Os Arruda (Adauto)

Os   ARRUDA

(Novela de Carlos Adauto Vieira)

JOSAPHA MIRIAM ZAPHRA ARANJUEZ, espanhol, fugindo à Inquisição de Torquemada, o Grande Inquisidor, que estava realizando autos de fé com suplícios horríveis em praça pública, cujos gritos dos supliciados se ouviam à distância e eram aplaudidos pelo poviléo, resolveu partir em direção a Portugal. Não se trata daquela planta que, esfregada, causa assadura. Mas como chegou a ser um importante nome de Família. Quando conheci o Jurandir – Jura para a literatura terráquea – passei a tratá-lo de primo. Ao Dr. Jovenil do Escritório Dr. Adauto Advocacia, chamei filho. Ambos são Arruda. Este, ainda, é de Jesus. De onde o sobrenome. Imagino tenha vindo de cristãos novos para escapar à Santa Inquisição Espanhola, onde era por sacerdote, que ficou famigerado, e símbolo de cruel: Torquemada. Só quem já leu o “Manual dos Inquisidores” ou “O Martelo das Feiticeiras” sabe como era o julgamento dos indiciados. Quando mais se defendiam, mais se acusavam. E se citavam um nome, arrolavam mais um indiciado.  Dostoievsky, nos Irmão Karamazov, tem a Parábola do Grande Inquisidor e, com ela, dá o retrato do mesmo. ”Torquemada” é um romance de Howard Fast, um ex-comunista americano, decepcionado com o Relatório de Kruschev sobre Stalin. Dá o retrato sem retoque. Então os primeiros Arrudas, que deveriam denominar-se Morgenroth, trataram de escolher uma planta suave para substituí-lo. Nada de manhã vermelha em aramaico. Arruda. Planta medicinal abundante, no Brasil, para onde vieram. Mas o DNA, não conseguiram mudar. E como judeu, sionista ou não, não joga dinheiro fora, tornaram-se latifundiários, estancieiros, grandes empreendedores sempre com sucesso. E teimosos! Digo de cátedra. Meu tataravô e seu filho, meu bisavô, ambos Arruda, além de “mãos de vaca” chegaram à Serra Catarinense e se tornaram “coronéis” donos de mais de dez fazendas. Uma delas, a do Botiá Verde, é hoje a cidade de Friburgo no Oeste. Capital da Maçã! Quando tinha oito anos, meu bisavô, o Coronel Zé Maria criou uma tropilha de mulas pampa. Um fazendeiro que pousou na fazenda do seu pai, perguntou se queria vendê-la. E por quanto. Ajustado o preço, no dia seguinte o fazendeiro seguiu viagem. Meu bisavô lhe perguntou se não ia pagar-lhe as mulas. Respondeu que fora mera brincadeira, ouviu que o Zé Maria lhe disse: Com dinheiro, não se brinca. Se não as quiser levar, vou soltá-las no caminho para a sua fazenda. E assim o fez. Durante a vida criou um aforismo famoso: teimoso é quem teima comigo! Que é ensinado de pai para filho até hoje…Na sua Fazenda Boa Vista, tudo era do bom e do melhor. Não usava poncho ou pala para se proteger do frio. Mas uma capa de lã de ovelha espanhola, com um forro de seda chinesa igual ao arco-íris. De vermelho a azul celeste. E, para aquecer-se bebia conhaque francês Chartreuse. E oferecia uísque às visitas. Como tinha muito gado nas 14 fazendas, trocava o couro deles por algodão com os índios guaranis paraguaios e com os quais aprendeu a tomar o tererê, o qual, com o frio da serra, trocou pelo chimarão para o qual preparou uma cabaça que transformou em uma cuia até hoje usada por um dos seus descendentes, mateador desde os oito, uia, onde cabia mais de meio quilo de erva fresca, mandou confeccionar pela Eberle (uma metalúrgica gaúcha já desaparecida pela ganância dos herdeiros do seu criador, um homem cheio de ideias, o qual, hoje, seria considerado empreendedor/inovador/starup. Era uma bomba com nome, homenageando o primeiro estancieiro e político gaúcho que a mandou produzir em prata mexicana com dois mil e cem furos para si e para os amigos mais chegados: Assis Brasil. O Coronel José Maria não pestanejou. Só uma bomba daquelas, não importava o preço, daria sabor ao mate matinal, que era um gostoso hábito.  Falecimento logo após os seus primeiros centos e dois anos e uma vida aventurosa e romântica a ser contada adiante e ter tido catorze filhos: 8 homens e seis mulheres, que puxaram a beleza, vitalidade e longevidade da mãe, Maria Agueda, índia guarani para guaia, transformada em grande dama da sociedade estadual e que criou os filhos para serem alguém na vida. Como o foram.

