O almoço processual

Na cidade interiorana catarinense, com ares de metrópole e mentalidade de colônia, a audiência foi agendada para as 13:30 horas, logo após o almoço.

O caso, uma execução de nota promissória, dava ares de insolvência desde que o cliente aportou com o mandado de citação e penhora no escritório do advogado.

No saguão onde as partes aguardam o ato processual, olhares raivosos do credor ao devedor denunciam que o clima seria quente, já que aquele não entendia como existiria “audiência de conciliação” numa execução, ainda que o feito tramitasse pelo rito sumaríssimo.

– Coisas da Lei dos Juizados Especiais – resumidamente dissera seu advogado.

Chegada a hora, o calor de verão abafado já explodindo pelos poros dos presentes, ingressam todos na sala de audiências do Juizado Especial Cível da comarca, à época o único existente.

Um conciliador – obviamente que não o juiz de direito – aguardava-os e, após os trâmites normais, seguiu-se a já conhecida explanação acerca dos “benefícios da composição”.

– Ora, o caso é simples. O devedor deve. E o credor recebe. Como podemos fazer? Alguma proposta, Doutor? – inicia o advogado do credor.

– Primeiramente, meu cliente tem dúvidas se foi ele quem assinou a nota promissória e gostaria de ver os autos, por favor.

Passado os autos ao advogado e por conseguinte ao devedor, aquele inicia um embate com o outro advogado:

– Doutor, meu cliente gostaria de saber uma forma de parcelar tal débito, pois a origem da dívida será contestada após esta audiência de conciliação. Se for para parcelar, até aceitamos, embora eu tenha minhas dúvidas sobre a nota em questão. Na verdade, seu cliente prestou serviços ao meu cliente e este ficou devendo ao seu. O que importa, ainda assim, é como vamos fazer, pois eu vou requerer que o feito passe ao rito ordinário para fazermos, então, uma perícia grafotécnica, se não for aceito o parcelamento. E o Doutor sabe que isso vai levar anos…

– Mas Doutor, a nota promissória está nos autos e é a mesma assinatura que seu cliente insere em todos os documentos. Não há razão para postergarmos ainda mais o feito. Já basta esta audiência de conciliação…

– Olha, Doutor, eu entendo que haveria cerceamento de defesa se nós não pudermos produzir esta prova, ainda que o rito seja o sumaríssimo. Existem entendimentos que defendem esta tese, ou seja, o réu não pode ser tolhido no seu direito de produzir provas, havendo o feito que tramitar no rito correto, onde possa se defender, conforme preconizado constitucionalmente.

Nesse momento, interrompe a conversa entre os advogados justamente o devedor, encaminhando a palavra ao seu advogado:

– Doutor, que documento é esse que vocês estão falando?

– Ora, da nota promissória que está no processo! – responde rispidamente o advogado.

– Que nota?

Nesse momento, todas as atenções encerram-se na conversa entre os advogados e voltam-se ao devedor e aos autos, que está em suas mãos, aberto em uma página branca, sem qualquer indício de que ali houvera uma nota promissória.

Segue-se um ríspido embate entre advogados, um conciliador desesperado, um juiz chamado às pressas e até mesmo a polícia.

Mas nada que prove que a nota promissória estivera ali. Nem naquele momento nem em momento anterior. Por fim, um inquérito seria aberto, a OAB seria oficiada, etc e etc. Formalidades de praxe.

Já passada a audiência, fora do Fórum e sem entender muita coisa o advogado, o devedor lhe garante:

– Olha, Doutor, nunca vi um negócio desses!

– Pois é, eu também… sumir um documento assim, sem mais nem menos – responde o advogado.

– Não, não, tô falando do papel. Que saborzinho ruim…

A presença da cártula oficial nos autos nunca foi provada. Conclusão do inquérito. O devedor, assim como o documento, nunca mais foi visto. Tinha sabor amargo, como qualquer conduta anti-ética.

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