O menino (Joel)

O menino

O menino morto está de olhos abertos. Em decúbito ventral, o menino morto mantém a visão periférica do olho esquerdo e vê na mirada do fotógrafo a reação da humanidade sobre si. Está o mínimo morto, o menino, veja que a qualquer momento pode tanto elevar um braço quanto organizar os pés de modo que fique de joelhos na terra estrangeira. Nada no menino morto parece definitivamente acabado, como ocorre com as vidas já pertencidas ao outro lado. Deve estar mangando, esse menino, que prende a respiração e se ri à larga, na plena idade da idade em que se está fora do alcance do mal. Envolto em cuidados, nada o atinge. Não cai, não quebra, não machuca, não tem fome, nem sente frio. A esperança é uma cadeia de meioses e mitoses que continuam a obra da criação sob a pele infante, desde o branco dos ossos até o escuro dos cabelos.

Os lábios do menino morto ressaibam a sal e algas, mas ainda sabem a seio de mãe e doce aconchego lácteo. Cardumes em procissão nadam até encalhar no limiar das ondas e atiram-lhe à queima-roupa pérolas de ar recém-filtrado em suas guelras escarlates. O menino morto sente cócegas no nariz, estranha que agora tenha olhos de peixe que não se irritam com os flashes. Mentaliza em silêncio uma oração, contando as brancas esferas espumantes que se acumulam feito um masbaha ao derredor. O menino acomoda um ouvido no infinito e pousa o outro sobre a areia, delicado e atento, como se faz a uma concha para captar o bramir do mar. As mãos abertas a barlavento querem, mas não podem, colher o último calor que se aloja em sua nuca de menino morto.

A se confirmar a morte desse menino, todos estamos mortos. Atingem-nos os destroços de sua interpolação. Não deixemo-lo morrer, pois se no mundo não há lugar para o menino, não há para nenhum de nós. Teremos de macular outros mundos com nossa indiferença. Doze badaladas de bronze anunciam o naufrágio, mas no menino morto confia no cedro do convés. Ele sabe que é preciso ir, os fenícios são atávicos navegantes, desde a antiguidade põem e apõem a vela aos ventos. No manobrar da bujarrona, seu barco singra a pele viva oceânica e faz o brando sulco do caminho que o leva de volta para casa.

crônica de quinta, Joel Gehlen, AN

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