O CASAMENTO NA ALDEIA

Zé Maria, com uma tropilha de dezesseis mulas carregadas de couro seco, chegou à aldeia, quando se iniciava uma festa de casamento entre dois jovens guaranis. Observou que era uma festa grande. E mais, que a carne de animais caçados e abatidos estavam sendo assados nos espetos com que presenteara seus amigos índios, feitos em ferro de arcos de rodas das carroças, já imprestáveis, que guarneciam os “wagens” nas fazendas serranas. Antes, costumavam comer crus ou assados em espetos de galhos de arvores, sem muita duração. Ficaram felizes com os de ferro. Duravam anos! E podiam ser afiados para atravessar as carnes. Maria Agueda estava com a sua melhor vestimenta índia que a deixava mais charmosa, fazendo Zé Maria vibrar. Era, sem dúvida, a mais linda da tribo e se sobressaia entre as demais. Não vacilou um instante. Apeou da sua mula pampa e se dirigiu a ela, já levando um belo presente e com uma frase decorada : és, sem dúvida, a mais linda da tribo. Hoje e sempre. Quero-te para mim. Ela sorriu, agradeceu o regalo e lhe disse, depende do cacique! Se tem coragem, fale com ele! Zé Maria nem tremeu na base. “Vou falar com ele, sim! E foi. Difícil argumentar com um cacique fiel aos costumes tribais. Para argumentar, disse que ela já era prometida a um jovem da tribo, famoso por sua coragem demonstrada em caçadas e lutas internas e externas. Até contra os brancos da raça do Zé Maria. Este sorriu, pensando “se ele soubesse de que raça sou, já me teria entregue aquela índia”. Se não entregar, vou roubá-la! Ignora que seja um velho costume de onde eu vim. Vai surpreender-se.

O RAPTO

Foi ao encontro da Maria Agüeda que aguardava alguma resposta. Discretamente, aproximou-se e lhe disse em bom português: Vou-te levar numa dos cestos, debaixo do algodão. A mula é aquela ali e apontou para uma cujos balaios estavam ainda vazios. Vem! – Chamou-a. E a colocou no balaio vazio, enchendo-o rapidamente com algodão de outro balaio. E ordenou que ela ficasse quietinha. Durante a festa estava todos entretidos com as danças, comidas e bebidas. Pela madrugada, Zé Maria já tendo completo o escambo, montou a sua mula pampa e partiu, puxando a tropilha. Para não ser seguido, mandou que os peões fossem pela trilha normal. Ele iria mais tarde. E desviou-se com o precioso cesto para mais ao sul, alcançando acidade de vacaria, onde circulava muita gente da pecuária do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande. Um a mais, não despertaria suspeita. Hospedou-se com Maria Agüeda no Hotel do Salustiano, cuja placa era a mais vistosa e tinha comida incluída na diária. Não necessitaria andar pela cidade, ser visto com ela. Na madrugada do dia seguinte, cada um na sua mula, marchariam para sua fazenda na cidade serrana, onde poderia ficar tranquilo e casar no padre e no civil. Iniciando uma família legal. Maria Agüeda tinha jeito de ser boa de parto. Era forte, alta, robusta. Bem corada e muito charmosa. Alguns dias da chegada, Maria sentiu-se mal. Zé Maria chamou o doutor Cézar Sartori, famoso médico italiano que clinicava na cidade. Examinou-a e,logo, deu parabéns ao futuro pai e à radiante mãe. Vinha por aí um chibarro, disse Sartori, adivinhando o sexo do bebê por uns sintomas da mãe e movimentos do nascituro. Não errou. Tratem de um nome bem másculo pra ele, recomendou ao casal. Esta visita ‘’e por conta do conhaque a ser bebido quando nascer. Fico às ordens. Mas não creio em problemas. Os pais são muito saudáveis. Até! Desceu a escadinha, subiu na aranha e se mandou para a cidade. Os dois ficaram abanando, mas já pensando no nome do garotão.

