Pietá (Salustiano)

Pietá

“ave maria…”. A réstia de sol tremulava solitária no azul dos olhos cravados em mim, furtiva não os ousava fitar. Medo? Nada, indizível respeito, aquele não sentir-se digna que apunhala a dúvida no peito. Fitei-os a contragosto no mármore luzidio de luz pouca. Seduzia-me o semblante de difícil descrever na doçura que o ensombrecia, talvez por não arrostar os olhos me permitia esquadrinhar o corpo serenado à sombra. Perene graça, esvanecia-se o quadro em ternura. A sempre mãe que o via infante, o preferia ingênuo, o amava criança, em madre regaço o guardava.

“… cheia de graça…” Pura poesia em muda contemplação, ele de boca plácida em tez mortuária, de branco e brando cadavérico, esvanecida na vida que se esvaíra, no rosto inerte de cerrados olhos a fitar o nada infinito, vazio que se espraiava em vácuo, no ríctus da dor recém aplacada, corpo contorcido na leveza do espaço tempo, na vida que se dera aos outros, vida precoce cuja razão se explicaria nos séculos vindouros;

“… o senhor é convosco…” Olhos de ternura vertidos na contemplação da dor, a impingir mães de todas as castas. Olhos de nada olhar que denunciavam esquecida angústia. Agora lenitivo de alma, em pensadas feridas. Transcendente silêncio de surdos brados, flectidos em terno olhar. Fitava entre porquês o braço que soçobrava inerte, em impotência entristecida e resignada. No baço olhar destacado na tez amorenada vislumbra-se o alívio inerte a predizer “ele já não sofre mais”. Sofrimentos os tenho, mas mitigados soam ante aquele olhar que cinge o sofrimento humano, enorme peso alijado dos ombros da humanidade;

“… bendita sois vós entre as mulheres…” Arrebatada em terno olhar, vigor insuperável em definhado corpo, benção de especial alguém, predestinado destino eterno, advogando humanas perdidas causas, arrimando-se no cristo sem vida, circundava-o com a destra mão, a esquerda estendida em súplica rogava porquês ao mundo que o condenara. Aconchegava ao colo seu sempre rebento, resgatado ao mundo incompreendido. Sempre benditas e malditas aos humanos olhos do mundo. Mundo profano, que insano, condenou, à revelia da graça, o filho à morte. Pranto e riso na pungência que acalanta coração sem razão.

“… bendito é o fruto do vosso ventre…”. Brando olhar, compassivo regaço a acolher o fruto de sua vindima. Inveja-me tal porfia. A vida não me contemplara rebentos, furtara-me o renovo, quiçá por não os merecer, redimia-me na infindável confissão de todas as aves, de todas as marias, que sofria a busca do mitigar coração. Na maria santa ali contemplada, acolhia eu os corpos, oferecendo regaço a homens que vertiam a alma após saciarem o corpo. Cumpria-se em mim a doce entrega do comungar de sangue e corpo, ofertando-me em “tomai e saciai todos vós”. Em mim abriam-se corações em alcovas de luz pouca, descerravam-se almas na sôfrega busca de lenitivo. E os gerava, pois a alma vertia o fruto com dor gerado, incompreendida na sina da inferioridade. Essa sempre latente dor do parir, legado de eva que abarca as mulheres todas, benditas e malditas sereis sempre;

“… santa maria, mãe de deus…”. Santa não violada na preferência virgem de implacável deus. “Impura” gritava em silêncio meus olhos sob o véu escondidos, mesmo véu a guarnecer a aura santa da sofrida imagem. “Impura”, gritavam os ecos fletidos na nave que impingia terror, “impura” gritava o dedo em riste do padre de olhar sequioso do carnal desejo, “impura” gritava a humanidade em afoita confissão, mulheres de espúrios desejos, homens de covardes gestos, travestidos em pudicos algozes, abutres de alcovas a verterem pejo, de lamacento visco.

“… rogai por nós pecadores…”. Esvaímo-nos em lágrimas, chafurdados em pecados herdados desde o brotar, “perdão senhor, perdão” na sempre cantilena rogatória, na sempre súplica misericordiosa. Imposta mácula, enodoado sangue, espraia-se em único vislumbre de fé o eterno perdão clamado. “Piedade, piedade”, espada de dâmocles em mira, resta tão só refúgio no seio do eterno pai, santa madre igreja, virgem santa da sempre acolhida.

“… agora e na hora de nossa morte…”. Onipresente temor, ardil a imiscuir terror, astúcia a perquirir pavor, em espreita a morte perscruta a vida. Minucioso elo de subterfugio a quedar-nos reféns, pois ao exalarmos final suspiro, último ablativo ao qual fugimos, clamamos pela sôfrega vida. Até o sedutor paraíso queda-se incólume quando, em último e surrupiado alento, tenaz garreamos a vida. Relanceei o mirar: Surdos aos surdos brados, cegos ao tênue raio de sol, quedavam-se emudecidos na miragem da sempre terna e eterna dor, aflorando como deuses na tessitura da embrutecida pedra: “Tende piedade de nós, degradados filhos de Eva”.

“… amém.”.

 

Salustiano Souza

 

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