O menino, a flor e o muro

Era de pouco tamanho. Nascera no vão entre o tronco robusto do Ipê e o muro da casa. Era dada à observação, ainda que pouco havia para observar naquele ínfimo latifúndio. Ocorria de, nas manhãs felizes, ver cruzar os galhos do Ipê os raios de sol e um ou outro passarinho. Em dias de chuva, recebia da copa da árvore pingos engradecidos, com os quais lutava para manter-se em pé.

Não era vista e pouco via.

Do outro lado do muro – do mundo, como pensava a flor – um menino passava em dias de aula, detinha-se em dias de folga. O muro era alto demais para que pudesse olhar por sobre, mas podia ver invadir a calçada alguns dos galhos do Ipê. No muro, o menino observava uma pichação, imaginando-a grafite, e passava os dedos sobre uns sulcos que o muro continha e que talvez um dia o derrubasse, mas que por ora eram apenas riscos na armação de concreto. Sentar à pouca sombra do Ipê que ele não via por completo e morder matinho, era hábito desde que viera para o bairro.

Não era visto e pouco via.

O que o muro escondia da flor e do menino, e eles não podiam perceber, era a possibilidade do encontro, o simples contemplar, quiçá a admiração. Nem flor, nem menino tinham capacidade de transpor a matéria e enxergar além do que viam.

Há um muro cobrindo-nos a vista, impedindo-nos de ver flores e meninos. É um muro alto e poderoso que nos impele contra si com força. Há um jardim com Ipê, flores e borboletas diante de nós, mas estamos concentrados no muro. Há uma rua a nos oferecer caminhos, mas estamos concentrados no muro.

Não somos vistos e pouco vemos.

Vamos mordendo matinho, acreditando estarmos à sombra agradável do Ipê, quando o que nos cobre é a sombra fria do muro, que fora construído com a força do trabalho, que custou dinheiro e tem seu valor. É assim que estamos vivendo: com os olhos no muro, quando há tanto a vislumbrar. Mas o tempo e a vida passam velozes demais e não conseguimos dedicar-nos à contemplação de uma flor pequena com suas pétalas perfeitas, de uma manhã de sol, de uma tarde de chuva, de um menino crescendo.

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