O prazer de ler (Joel)

O prazer de ler

Joel Gehlen, Crônicas de Maha Dharma, 23 de abril de 2020

Abra um livro e dê uma lida. Abra um livro hoje, pelo que vai dentro e pra fugir cá de fora. Ainda que sem tempo, na lida do agora, leia em pé feito fosse desforra. Na hora da fome, dentro da taxa de libido, devora um livro. O preâmbulo do tempo aflora a cada momento, exceto os guardados num livro. Entre as folhas das folhas uma rosa nunca mais se despetala. Poema e perfume, página a página, como pétalas comestíveis. Ato falho de levar dois dedos à boca, umedecer a borda para virar a folha e lamber com a pátria língua as entrelinhas a descoberto embaixo do tecido do texto. Encontrar o nexo, o luxo que rima na luxúria do léxico.
Meter-se entre duas páginas abertas e libar da vertente, desde o prefácio até verbete da uva. Sentir a letra escorrer na textura da língua, a tessitura do enredo unhando o volume que abunda no limite do límbico. Desfrutar o néctar do lácio, a linguagem sem receios, o recheio da fruta, a lábia coadjuvante. Quanto mais a língua penetra o estilo, menos sacia o balbucio dos látegos. E os lábios, flébeis, entreabertos, servem à pronúncia da febre. Lúbrica métrica dentro da metáfora, usa e se lambuza da lusa.
O lápis que sublinha abre um zíper. Dentro da frase assinalada, a língua apalpa a ostra e pulsa a pérola salgada. O paladar da sede ativa o plágio da saliva. A mão na nuca gane em braile, os dedos cegos aprendendo a ler sobre o relevo. Um grito de agonia esfolheia na garganta. O arco fere a nervura exposta de um cello opresso entre as ancas e emite um gemido rouco de vogais ofegantes. No flagrante encontro consonantal, o agente passivo troca de papel, ativa à fala e a língua curiosa devassa as vinhas do suplício. Depois da coisa lida, a lida aflita se amaina, no exausto fôlego da folia. Nas pálpebras entre vírgulas, avulta o sono. O rosto ainda entre as páginas abertas exara o sonho. Ex libiris: escravo escrevo, o prazer é de quem lê.

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