Missa negra

Amigo e leitor destas linhas indicou livro raro, com o título acima. Não se trata de texto sobre a profecia dos cristãos ou a escatologia da igreja católica, mas de lúcida e soberba interpretação dos tempos modernos. Um livro inteligente de John Gray – de Cachorros de Palha – como só ele saberia escrever. Trata-se de um dos filósofos mais importantes, articulista do ‘The Guardian’, e professor em Londres.

O livro mostra como a tese do Apocalipse e a perversão da igreja pela política comanda a história de todos os tempos, inclusive e principalmente dos atuais, de ‘guerra contra satã’ deflagrada pelos americanos. Ocupamo-nos quase sempre dos fundamentalistas islâmicos, esquecendo os puritanos dos Estados Unidos e a crença de que nasceram para ‘libertar’ a humanidade. E assim respondem aos atentados de 11 de setembro com mais guerras e intervenções, dando combustível ao terrorismo.

Há sempre uma utopia a comandar os homens, escreve Gray com sensibilidade. Tem sido assim. Na antiguidade clássica, com o advento do cristianismo, no avanço dos bárbaros, no século quinto, nas Cruzadas, em 1.100, na Renascença, no Iluminismo, na Revolução francesa de 1789, na bolchevique de 1917 e, agora, na ‘americanização do Apocalipse’. Utopia é o lugar-nenhum do paraíso perdido, desde o Éden, da Bíblia, ao mundo sem classes de Karl Marx.

A perversão das religiões pela política promete o paraíso do ‘fim da história’, como o americano Francis Fukuyama se apressou em escrever após a queda do comunismo, em 1989. Estamos substituindo mitos religiosos por novos projetos utópicos, como a sociedade da produção e do consumo, do bem-estar e da previdência. Elas são inalcançáveis, apesar de mobilizar milhares de acadêmicos e políticos mundo afora. Trata-se de ilusão, pois, diz John Gray, estamos revivendo novos ciclos de barbarismo, em níveis de violência idênticos aos da primeira guerra mundial, em 1914. Exatos cem anos depois, e esquecidos por todos.

Não há dúvida, os nossos são tempos de Cruzadas, o cerco a Jerusalém, o Milenarismo de sempre. A religião continua no centro de tudo. O Apocalipse permanece como irresistível impulso do homem. A cultura é feita de destroços e o homem o sofrido personagem de milênios. Não há progresso, apesar de dois novos papas santos, e dois papas em Roma.

A missa negra continua. Um belo e triste livro.

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