Quando a chuva chegar (Joel)

Quando a chuva chegar

           Joel Gehlen

Ficou na janela a esperar pela chuva. O dia foi quente. Não desse calor abafado e úmido tão característico de Joinville, mas uma ardência ensolarada, com brisa morna, inconstante e biruta. Aquela ofuscante claridade a indispôs para o trabalho. Escolheu ficar nos cômodos mais escuros. Leu em voz baixa, tomou anotações e bebericou mais de uma xícara de café. Puro, forte, quente e sem açúcar. Se ainda fumasse, teria acendido um maço e meio de Marlboro naquela tarde. Filtro vermelho. Só para formar aquele arranjo fétido de bitucas amassadas aleatoriamente. Alguns cigarros quase inteiros, como se tivesse desistido deles assim que os acendeu. Não de um jeito deliberado, mas com desdém. Pensou que as cenas de cigarro eram as que melhor retratavam a solidão no cinema. Deixaria uma xícara de café pela metade, ao lado do cinzeiro. Pespegou umas pregas de dúvida no cenho.

Gostava de escrever seus roteiros em silêncio. A casa vazia. Na cozinha, só o fogãozinho e uma banqueta que fazia de mesa de apoio. Livrou a sala do sofá, ficou uma cadeira. Cenográfica. Preferia escrever apoiada no chão, os papéis espalhados como num ritual. Os pés sempre descalços, muito finos e limpos. Entrava no banho dez vezes ao dia. Gostava de fechar os olhos e guiar-se pelas frinchas entre as madeiras do assoalho. Quando pisava sobre as folhas no chão, distinguia sua letra na textura do papel. Talvez conseguisse decifrar as palavras com a sola dos pés. Quando a escrita empacava, deitava-se inteiramente nua sobre os manuscritos, rolando lentamente como se pudesse sentir na pele o efeito do texto.

Armou-se uma borrasca no horizonte. Na iminência de desandar o pampeiro, vestiu uma camisa velha e se colocou na janela como quem entra em cena. Um olhar estudado, os botões meio abertos, meio fechados. Nada além da camisa. A chuva não vinha. Pensou em cavalgar ao encontro da tempestade, na direção do horizonte. Cavalgar para dentro da noite, até sair do outro lado, onde fosse dia outra vez, olhando o mundo lá de cima, na velocidade do trote de um tordilho. Então despencou em grandes bagas como nunca sentiu antes. Sem resistência ao prazer intenso do toque. O aguaceiro fez voar seus cabelos de papel. Depois choveu de mansinho, mas ela já dormia com a janela aberta para a noite e um guarda-chuva imaginário forrado de estrelas.

 

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