O doutor engraçadinho

Existia na comarca um advogado todo risonho, até mesmo debochado, daqueles bem sarcásticos mesmo, que tinha por hábito tirar sarro de tudo e de todos.

– Particularmente não gosto dele – falei para alguns presentes.

Mas a reunião prosseguiu assim mesmo. O café quentinho na manhã gélida da cidade industrial revelava-se um alento ao corpo humano, tão maltratado pela alta umidade que pairava sobre aqueles ares.

– Concordo com o Sanches. Talvez fosse o caso de oficiar à OAB local – argumentou outro.

E seguiram-se várias sugestões sobre o que fazer para que o tal advogado parasse com aquela mania que, enfim, estava vez por outra colocando todos em situações constrangedoras. Até mesmo servidores já estavam reclamando disso. Luiz chamou a responsabilidade para si, o que nos surpreendeu:

– Eu vou ter uma audiência com ele esta semana. Caso ele tenha uma atitude assim, um tanto quanto ‘peculiar’, consto em ata e oficio à OAB. Pronto!

Foi uma sugestão.  Mas foi a melhor até ali, já que ninguém queria cair em batalha com a OAB, servidores, outros advogados. Até porque o “Doutor Engraçadinho”, como o apelidamos entre nós, era um ótimo profissional, sempre muito cordial. Solícito e que fazia boas ações do ponto de vista técnico. O único defeito era essa mania de sempre deixar uma frase ‘engraçadinha” no final de suas falas.

Finda a reunião, ficamos ali mais algum tempo, comendo uns docinhos trazidos pelo Rocha. E que docinhos! Minha barriga já estava dando azo a apelidos como “Sanches Pança”, mas eu não resistia àquilo.

A semana passou e chegou a tão esperada audiência. “Doutor Engraçadinho” chegou e logo de cara já fez piada:

– Bom dia, doutor Luiz. Que belo dia, não?

Aqui vale um parêntese: Nosso nobre magistrado chamava-se Luiz Eduardo Bello, de forma que o trocadinho com sobrenome e adjetivo era evidente.

– Não há nada de belo aqui. Isto é uma audiência – disse rispidamente o juiz.

– Ouso discordar, Excelência. Há no mínimo um Bello aqui, que é o senhor.

Baixando a cabeça e contendo-se para não berrar com o advogado, Dr. Luiz reagiu:

– Doutor Pablo – este era o seu nome – se o senhor começar com estas gracinhas vou ter que suspender o ato e oficiar à OAB.

– Imagina, Excelência, minhas desculpas. Apenas quis dar-lhe um ”bom dia” diante deste dia de sol tão bonito, tão belo (esta parte ele disse baixinho), com um friozinho que nos empolga para trabalhar.

E ficou por isso mesmo. Ainda não tinha sido daquela vez que o tinham pegado. Mas ele não pararia com aquela mania. O que fazer, então?

Resolveram oficiar à OAB. Todos eles, inclusive eu, fui a favor. Só um dos nossos pares foi contra, para não haver unanimidade e, assim, não se saber quem votou a favor e quem foi o único contra. Estratégia que era para o bem de todos, para não haver constrangimentos.

Ofício enviado, ofício recebido, representação instaurada. Não era de hoje que o Dr. Sebastiano, presidente da OAB da cidade, recebia reclamações contra o advogado, mas nada formalizado ainda. Agora a situação era diferente, com várias acusações de desrespeito à sobriedade do Poder Judiciário local.

Soube que ele chamou sua diretoria e seu conselho, mas que a decisão já estava tomada. Na instrução do procedimento administrativo foram ouvidas várias testemunhas, dentre elas servidores e até mesmo alguns juízes. Recusei prestar depoimento quando fui convidado, pois não queria me envolver.

Imperava a ansiedade pela resolução do caso. Não cabia à subseção o afastamento ou suspensão das atividades do doutor Pablo, mas o Tribunal de Ética e Arbitragem iria julgá-lo culpado, isso era certo.

Tão certo que se confirmou, mas não na proporção que se imaginava, eles abrandaram a pena, a meu ver. Só o condenaram em advertência verbal, o que a classe considerou pouco diante de tantas situações comprovadas.

Por óbvio, as partes recorreram ao Conselho Estadual da OAB. O “Doutor Engraçadinho”, como era do seu tipo, sustentaria sua defesa oralmente.

Lamentável que demorou para isso acontecer cerca de um ano. Diziam que havia muitos processos na fila, outras que estava analisando, outras que não poderiam dar prazo. Um aborrecimento só.

Como juiz, não poderia aceitar aquilo, pois parecia piada. Corporativismo. Corpo mole. Mas, enfim, chegou a intimação, com data, local e hora do julgamento, bem como a intimação para que se fizesse a inscrição para sustentação oral, caso fosse de interesse das partes.

Fui eu o designado para sustentar. Falava bem, segundo meus pares. Meu discurso era digno daquele ato, tão importante para a magistratura joinvilense. O auditório estava lotado, repleto de interessados, tanto de um lado quanto de outro.

O fato de o julgamento ocorrer na capital fez com que o feito tomasse proporções estaduais, tamanha a repercussão do caso.

O relator interrompeu meus pensamentos:

– Doutor Demóstenes Sanches, o senhor tem 10 minutos para fazer sua sustentação oral.