O NOME

Zé Maria pensou em um nome hebraico; Maria em um nome guarani. Seria José Maria Indalécio Arruda. Indalécio era guarani. Indio Alécio. Combinado.

A BANHEIRA

Maria Agueda, grávida, começou a sentir frio ao banho, pois estava acostumada às águas paraguaias de rios e lagos sempre com boa temperatura. Aqui, não, era serra e as águas vinham das montanhas geladas. Havia necessidade de a esquentar no fogão à lenha e das chaleiras despejar na baciona, onde, rapidamente, esfriava. Zé Maria falou com o dr. Sartóri a respeito e este recomendou banhos, pelo menos mornos, que relaxavam e ajudariam no parto. Zé Maria mandou construir uma caldeira, onde o fogo à lenha esquentaria a água e a jogaria na banheira. Dr. Sartóri desenhou uma com o formato de gôndola veneziana e um tronco no meio de maneira que a banhista poderia jogar a água com simples movimentos do corpo. A água quente ia e vinha para a frente e para traz. Ela poderia ensaboar-se à vontade. Fora feita de zinco grosso, conforme o desenho do médico, pois o zinco não fazia mal à gravidez. Logo, um latoeiro alemão, imigrante, estava fazendo as banheiras para as grávidas da cidade. Como se a ideia fosse sua. Um sucesso! Maria Agueda começava a lançar moda e prosseguiria, valendo-se do prestígio e da fortuna do marido. De simples índia guarani passou a Grande Dama da Região. E da Sociedade local. Saindo fotos suas nos jornais. Porém, modesta, nunca se exibiu por conta própria, se não chamada pelos cronistas da época que a fotografavam. Zé Maria ria-se. Vira aquilo na sua Espanha. Nunca pensara que, por aqui, isto fosse acontecer. Dizia, espirituosamente, que a cidade tinha aspecto de fazenda e cheiro de farinha de milho (biju). Maria Agüeda, ainda, gostava de fazer pratos índios e fez sucesso com os seus pãezinhos de coalhada, logo apelidados de biloró e, mais tarde, quando já avó, biloló. Soma de bisa loló, apelido carinhoso que lhe dera Zé Maria. E assim com outras comidas guaranis especialmente, assados de várias carnes. Logo sentiu que estava grávida outra vez. Deixou Zé Maria contentíssimo. Dr. Sartóri achou que, desta vez, viria uma menina. E começou a pesquisa para o nome. Zé Maria queria nome espanhol: Mercês ou Mercedes. Quando veio, notou-se a extraordinária semelhança com a mãe: morena, cabelos negros de azeviche; robusta e alta; olhos profundamente negros. Logo revelou atividade; não queria parar no berço. E adorava o banho na banheira, especialmente, se sozinha. Expulsava a mãe e, depois, a aia. Zé Maria lhe fez bonequinhas de madeira, que levava ao banho para ela banhar. Dava-lhes nomes engraçados. Via de regra correspondentes aos das empregadas, algumas escravas como a Tia Sinhana que gostava de a amamentar para poupar a mãe. Logo estava pronta para seguir o irmão nos estudos, cujos dois professores vinham dar aula em casa aos petizes. Aprendiam com rapidez e tinham enorme agilidade mental, segundo os professores. Contavam os bezerros e petiços em voz alta. E escolhiam os destes para sua montaria. Faziam corridas pelas coxilhas; aprendiam a jogar o laço; e as boleadeiras, trazidas da Argentina para os peões. Tratavam