Papai Noel esteve aqui (Hilton)

PAPAI NOEL ESTEVE AQUI

Hilton Görresen

Puta, que humilhação. Calorzão de dezembro, eu com essa barba incômoda, travesseiro na barriga, roupinha vermelha. Pescoço empapado de suor. Mas não tinha jeito, eu estava duro, completamente durango kid. Me ofereceram este bico de Papai Noel. Se os amigos de boteco me vissem ia ser uma puta gozação. Pelo menos era dinheiro certo no bolso.

Entrava nas casas com a risada do bom velhinho: how, how, how! – não sei se de falsa alegria ou de sufoco debaixo daquela roupa. Casas burguesas com lareira, frízer repleto de bebidas, dezenas de embrulhos coloridos debaixo de imensa árvore de Natal. Gente que podia se dar ao luxo de pagar um Papai Noel para seus filhos. Passava a mão na cabeça das amedrontadas crianças e perguntava: você obedece o papai e a mamãe? Você passou de ano na escola? Tirava fotos com os pequenos no colo; alguns mais pentelhos tentavam me puxar a barba. Comia um pedaço de bolo, tomava um gole de champanha e partia para outra casa.

Terminadas as visitas, saía com o dinheirinho no bolso, louco para tirar aquela roupa, colocar uma bermuda e tomar umas cervejas.

Pelas vielas escuras do bairro, ao dobrar uma esquina esbarrei num cano de revólver. E não era revólver de brinquedo. Por trás do revólver, um bigode caído, tipo mexicano.

O bigode se mexeu e disse:

– Me passa o dinheiro!

Meu corpo esfriou, como se me atirassem de repente dentro de um frízer. Veio uma sensação de estranhamento. Tonteei de nervoso. Poderia isso estar acontecendo comigo? Mas era inevitável, estava ali o homem com a arma, bem na minha frente, realidade visível e palpável. Quando me desvencilhei do estonteamento, pude melhor observar o homem.  Era um sujeitinho franzino, só olhos e bigode. Velhas calças jeans, sandália grosseira nos pés. Eu treinava caratê há tempos, vexame ficar ali parado, sem reação, só faltava urinar na roupinha vermelha.

Senti que o homem estava meio inseguro, me afastei um pouco e dei uma cutilada em seu braço. Ele frouxou o corpo, sentindo o peso de minha munheca, largou a arma. Então lhe apliquei uma gravata. Minha barba desgrudou, o travesseiro saiu do lugar.

O sujeitinho resfolegava como um cavalo velho, preso pela garganta. Desapertei um pouco a gravata. O que fazer agora? Dar umas boas porradas? Ou levar pra delegacia? Já imaginaram: um “bom velhinho” com barriga de travesseiro, a barba desgrudando, aparecer na delegacia a esta hora, levando um pobre bigodudo? Para eles eu não era flor que se cheire. Já tinha passagem por arruaça e desacato. Era capaz de também me prenderem.

Quando o larguei, pendurou um olhar assustado na minha frente e implorou:

– Não me leve preso, moço, não sou ladrão!

– Ah, é? E o que você estava fazendo, treinando para um filme de faroeste?

– Minha filha menor está doente. Precisava de dinheiro para comprar remédio.

– Desculpa esfarrapada. Por que não procurou um posto de saúde?

– Hoje está tudo fechado.

E continuou, com as feições agora iluminadas pela luz fraca:

– Pelo nascimento de Nosso Senhor, moço. Não sou nenhum “marfazejo”. Sou cristão batizado e crismado.

Palavras são enganadoras, não devemos nos fiar nelas, mas o jeito frágil do homem, a tristeza no fundo de seu olhar, começaram a amolecer este coração de Papai Noel. Tinha no rosto um sofrimento barroco, entalhado na pele, os olhos apertados como quem não suporta a luz. Propôs me levar até sua casa para conferir o que havia me dito. Tá bom, eu disse. Não queria desacreditar num cristão, pelo menos na noite em que nasceu Jesus Cristo. Enfiamos por um beco sem calçamento. O revólver, esqueci de dizer, estava emperrado, ele o havia achado num monte de ferro velho. O homem ia mancando em minha frente, afobado, deu topada numa pedra. Eu só de olho em seus movimentos. Se vacilasse, lá ia porrada.

Ia mancando e resmungando: mardita pobreza, mardita pobreza!

Ruas esburacadas. Luz fraca em postes de madeira. Casas com fina cobertura de plástico ou de amianto, enfeitadas com ramos de pinheiro e luzinhas piscando. Chegamos diante de uma casinha triste, sem reboco; um quintalzinho na frente, com pé de mamão e uma leira com cebolinha e hortelã.

Parei diante da casa e me senti constrangido. Acho que foi por causa da hortelã, lembrei dos quibes que minha mãe fazia.

– Discurpa, a casa é pobre – ele falou, a voz humilde, como se dirigindo a alguém importante. O senhor pode entrá.

Juro que fiquei puto com toda essa humildade. Eu também não era nada, era um duro como ele. Dignidade, seu merda!

Fiquei ali parado. E pensei na criança. Não na que estaria dentro da casinha triste, mas em minha irmã mais nova que morreu acabada pela sezão, o anjinho.

Sabe aquela horinha que a gente se acha engrandecido, basta um impulso, um empurrão pra fazer alguma besteira? Quase sem pensar, tirei o maço de dinheiro do bolso, o lucro daquela noite, e o entreguei ao homem:

– Diga à sua filha que Papai Noel esteve aqui!

Arranquei a barba incômoda, o travesseiro, e segui leve pelas ruas, o passo firme; era um Robin Hood, um justiceiro do velho Oeste. Agora, vamos às cervejas. How, how, how!

 

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