com a força do império da lei
E te atira na fogueira onde morreu DeMoley
Disse o poeta: morte! Grande sorte quando o voo
Acontece sobre as portas abertas da esperança
Quem não segue este caminho o fogo alcança
Morte: profundo corte nos pulsos abertos
Na carne impermanente da existência
Quem não persegue este caminho o fogo alcança
E consome cada célula do tecido paulatinamente
E consome cada partícula de pó freneticamente
E prende os muito loucos, sem discernimento
No mais amplo círculo vicioso entrementes
Sinto no rosto o último vento
Como um inclemente açoite
Que esbofeteia o inocente
Que castiga sem piedade
Ímpio verdugo executor
Sinto o amargor da decepção entre os lábios
Sinto o coração sofrendo sem alento
Sinto a energia vital escorrendo
Sinto a aproximação do paraíso
Transcender é preciso
Espanar o pó das roupas
Levitar sobre o Universo
Pairar sobre a madrugada
165
É preciso extrair a pedra do interior da montanha
Pedra embrutecida pelas rugas há muito tempo
Formadas pelas linhas vitoriosas do teu rosto
Paulatinamente forjadas sob os raios do sol
Oscilo como o líquido que procura o nível
Transpiro um suor vindo das glândulas misteriosas
Choro lágrimas amargas que se misturam com a saliva
E nos dois extremos da boca tenho presas pontiagudas
Que inoculam veneno letal nos meandros do teu corpo
Sigo assustadiço com tamanha impermanência
Sigo assombrado com tamanha efemeridade
Do que tem consciência do permanente
Do que devia ser e estar para sempre
E que não passa de um segundo
Um suspiro que surge e desaparece
Um piscar de olhos que se perde
Um sorriso que se transforma
Em eternas linhas pétreas
Fim dos trilhos de todas as linhas
Fim das trilhas das últimas selvas
Fim dos tempos de todas as idades
Fim das palavras de todas as frases
Fim dos sonhos de todos os embalos
Fim dos pesadelos de todas as noites
Fim das noites e da sucessão dos dias
Derradeiro momento onde tudo acaba
Onde a ânsia de vômito passa para sempre
Onde as infecções bacterianas e as retrovirais
Disputam a primazia pela ocorrência da morte
166
Célere flâmula excelsa que tremula nas alturas
Chama fugaz, foco de imenso prazer e alegria
Bandeira esvoaçante que projeta sua sombra
E é arriada perecendo no esquecimento
Fim das gargalhadas que ecoavam no desfiladeiro
Os deuses já não ouvem mais o clamor dos crentes
Fim das reflexões desenvolvidas no interior do Templo
Planetas rolaram como as cabeças das estátuas soviéticas
E o próprio Sol magnífico se apagou para a noite eterna
Na incontável sucessão das estações as colunas ruíram
A abóbada celeste cedeu e as estrelas caíram por terra
Imagine então o poeta passarinho passando pela vida!
Simplesmente passou deixando um rastro de versos
Literalmente pisando em palavras cruzou a ponte
Apoiando-se com fé em rimas subentendidas
Fim
Da reta
Da festa
Da poesia
Da jornada
Da linha da Vida
Dos tratamentos
A noite se aquieta
O espírito descansa
A garganta também descansa
O coração infartado para de bater
As mãos calejadas param de tremer
E os neurônios sufocam sem oxigênio
167
Valhala
Reinício
Mulheres
Valquírias
Fora de série
Loucas guerreiras
Ágapes permanentes
Banhos de mar para sempre
Amores entrelaçados sob a lua
Olhares hipnotizados no reflexo da lua
Nas águas levemente onduladas da lagoa
No caminho prateado que penetra no oceano
Nas noites enfeitiçadas dominadas pelo plenilúnio
Na relva molhada sob as estrelas do firmamento
Na rede que nos embala por um momento
No trovão que quebra o silêncio da noite
No relâmpago que ilumina a escuridão
Nas janelas abertas para o infinito
Nos portais a serem vencidos
Pelo homem destemido
Pelo aventureiro
Pelo solitário
Que vagueia
Pela Terra
Absorto
No fim
Da Guerra
Dos conflitos
Dos mísseis inteligentes
Do sofrimento das pessoas
Dos dias e das noites e do tempo
Das colinas ocupadas para sempre
Das pedradas atiradas nos inocentes
Vítimas da guerra desumana entre irmãos
168
Fim do firmamento noturno
Fim da falsa rosa mística
De todas as lamentações
De todos os perfumes
De todos os odores
De todos os medos
Derrubada de todos os muros
Derrubada das estátuas de Lenin
Abandono das bandeiras vermelhas
Condenadas ao perpétuo esquecimento
Queimadas em plena praça com indignação
Permanece inabalável, porém, o Muro das Lamentações