as criações de gado; aves; muares e pitiços. Logo sabiam arrear os peticinhos para passeios e corridas. Uma vida cheia e saudável. Nunca ficavam doentes. Logo, novamente, Maria Agüeda sentiu o peso de mais uma gravidez. Já tinha prática de índia guarani e de fazendeira. Só chamaram o dr. Sartóri quando chegou ao quarto mês. Porém, estava tudo em ordem e, novamente, seria um varão. Um pouco menor que o primeiro. Acertou de novo. Zé Maria queria dois nomes para este: Juan Pietro. Com o tempo abrasilerou-se e se tornou João Pedro. Desde criança adorava trabalhar com barro, fazendo casinhas, galpões, estábulos, igrejas como as das revistas trazidas pelo pai da cidade. Ou ganhas de amigos que viajram para outras bandas. Vocação certíssima de engenheiro. Mas não formado no Brasil, se não na Europa com apoio da mãe. Fazendeiro? Nunca! Bastava o mais velho. Queria dominar línguas: espanhol; francês; guarani.  Mais velho sonhava com a Inglaterra por causa da sua pecuária. Iria conhecê-la de perto aos dezoito anos. Mercedes contentava-se com o Português e a vida doméstica. Entretanto, já madura, aprenderia inglês até para poder conversar com os seus cães de raça e acompanhar os negócios do maridão importação de material, ferramentas, pequenas máquinas, vinhos e outras bebidas destiladas: uísque, conhaque, vodca. Tinha fregueses certos desde o casamento: vinhos Madeira e do Porto para os Gonçalvez, portugueses; uísque para Ramos; conhaque para os padres maristas; vodca para os Miroskys. Logo pensavam em deixar a cidade serrana e instalar-se na Capital. Maria José, a irmã, casou-se cedo e o pai deu ao casal uma das fazendas. O marido adorava política e logo era juiz eleitoral; a outra irmã Thereza, igualmente, casou cedo e recebeu uma fazenda em município vizinho, onde extraiam folhas de butiá para forrar travesseiros e colchões de condenados. Esta aproveitava os ganhos para assistir temporadas de óperas em S. Paulo e logo se mudou para a Capital do Paraná. Não suportava aquela vidinha de fazendas. O marido era filho de imigrantes europeus com outra educação. Índio Alécio tinha vontade de estudar, aprender cada vez mais. E foi mandado a frequentar o colégio jesuíta em São Leopoldo no Rio Grande do Sul, fazendo companhia a outros conterrâneos que seriam notáveis políticos. E, igualmente. Embora grande criador de gado, que fora estudar na Inglaterra Agropecuária, não só por causa dos animais, porém, igualmente, pela forragem resistente ao clima semelhante ao da sua região natal. Para qual trouxe mudas e plantou com sucesso. O segundo deu largas à vocação e a Mãe o mandou estudar na Bélgica Engenharia Civil. O Benjamin na família foi batizado José Maria Agüeda Arruda e apelidado Zé Muque, porque gostava de proezas de força, de laço, de cavalgadas em pelo e de cantar e tocar violão, improvisando versos como payador. Escrevia no jornal da terra. Versos e crônicas cotidianas. Morreu moço. Diziam que do cigarro e da cachaça como boêmio. Não deixou família conhecida. Os demais irmãos formaram família e se espalharam pelo mundo, sempre gozando posições privilegiadas por si e seus descendentes.

