Nascimento de garranchos e rabiscos

… Num dia qualquer no início de 1968…

– Cadê o resto da história? Voltando pela quase deserta estrada nova, hoje chamada Helmuth Fallgather, ali no Boa Vista, matutava a história lida em sala, no terceiro ano da Escola Primária Tupy. A professora trazia livros e líamos excertos. Dona Maria das Graças ficava impressionada com minha curiosidade. Na “sabedoria” dos meus quase 9 anos, exigia ler a história completa.

Agora, estava eu ali, deslumbrado com a quantidade de livros dentro daquele ônibus-biblioteca. Dona Maria das Graças parecia deleitar-se com meus olhinhos brilhando. Tirou um lindo livro de capa brilhante e desenhos coloridos e me apresentou:

– Você vai gostar desse.

Comecei então, na companhia de Monteiro Lobato e seu sítio maravilhoso, minha grande aventura pelo mundo dos livros.

 

… Num dia qualquer em meados de 1970…

O Brasil ganhara a copa do México. As ruas estavam enfeitadas de bandeirinhas verdes e amarelas. Ia, com minha mãe, em passos rápidos. Ela, zeladora do banco Bameridus, precisava deixar o serviço pronto até às dez, quando eles começavam a atender o público.

Hoje era um dia especial para mim. Recomendado pela professora, após sair do banco, minha mãe iria comigo à Biblioteca Pública, fazer minha carteirinha. Os ponteiros do grande relógio do banco se moviam lentos, muito diferentes do acelerado de meu coração.

Quando, enfim, entrei na biblioteca e deparei-me, espantado, com as enormes estantes repletas de livros, sequer percebi o quanto havia de mundo a ser descortinado. Nesse dia tirei meu passaporte para as maiores aventuras de minha vida.

 

… Num dia qualquer em meados de 1971…

Estava quente naquela tarde pegajosa do terceiro ano ginasial. Estudávamos no prédio das Irmãs Canossianas, ao lado da Igreja Imaculada Conceição, no Boa Vista. Era o embrião do atual Colégio Presidente Médici.

A professora, baixinha de fala mansa, quase não conseguia dominar a sala. Aquelas cabeças adolescentes não se interessavam pela complicada matemática, com sua teoria dos conjuntos, relação de contidos e não contidos, e outras dificuldades mais.

Alheio a toda balbúrdia, e também à matemática, eu lia escondido. Mantinha o livro embaixo da carteira, com a cabeça abaixada, esquadrinhando a Ilha do Tesouro, de Robert L. Stevenson. Personificava-me no herói, perdido na ilha, com piratas no encalço, tudo parecendo perdido. De repente, um pirata vinha na minha direção, com seu olho de vidro e sabre apontado. Senti algo gelado na minha testa. Gritei.

– Que tens menino? Estás ardendo de febre!

A professora, preocupada, mandou-me para casa. Longe da bagunça, sentei-me nas escadarias do colégio e, junto com Jim, o herói, consegui fazer o bem vencer o mal.

 

… Num dia qualquer em meados de 1972…

O livro era empolgante: As Mil e Umas Noites. O Rei Shariar era terrível em sua vingança, mas a doce Sherazade o enfeitiçou com sua história sem fim. Aliás, enfeitiçou-me também, eu não conseguia parar de ler.

Era noite, eu ficava quietinho no beliche de baixo, próximo da luz de querosene, tentando ler o máximo que conseguisse. Meus irmãos pediam para apagar a luz, e eu, contrariado, tinha que obedecer. No escuro, a aventura martelava minha cabeça.

Quando achei que todos dormiam, acendi novamente a luz e fui encontrar-me com os personagens, que tremulavam nas sombras da lamparina. Minha alegria durou pouco, logo meu pai apareceu. Rispidamente me mandou dormir.

Mas como iria dormir se havia mil e uma histórias me esperando?

Após eternos minutos, levantei-me e, pé ante pé, fui para o terreiro. A lua cheia era linda, esparramando sua luz prateada, banindo as sombras para trás da cortina de mata. Sentado num tronco, com o livro aberto, fui convidado pela lua a recepcionar os personagens, que aos poucos foram povoando minha imaginação. O sono demorou a surgir.

 

… Num dia qualquer em meados de 1973…

Dona Bernadete era minha paixão. Acredito que, no fundo, ela também era apaixonada por mim. Eu tinha então 13 anos e cursava o terceiro ano do ginásio, no colégio das madres. Ela adorava minhas redações. Eu escrevia sobre amores impossíveis e revelações da alma, de beijos calorosos sob a luz do luar e andar de mãos dadas na beira da praia. Ela fazia questão de ler alto para todos na sala. Eu, apesar de orgulhoso, ficava corado.

Um dia, numa dessas rixas de saída da escola, o Júlio, brigão como sempre, me enfrentou. O primeiro argumento que usou calou fundo:

– Sua bichinha!

Abri os olhos. Deixei de fazer redação para a professora e comecei a escrever para as meninas da minha idade. Aprendi que, para não ser confundido, é preciso se reinventar.

 

… Num dia qualquer no início de 1978…

O dia foi duro. Vida de quartel: Acordar às seis, asseio pessoal, beliche impecável, exercícios físicos, treinar ordem unida, cuidar do uniforme da guarda presidencial, enfim, o dia tinha sido realmente duro.

Tinha ainda que passar o uniforme e já era nove da noite. Às dez as luzes se apagavam. Abri um dos livros que mantinha em meu reduzido armário, eram meus tesouros. Encontrei a esquecida e pequena cartinha, num minúsculo envelope:

– Se quiser conversar com uma amiga…

Rememorei as festinhas na igreja do Boa Vista, os encontros “casuais”, a troca de olhares, as promessas de “sermos amigos”. Nasceu ali um poema.

Descobri que havia química na fusão da poesia com o amor. Descobri-me escritor.

E, para ter a inspiração por perto, casei-me com minha musa.

Outubro/2017

 

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