O último defunto vigia até o último chegar (David)

O ÚLTIMO DEFUNTO VIGIA ATÉ O PRÓXIMO CHEGAR

David Gonçalves

Ontem, fui visitar a aldeia onde nasci.

Cadê o povo daqui? Fiquei perguntando, um pouco assustado. Foram pra cidade, responderam. Fazer o quê? Sabe lá Deus!

Ruelas desertas, casas envelhecidas, algumas abandonadas.

Entrei na barbearia. O barbeiro não estava. Um moleque cor de cuia usada me disse: está arrancando dentes. O quê? O barbeiro, agora, também arranca dentes na aldeia. Corta cabelos e arranca dentes. Logo ele chegou. Foi dizendo: os dentes da velha me deram trabalho, eram toquinhos inchados. Não estranhe, agora arranco dentes podres da aldeia. Tem gente com dentes podres por aqui. Até mesmo nas crianças. O dentista também se foi. Quer cortar o cabelo? Digo que sim. Manda eu sentar na cadeira com estofado rasgado onde uma mola salta à mostra.

Corte americano? – pergunta o barbeiro.

Aceno com a cabeça confirmando e olho pelo espelho partido, com pequenas manchas de ferrugem, a rua desolada. O menino cor de cuia usada chuta uma bola de capotão murcha na terra quente, seguido por um cachorro de pelos amarelos. O barbeiro espreme os lábios como se fosse assobiar, mas comenta: a velha gemia demais, os caquinhos de dentes não saíam do lugar. Foi uma sangueira só. Um homem – rosto envelhecido, enrugado, estragado pelo sol, entra na barbearia, senta-se e permanece mudo. Parece ter a cabeça vazia.

É surdo-mudo, diz o barbeiro manuseando com destreza a tesoura. A família dele foi embora e deixou o traste por aqui. Vive da bondade dos outros, comendo pão velho, dormindo nos ocos das árvores.

Ouvia-se o trac-trac da tesoura e os fios de cabelos caindo nas lajotas gastas.

Uma vila tão próspera, eu disse.

Que me perdoe, disse o barbeiro tocando os meus ombros. Nem igreja tem por aqui. Padres e pastores estão sempre onde o dinheiro está.

Faz trinta anos que fui embora.

Então o senhor puxou a fila dos desertores.

Desertores?

Sim, depois foi indo todo mundo embora. Depois daquela geada negra. Queimou o cafezal, não sobrou nada, só varas secas espiando o céu.

O barbeiro segura a tesoura bem aberta no ar abafado das três da tarde. O surdo-mudo parece uma estátua, parado no tempo.

Veio o trator, veio a colheitadeira, veio a soja, veio o agrotóxico, veio o telefone, a televisão e os campos ficaram vazios. Um trator faz por cem famílias. Os sitiantes foram vendendo, os fazendeiros foram comprando. Agora, uns têm muito, outros não têm nada. Você anda léguas e léguas e não encontra viva alma.

As gentes dos Vermelhos? Também foram?

Tesourou e disse: Não há mais ninguém por lá. Só um mar de soja. Suspirou. Depois o trac-trac voltou a dominar o ar abafado.

O velho Vermelho se matou. Estourou os miolos. Mas, também, o que essa gente foi fazer na cidade? Pobre moça… Eram três. A mais nova se perdeu. Virou puta.

Gelou minha alma. O nome dela? Marília, disse o barbeiro, parando e indo à moringa e enchendo o copo de água. Quer também? Bebeu de um trago só. Logo o suor porejou na sua testa.

Minha paixão, quando jovem. Ela nem ligava pra mim. Velho tão religioso, correto, de repente uma filha puta… Que desgraça, disse o barbeiro, retomando o corte. Era a mais bonita das filhas. Uma flor de maracujá. O velho não aguentou. Estourou os miolos.

Paguei e saí rua afora. Fortes dores nas costas. Um gosto de cabo de pregos na boca. Um trem se aproxima da estação abandonada, apita estridente, mas não para. Para o maquinista, a aldeia não existe. O cão de pelos amarelos quer me acompanhar, mas desisti. Estou, agora, na frente do cemitério semiabandonado, cruzes caídas. No muro descascado, uma placa torta: o último defunto vigia até o próximo chegar.

Mas vai demorar, ri sem graça.

Não há nada para fazer aqui. Fui debandando, a fala do barbeiro-dentista martelando: então o senhor puxou a fila dos desertores. Por onde andaria a puta tão desejada?

 

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