O ACIDENTE MUAR

Zé Maria adorava mulas pampas. Adquiria-as chucras e as domava ele mesmo. Numa destas redomas, Zé Mari perdeu o equilíbrio e foi arrastado pela mula através o campo, batendo em pedras, galhos de árvores caídos com os temporais, montes de barro seco. Um peão mais bravo, pealou o animal com a boleadeira, derrubando-o. Correu e tirou Zé Maria do estribo, onde o pé ficara preso. Não morreu, mas foi duramente machucado dos pés à cabeça. E levado para o seu quarto e posto e mantido na cama, enquanto se esperava o dr. Sartóri. Quando este chegou, virou e desvirou o paciente a ver se descobria alguma contusão externa. Só arranhões e vermelhidão. Mas, e internamente? Não vomitara sangue; parecia tudo perfeito. Era um homem muito forte. Deu-lhe alguns comprimidos anestésicos para que fizessem efeito sobre as dores corporais. E mandou esfregar pomada anestésica nos arranhões com álcool ou água oxigenada para evitar infecções. Tentasse dormir. Era o mais prático. Descansar, inclusive do susto. Riu-se, quando ouviu esta palavra: susto, Sartóri? Sempre domei estas mulas. Esta me enganou. Mas vou domá-la, amanhã ou depois. Na base do rabo de tatu. Tenha calma, seu Zé Maria. Não és imortal; nem vais ficar para semente. Que idade tens agora? Oitenta e quatro só, respondeu. Sou de raça boa. Chegam aos cem, facilmente. Mas não caem do lombo de mulas, né? perguntou Sartóri. Não, porque nunca tiveram. Eram mais criadores de carneiros, ovelhas e cabrões. Mula só Sancho Panço…. Então, és espanhol? Parente do Dom Quixote? Por isto aquela tua capa colorida de lã…Bem, vou te deixar descansando e amanhã passo por aqui a te ver. Nenhuma força. Fica na cama. O resultado aparece, bom ou mal. Tomara que seja bom. Adiós, Zezito. E se foi na sua aranha, puxada por um zaino negro. E fogoso. Zé Mari passou uma noite horrível, colocando salmoura no corpo todo, bastante dolorido. E, de repente, começou a vomitar. Só sangue! Algum órgão fora atingido e sofria hemorragia. Maria Agüeda desesperou-se e mandou chamar o dr. Sartóri, que veio voando. Conversou com o Zé, fazendo-lhe perguntas sobre a sangueira. Temia a hemorragia interna. Como estancá-la? Não havia como aplicar compressas de algodão ou pano. Mandou esquentar um pouco de água para, morna, fazê-la beber com sal. Talvez cicatrizasse o órgão atingido e hemorrágico. Diminuiu realmente. E Zé conseguiu conciliar um sono agitado. Sartóri ficou à sua cabeceira. Tomou-lhe o pulso, a febre. Ambos baixos, normais. Pela madrugada, como esfriasse, tomou, outra vez, pulso e febre. Aquele normal. Esta, subindo. Sinal de infecção. Mais água salgada. Bebeu. Vomitou. Com manchas de sangue. Aí já haviam chegado palpites para estancar a hemorragia que parecia o mais grave. Limão com sal grosso. Deram-lhe. Vomitou. Estômago não tolerava. Conhaque! Ele sempre bebia. Gostava. Veio o litro do francês. Engoliu um cálice e pediu outro. Relaxou. Ficou numa modorra. Sem vomitar. Sartóri resolveu descansar num cômodo da casa grande. E foi acordado com o sol alto, porque Zé voltara a vomitar. Conhaque e bílis. Pouco sangue. Sartóri respirou aliviado. À noite se despediu, prometendo retornar manhã cedinho, salvo se fosse chamado. Mas não o foi. O Zé se revelava um osso duro. Sobreviveria. Sobreviveu, realmente, porém não era mais o mesmo. Acompanhava-o um temor permanente. Chamou os filhos, fez com eles uma reunião e os levou a um quarto da casa grande, cuja porta nunca se abria. Abriu-a e os fez entrar. Só havia uma enorme broaca de couro cru, fechada com cadeado. Abriu o cadeado e levantou