Onde lamento a vulnerável condição da humanidade
Onde lamento a escassez de homens de verdade
Onde lamento a miserável condição humana
Encerramento definitivo
Da atividade social
Do bem e do mal
De todos os artifícios
Das crianças brincando
Do monopólio das funerárias
Dos sindicatos de aproveitadores
De todas as nossas verdadeiras dores
Agora a casa se deteriora vazia
Os quartos e salas estão vazios
Os jardins se estragam esquecidos
Coração perdido no pântano lúgubre
Desenterrado da cova na curva do rio
Retorna para nós numa macabra redoma
Silenciado para sempre para nunca mais bater
E em assim sendo para nunca mais se atendido
Porque as portas estarão eternamente fechadas
169
A Vida e a Morte
No começo da vida era a morte
Todos os dias o homem morria
Parecia que a vida era um erro
Um grande equívoco universal
No começo do dia era certeza da noite
Com o declínio aparente do Sol
Com a escalada das horas
Até o crepúsculo
O sofrimento era uma constante
A infância uma lembrança distante
E ao mesmo tempo um paradigma
Capaz de aumentar o nosso amargor
A literatura era fúnebre e sinistra
A prosa e a poesia estavam mortas
Nos condenado presos a uma cadeia
De letras e palavras antiprosapoéticas
A matemática para nada servia
Senão para acentuar a contradição
Entre a eternidade que nos foi negada
E o infinito espaço que abarca o Universo
Circunscrições de Universos circunscritos
Onde só não cabe a imortalidade do homem
E se em um funesto dia descobríssemos que cabe
Ficaria ainda mais sem sentido a nossa ignorância
E sem motivo o nosso pavor diante da perda da vida
Porque a morte definitivamente não nos causa medo
170
A Espera da Morte
Atado por correntes inquebrantáveis
Num estranho pelourinho diante do mar
Nada mais espero que um mortífero tsunami
Num acesso alteregoístico incorporo Prometeu
Acorrentado nos pináculos rochosos da montanha
Num cruel castigo decretado pelos deuses rigorosos
E nada mais espero do que um rápido golpe do abutre
Açoitado pelo vento inclemente ao longo dos anos
Numa experiência desde sempre desconcertante
Assisto as rugas catapultas de sulcos estriados
Grudarem para sempre no meu rosto
Nada mais espero da nossa crença
Nada mais espero do teu olhar
Nada mais espero da vida
Senão o último suspiro
Nada mais espero
Da morte
Senão que ides
Todos vós meus amigos
Depois das minhas fúnebres bodas
Jantar num restaurante com a família
Como versejou aquele temerário poeta
Que morreu vitimado pelo vírus do sexo
Do vinho sem medidas e de todas as drogas
171
Fim da Filosofia
Encerramento das discussões dialéticas
Fim dos diálogos e das controvérsias
A terra se acumula sobre o caixão
O defunto apodrece lentamente
E o lado burlesco do processo
É que as unhas continuam crescendo
Formando repugnantes estruturas convexas
E nada mais cresce, senão os cabelos da múmia
Toda gordura se transforma em asqueroso chorume
Os sentimentos não resistiram ao esperado naufrágio
Os pensamentos se encerraram num momento preciso
Ficaram as mesas sob a marquise
Ficaram muitas garrafas cheias
Ficaram as calçadas tortuosas
Ficaram os transeuntes
Caminhando atônitos
Totalmente iludidos
Pelas luzes de neon!
Eu me antecipo:
O cérebro apodrecido
E todo o corpo em conjunto . . .
Em breve, sentiremos o cheiro!
Palavras Secas
Últimas palavras!
Todo esforço foi em vão
Soluçou e suspirou em demasia
Resistiu incólume o quanto pôde
Mas a abrasiva água dos oceanos
Solapou rapidamente todas as bases
Provocando a perda fatal de bom sangue
172
Células terroristas sofisticadas
Células carcinomáticas invasivas
Metástases de um delírio metafísico
Como as derradeiras alcateias selvagens
Que nos atacam sub-reptícias em pleno sono
Apesar de tudo, permaneço acordado
Entremeado ao sono e à vigília
Sobrevivente inveterado
Caminhante noturno
Afastado do mundo
Interiorizado
Morando além da estrada
Morando além dos bananais
Além do rio que limita a mata
Morando no coração da selva
Floresta profunda e densa
Como um ventre fecundo
Repleto de espinhos
Acúleos que matam
Morando longe
Onde não ouvimos
Onde impera o silêncio
Onde não somos ouvidos
As bocas estão costuradas
As línguas estão paralisadas
Os olhos estão sempre abertos
Olhando, observando, esperando
Perscrutando entranhas reservadas

 

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