Oroboro (Joel)

Oroboro

Crônica, Joel Gehlen, 16 de janeiro 2020

Foi o tempo. Com suavidade, mas não sem o dramático engano de que está passando. A bouganville subiu pelos telhados e alcançou as nuvens. Cumuloninbus de intensa fúcsia cor, com verdes pastelados num esbanjo contra o despropósito azul. O mês de Jano nos olha com sua dupla face de abismo. Guardei no camafeu das memórias pequenas relíquias que dão sentido e direção ao tempo. Anteontem foi o banho de rio. Água cristalina e fria que a montanha concede entre pedras arredondadas desde o paleolítico, para que, aos olhos do menino, lembrem ovos de dinossauro.  O Kenzo se deixa encantar por uma orquestra de lambaris que lhe vêm pinicar os pés, achatados pela distorção ótica da água.

                Não posso dizer que matei. A cobra foi morta, numa circunstância mais do agente passivo que do desejo da vontade. Depois fui me morrendo, e ainda estou. Aquele pequeno estalo de ossos cranianos moídos vazou para dentro de mim um vazio sem degraus, o abrupto arrependimento das coisas que não têm volta. Estava dentro de casa, exatamente onde estendo o tapete de meditar. O golpe da peçonha é sempre aterrador. Uma cascavel jovem, mas com veneno suficiente. Arrebatado de compaixão, decido repô-la à mata. Mas ela tem outros planos, não se deixa levar. Corre, se alteia, lança as mandíbulas numa abertura de 180 graus contra a borracha com que tento manobrar sua natureza. E um tribunal se instala dentro de mim em altercações contra e a favor da víbora. Por fim, o veredicto condenatório. A execução é imediata. Sua contorção final enlaça a consciência do carrasco. A cada manhã renovo o propósito em benefício de todos os seres sencientes. E quando se apresenta a oportunidade de praticar, abdico ao mantra ante ao bruto impulso atávico. Ainda dói. A serpente da consciência não tem antiofídico.

Janeiro é dedicado a Jano, o deus das transições. Uma face voltada para o fim e outra para o novo começo. Vigia com trancas e aldrabões o ciclo da Oroboro, que tanto subtrai quanto repõe. O tempo não é rio, mas um lago que redemoinha, serpenteando a memória. E a dúnia que me cabe é plenipotenciária melancolia de quando todos éramos deidades unidas ao mesmo divino.

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