a tampa. Viram um tesouro nunca imaginado. Joias e mais joias de ouro; cravejadas de pedras preciosas. Então lhes disse: guardei tudo isto para vocês, mas não quero brigas. Tenho num papel escrita a divisão feita por mim e pela querida Maria Agüeda. Se não escapar desta, ela lerá para vocês diante de um advogado nosso parente: o Dr. Celso. Conhecem. Já esteve aqui várias vezes para saborear o nosso churrasco e beber o nosso conhaque e o vinho português. Também gostou do espanhol. Ainda temos dos dois. Vou bebê-los antes de me espedir. Está bem?  Podem ir que vou fechar o cadeado e entregar a chave à sua mãe. Há, igualmente uma divisão das fazendas com tudo que têm dentro. Está documentado com o dr. Celso. Sem brigas. E logo seguiria Vamos, vamos….Retiraram-se todos. Trancou a grossa porta. Sozinha, Maria Agüeda, no quarto do casal chorava baixinho. Sentia que iria perdê-lo e preparava-se para o pior. Três meses depois, houve o desenlace com uma violenta hemorragia que nada estancava. Sartóri suava em bicas buscando um tampão. Mas onde era o órgão? Não o localizava, mesmo apalpando, batendo com o nó dos dedos. Zé enfraquecia a olhos vistos. Empalidecia rapidamente. Já custava a abrir os olhos. Deu um grande suspiro. Parou de respirar. Maria Agüeda trajou imediatamente preto, embora elegantíssimo. Continuava tão charmosa como quando Zé Maria a sequestrou debaixo do algodão. Mas chorava, proclamando que fora muito feliz no casamento. Nunca lhe faltara nada e logo seguiria o Zé. Perguntada se a mula seria sacrificada, contou que o Zé Maria, duas noites atrás, levantou-se, agasalhou-se com a capa espanhola, apanhou seu W&S 45 e, apoiado em uma bengala, foi ao estábulo e com um tiro a sacrificou. Voltou e me disse que queria ser enterrado sob a cabaceira que lhe dera tão boas cuias, presenteadas aos amigos visitantes como obra sua. Desvestiu a capa espanhola, encostou a bengala na cama e se despediu de mim com juras de amor e gratidão pela vida maravilhosa que vivemos. Sorriu. Deitou-se, cruzou as mãos no peito, fechou os olhos, mandou-me um beijo com os lábios. E partiu sorrindo. Pela manhã, um rabino de cidade próxima veio à fazenda para o sepultamento de acordo com a Thorá e o Talmude. Ninguém sabia desta ligação do Zé Maria. Mas havia. Por isso, nunca frequentou a igreja católica ou outra qualquer. Nem participava dos eventos na Matriz, nem respeitava os feriados religiosos. Era judeu. E odiava a Igreja Católica Apostólica Romana, mãe da Santa Inquisição com seu Torquemada na Espanha. Contribuía mensalmente para a Sinagoga da cidade próxima discretamente com um bom valor. E queria as cerimônias fúnebres hebraicas. Por isso o rabino veio. E preparou o corpo para ser enterrado sob a cabaceira. O rabino chegou mudo e saiu calado. Falou só com Maria Agüeda, que já sabia de por que Zé Maria frequentava a sinagoga. Encomendou o corpo. E se despediu dela, colocando-se às ordens, se quisesse ser judia. Ela explicou tudo sobre a família: Os filhos estão encaminhados, como profissionais liberais, fazendeiros, políticos, poeta, comerciantes fortes. Tia Sinhana seria a sua companhia. Era de confiança com os seus cem anos de vida, setenta passados na fazenda Boa Vista, que tinha um candidato a cemitério, se enterrado ali, igual ao que foi. Seguido pela inconsolável viúva índia guarani, transformada em grande dama da sociedade. E se notou pelo seu modo de guardar e enterrar sempre ao lado do seu Zé Maria. Aliás, Josaphá Miriam Saphra Aranjuez, segundo o rabino.

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