Iniciei com toda a convicção possível:

– Excelentíssimo senhor doutor Presidente, minha fala será breve. De antemão, dedico-me a sustentar oralmente tão somente pelo bem do Poder Judiciário, do respeito aos bons costumes. Pelo bem do outro. E é exatamente esse respeito que falta ao representado: sua cota-parte no respeito mútuo. Todos os operadores do Direito, todos sem exceção, estão fartos das gracinhas, do sarcasmo, da falta de compostura do representado perante o Poder Judiciário. Não há viv’alma naquela comarca que não reclame do comportamento do representado. Fosse ele parlamentar, estaria sendo representado hoje aqui por quebra do decoro parlamentar. É exatamente isso que lhe falta: a liturgia do cargo. A altura do cargo de advogado, a nobreza da profissão, o comportamento exemplar, não somente perante o Poder Judiciário, mas como um todo. É precisamente nesse ponto que o representado não condiz com o que dele se espera. E, se não condiz, não pode continuar desrespeitando juízes, servidores e até mesmo outros advogados. Conta em seu detrimento um comportamento infantil, de tantos “bons dias” dados com um sorriso de orelha a orelha, de tantas risadas. É uma afronta à vida judicante! É uma afronta ao Poder Judiciário! Não se espera menos deste Conselho estadual que a punição exemplar do representado, para que toda a classe volte a ser respeitada, como é exemplificado por parte de todos que a integram, mas que hoje estão tendo suas honras maculadas em virtude do comportamento “engraçadinho” do representado. E digo mais: Não há por que não dirigir-me aqui, em nome de toda a classe dos magistrados, ao próprio representado: Dr. Pablo, não! Não queremos suas gracinhas, seu sorriso largo, seus trocadilhos. Não! E basta. Não me dê bom dia. Não me trate como um amigo. Não sou seu amigo, apenas trabalho em alguns casos em que o senhor atua. Desta forma, essa proximidade nunca poderá ser entendida como uma amizade. Sua vã tentativa de aproximar-se, com largos sorrisos e comentários bem-humorados, não condiz com o que se espera dos que no Judiciário litigam. Por isso defendemos seu afastamento definitivo, eis que sua postura não condiz com tão nobre profissão. São estas, Excelência, nossas razões recursais, ratificando todo o contido na peça interposta em meio físico.

O presidente da sessão, então, balbuciou ao microfone:

– Imediatamente passo a palavra ao nobre advogado, ora representado, Dr. Pablo Antonio Igarraçu.

Dirigindo-se à tribuna com um largo sorriso, o então conhecido como “Doutor Engraçadinho” iniciou sua sustentação oral:

– Senhores, boa tarde. É um imenso prazer estar aqui. Digo isso porque tenho saúde, acordei hoje no meu lar, ao lado de minha esposa. Logo vieram meus filhos e rimos muito logo cedo, agradecendo por termos saúde e um lar para morar. Fomos para a cozinha e nos deparamos com um pão em cima da mesa. Café, leite, margarina, doce, tudo estava ali! Poderíamos comer. E agradecemos por ter comida. Depois voltei ao quarto e vesti o terno que aqui uso, evidenciando que, além disso tudo, tenho roupas. E, na viagem que fiz até esta capital, fiquei pensando em quantas pessoas podem ter um carro bom como o que eu tenho, com conforto, potência, segurança. E é assim todos os dias. Vou ao Fórum e encontro pessoas, servidores, juízes, promotores, a toda hora. E a toda hora abro um largo sorriso para todos, brinco, me divirto e os divirto. Ou tento, pelo menos. Por quê? Porque tenho saúde, porque sou feliz, porque a vida é bela. Atrás de todas aquelas pilhas de processos existe esperança.  E nós, operadores do Direito, trabalhamos juntos para dar às pessoas o que elas buscam no Poder Judiciário. O que não se enxerga é o lado bom disso tudo, enxerga-se apenas trabalho. Quando se faz o que se gosta, não se trabalha. Eu faço o que gosto, razão pela qual não tenho motivos para não dar um alto e sonoro bom dia. Para todos, sem exceção, pois para mim todos são iguais. E não me permito afirmar que isso está na Constituição Federal, porque isso tem muito mais a ver com caráter do que com um documento escrito. Da forma como está, um Poder Judiciário sisudo, mal-humorado, que não se presta a rir de si mesmo, que não se presta a dar um bom dia, para que ele serve? Dar o direito a quem de direito. Certo, correto. Mas é só isso? Será que nós só temos isso para dar a quem precisa? Ou podemos fazer isso de uma forma mais humana? E entre nós mesmos, por que não brincar com nossa língua portuguesa, objeto de todas as nossas manifestações – principalmente entre juízes e advogados. Se brinco com as pessoas não é sarcasmo, é forma de dizer: eu gosto de você como você é. Mesmo mal-humorado ou mal-humorada. O que não se pode aceitar é a indiferença. No final de um filme americano de 1998, o protagonista faz sua própria defesa perante seu órgão de classe, assim como eu faço agora. Vou parodiá-lo, servindo tal como minha conclusão:

Que tem o Poder Judiciário de errado?

Por que temos esse medo mortal?

Por que não tratamos com humanidade, dignidade, decência e até humor?

O Poder Judiciário não é o inimigo.

Se quiserem enfrentar um mal, enfrentem o mal da indiferença”.

O recurso do “Doutor Engraçadinho” foi provido.

Nunca me conformei, mas na segunda-feira, logo cedinho, recebi um envelope, sem remetente ou destinatário. Disseram que um garotinho carregando flores entrou na assessoria do gabinete e pediu para me entregarem. Diante da curiosidade de todos e do fato inusitado, abri aquilo sem muito pensar, na frente de todos que ali estavam. Dentro havia um símbolo amarelo, uma cara sorrindo. Smile. E embaixo um nome: Patch Adams.

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