O bacharel Gentileza

Não era advogado, mas se apresentava como tal. Nunca, contudo, dizia-se advogado, mas a postura, a fidalguia, o linguajar, enfim, todo o conjunto da obra levavam ao interlocutor a crer que tratava-se de um renomado advogado.

E não era para menos. Criado numa família rica, do ramo das revendas automotivas, teve sua base no sul do estado expandida para todas as demais regiões, consubstanciado no aumento patrimonial invejável.

Formado bacharel em Direito a muito custo, posto que a necessidade de outrem em viver da profissão não lhe atingia, as festas memoráveis fizeram-no quase perder anos e matérias no ensino superior, mas que lhe renderam boas histórias. Algumas eternas, como Junior, seu filho, que vivia com a mãe.

Como dito alhures, sua postura era exemplar. Sua gentileza, capaz de conquistar qualquer mulher. Não para menos, sempre estava acompanhado, embora fosse morador solitário de um apartamento na cidade. Não chamava a atenção, mas não passava despercebido aos olhares femininos. E masculinos, pela inveja que causava ao desfilar com carros de marcas alemãs.

A vida de fidalgo, porém, não é tão bela quanto parece. A monotonia toma conta do cotidiano de quem não tem propósitos. E o dinheiro da família, farto e fácil, se tornava um problema quando a cabeça ficava vazia, pois os ensinamentos necessitam de constante repetição e memorização do ser humano.

Várias foram as vezes em que abriu empresas e, por má administração – recorde o leitor da dispensabilidade de responsabilidades de nosso protagonista – foi obrigado a fechar as portas, sempre tendo o saldo negativo se esvaído pela ausência de qualquer numerário ou patrimônio sob sua responsabilidade.

Já conhecido na família por seu comportamento aventureiro nos ramos do negócio, era de longe observado pelos administradores das empresas da família. Não era aceito e nem seria, pelas razões que já sabemos.

Certa vez, no início dos anos 2000, abriu uma loja de televisões gigantescas, com nome complicado em inglês que nem convém lhes dizer. Algo como um teatro em casa.

Obviamente que esta loja também não deu certo e aí surgiram as dívidas trabalhistas, vindas de dois funcionários que registraram suas ações judiciais. Depois de anos, o veredicto final foi pela procedência de alguns pedidos.  E aí começou a epopeia executória.

De início, a desconsideração da personalidade jurídica foi relativamente fácil, ante a constatação da total ausência de patrimônio da empresa reclamada. Aos sócios, dentre eles o nobre supra citado, havia um outro, que depois ingressou com ação trabalhista também, na condição de sócio formal com papel de funcionário informal.

Anos se passaram atrás de bens do executado, até que uma audiência foi aprazada. Sim, uma audiência em fase de execução. E para a surpresa de todos, lá compareceu o bacharel em Direito executado, com uma educação surpreendente. Cumprimentando a todos, disse que não iria pagar porque não achava justo os reclamantes receberem aquela quantia. Ofereceu em torno de 10% (dez por cento) do que estava sendo executado. A negativa foi constada em ata, o que deixou a juíza que presidia o ato encucada.

Ele não tinha nada. Nada, absolutamente nada. E levava uma vida de rei, com muito dinheiro e discrição. Nada do que usava era dele. Estava sempre com carros diferentes, emprestados, de modo a não configurar sua posse. Era entendido. Era estudado. Gentil, sempre.

Mas ninguém avisou ao rei que ele estava nu. Com exceção, claro, de seu melhor amigo. Rubens era seu nome. E Rubens ficou muito chateado por ter o nosso protagonista passado a perna nele, ao querer utilizar-se de uma lancha, na capital, que entendia lhe pertencer por todos os anos de trabalho.

E o trabalho de Rubens? Era ser laranja de Bacharel Gentileza. E pelo trabalho de quase duas décadas, entendia que a lancha, nova, linda, chamariz de garotas de corpo esbelto nas praias litorâneas, seria seu pagamento pelos anos de fidelidade.

Assim não entendeu o outro, que abertamente na Ação de Reintegração de Posse disse, com todas as letras, que aquela lancha era sua, e não só ela, vários outros bens, já que Rubens “apenas” emprestava seu nome havia mais de vinte anos para que pudesse utilizar contas, nome, CPF, comprovantes de residência, etc, tudo para despistar credores de nosso fidalgo. E como haviam!

Deu certo por um tempo. Por muito tempo. Mas o favor feito deve ser retribuído na mesma proporção, no mínimo. A ingratidão foi tamanha a ponto de Rubens sequer ter contestado, ou seja, o próprio Autor relatou tudo e, pior, juntando documentos, centenas deles, que mudariam o rumo de sua vida.

Descoberta a ação judicial pela advogada dos credores trabalhistas, esta comentou à juíza:

– O peixe morre pela boca…

E deferiu-se, assim, a penhora de todas as contas bancárias, carros, barcos, etc. E pior, não houve sequer limite da penhora, eis que ilimitada, ante a existência de vários credores, inclusive o Fisco.

Faliu. Mas desta vez de verdade, sem dinheiro. E responsável solidariamente, faliu as empresas da família, as duas irmãs, o pai e a mãe. Mas pagou tudo.

Rico, não tinha nada no seu nome. Pobre de espírito, foi internado na ala psiquiátrica de um hospital na capital, onde permanece. Sempre gentil com todos, claro.

26/4/2016

COMPARTILHE: