Quem é você?

“Conhece-te a ti mesmo.”  (Sócrates, filósofo grego)

“Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa.” (João Guimarães Rosa, escritor brasileiro)

 

Alguma vez você já ficou estático diante do espelho, perplexo diante da sua imagem?

Já perguntou quem é você, lá bem no fundo? Já questionou qual seria a sua verdadeira essência ou o que afinal lhe caracterizaria como ser vivo e como humano?

Você é seu corpo? É seu espírito? Você é sua alma? Sua mente? No final das contas, o que representam todos estes termos e como se relacionam?

Nós, homens, somos bons em decifrar charadas, mas em algumas delas nós emperramos mesmo. Tentamos, imaginamos soluções, mas a coisa não deslancha. Isso nos gera desconforto, pois somos angustiados. Pior que isso, somos imodestos. Se não conseguimos mesmo a resposta, inventamos algo, nem que seja a partir de uma intuição qualquer. Precisamos de alguma coisa que traga sentido ao nosso mundo, que preencha as lacunas. Buscamos de qualquer jeito alguma sensação de controle.

É aí que aparecem as explicações mágicas. Surgem os deuses e os heróis, os demônios e os fantasmas. Uma boa versão deles pode dar certo, dominar nossa angústia. Pode até encantar. Se convincente, pode sobreviver longo tempo. Entretanto, mais cedo ou mais tarde, será balançada por algum esforço da razão.

Assim, o misticismo da antiguidade reinou até surgirem os pensadores da Grécia Antiga. As chamadas trevas da Idade Média persistiram por mil anos e só acabaram na fertilidade do Renascimento. As restrições da Inquisição não se dissolveram até que se despertasse a criatividade no Iluminismo.

O século XIX foi uma destas épocas brilhantes, em que parecia que tudo seria devidamente explicado e entendido. A humanidade estava entusiasmada com as possibilidades da ciência. Não era por menos, pois a física, a química e a biologia resolviam um problema atrás do outro. Qualquer resposta seria questão de tempo.

No entanto, não foi isso que aconteceu. Algumas incógnitas teimaram em ficar fora do alcance, mantendo o status de grandes mistérios. Um grupo delas foi mesmo considerado definitivamente indecifrável, quer dizer, para todo o sempre e não apenas para o conhecimento da época. Diziam respeito à nossa essência, sendo, talvez por isso mesmo, as que mais angustiavam.

A maior de todas as incógnitas era mesmo a origem de tudo, da matéria, do Universo. A pergunta era simplesmente como surgiu algo, a partir do nada?

Um segundo mistério questionava a origem da vida, que incompreensivelmente emergiu de substâncias não vivas. Um terceiro perguntava como um corpo físico pode tornar-se consciente de si mesmo.

Poucos se aventuravam por terrenos tão nebulosos. As concepções existentes eram (e, em parte, ainda o são) orientadas pelo pensamento místico ou religioso. As especulações filosóficas eram tímidas e a ciência então, esta passava longe.

O século XX trouxe a ousadia. Ainda que até hoje continuemos sem as respostas que almejávamos, já temos algumas boas pistas.

A Cosmologia evoluiu muito, chegando à hipótese do Big Bang. A Teoria da Evolução indicou aos biólogos um caminho para decifrar a origem da vida. As conquistas da Neurociência animaram os pesquisadores para a investigação da consciência.

Os modelos antigos até que foram concebidos por mentes criativas, mas eram definitivamente insuficientes. Os atuais têm se mostrado superiores, pois apoiam-se não apenas em lampejos de raciocínio, mas também em cuidadosas observações da natureza. São modelos que ultrapassam o racionalismo. Exigem mais, querem ser testados, ser verificados. Pedem até para ser falsificados. Assim, os nossos grandes mistérios viraram simplesmente questões. São agora questões científicas.

O conhecimento de si

Sócrates foi um gigante da filosofia, um dos maiores pensadores da humanidade. Na Grécia Antiga era mesmo considerado o maior de todos os sábios. Sua influência foi tanta que a filosofia se dividiu em dois universos: antes e depois de Sócrates. A força de suas ideias permanece indiscutível, até hoje.

O legado de Sócrates foi decisivo, mesmo não tendo ele escrito uma única linha. Transmitia seus ensinamentos conversando com seus discípulos, caminhando pelas ruas de Atenas. Considerou o diálogo como a grande fórmula para a procura da verdade e se destacou especialmente pela maneira perspicaz de formular perguntas. Conhecemos seus conceitos pelo que escreveram os discípulos, notadamente Platão.

Sócrates sabia como chamar a atenção para suas ideias. Seu enunciado de maior impacto parecia uma confissão de ignorância: “Só sei que nada sei”. Esta frase célebre causava perplexidade, especialmente nas ruas daquela cidade que endeusava o conhecimento. Entretanto, o grande sábio não era um descrente e a frase nada tinha a ver com ceticismo. Trazia, ao contrário, a noção de que a procura da verdade deveria passar por humilde reconhecimento da própria limitação e que isto implica trabalho árduo. Sócrates destruía as certezas dos atenienses com seu questionamento embaraçoso, levando-os a rever suas ideias. Demonstrava que mesmo conceitos cristalizados costumavam ser inconsistentes.

Atribuiu ao conhecimento o status de único bem, considerando que “uma vida não susceptível de exame não vale a pena ser vivida”.

Ele deixou concepções originais sobre virtude, ética, amor e conhecimento, além de método imbatível para investigar a verdade. A despeito destas contribuições notáveis, ele é mais lembrado por algumas curtas mensagens, como aquela que mudou a maneira como os homens buscavam o conhecimento. “Conhece-te a ti mesmo” foi sua segunda frase lapidar. Talvez tenha sido a de maior impacto para a época, pois inverteu o alvo das indagações visado até então. Estes dizeres estavam gravados em um oráculo na cidade de Delfos e Sócrates os adotou, dissecando todas suas possibilidades. Considerou que não nos aproximaríamos da verdade olhando apenas para os céus e a terra, mas que deveríamos nos dirigir para dentro de nós, onde encontraríamos os principais segredos do conhecimento e da moral. Nascia então o método introspectivo e, com ele, a filosofia.

Hoje, quando estudamos a consciência humana, lembramo-nos da trajetória de Sócrates. O próprio objeto do estudo nos envia ao autoconhecimento, base da filosofia socrática e platônica. Evoca a angústia da pergunta que cada um já se fez um dia, na frente do espelho: “Quem sou eu”? É aí que tendemos a acreditar que, de fato, nada sabemos. Podemos então, e só então, começar efetivamente a conhecer algo.

Por estes mais de dois milênios os filósofos têm feito ensaios na tentativa de decifrar a consciência. Usam quase sempre variações do método dialético originalmente proposto por Platão, enfatizando as hipóteses forjadas a partir da introspecção, da avaliação interna, da dedução. Cada um formula suas perguntas, propõe sua hipótese e seu modelo, resultando em oscilações intelectuais, em antíteses e sínteses.

Com tantos conflitos de ideias, a história acaba muitas vezes em ceticismo. Surgem dúvidas sobre tudo e até sobre a viabilidade do próprio conhecimento. É uma espécie de radicalização do “sei que nada sei”. Desde os gregos, o discurso cético eventualmente retorna, especialmente quando os homens mostram mais divergência ou confusão.

Seguimos Sócrates por todo este tempo, de um jeito ou de outro. Mesmo nos dois últimos séculos os psicólogos utilizaram a introspecção como instrumento para avaliar o funcionamento da mente humana. Afinal, o método introspectivo é muitas vezes convincente, pois corresponde a um tipo de percepção ampliada, uma visão de nível mais elevado. Permite quase sempre entendimentos adicionais. Entretanto, esta estratégia esbarra em um problema lógico: as limitações de qualquer estudo sobre si mesmo.

Só recentemente mudou-se o plano da busca, a começar pelo próprio ponto de partida. As novas pesquisas procuraram observar os estados mentais a partir de outra perspectiva. O interesse não se restringiu mais à contemplação da própria consciência, mas à observação da consciência “dos outros”. Foi o mote da medicina e da biologia, que começaram a sondar o funcionamento mental a partir do exame do corpo humano, especialmente do cérebro.

Estes cientistas não se dedicariam tanto ao estudo da mente em si, mas à procura de métodos capazes de captar informações no sistema nervoso, tido como o grande responsável pelos estados mentais. E não foi o próprio cérebro (o do pesquisador) que eles visaram em suas pesquisas, mas o sistema nervoso de seus pacientes ou de voluntários. Posteriormente se interessariam também por cérebros de animais e até “de máquinas”. Isso definiu outro ponto de vista. Agora se tratava definitivamente de uma visão de “terceira pessoa”.

É, assim, o método indutivo, caracterizado por observações rigorosas e pela decomposição e recomposição destas observações. Traduz a tentativa de se examinar de fora o funcionamento de algo, destrinchar suas partes e reagrupá-las, especulando os mecanismos responsáveis por seu funcionamento.

A conquista da confiança neste método de observação empírica traduziu a reabilitação dos “pré-socráticos”, pensadores acusados pelos platônicos de acreditar mais na opinião que no conhecimento válido. A verdade, segundo Platão, não estaria nas precárias observações feitas pelos sentidos humanos, mas nas suas ideias. Antes disso, os tão criticados pré-socráticos viviam observando os céus à procura de padrões, formulando hipóteses sobre a constituição do mundo. Hoje em dia este método voltou a prevalecer, foi reabilitado.

Por isso, muitos consideram Tales de Mileto (624-556 a.C.) como o verdadeiro fundador da ciência. Em época em que o misticismo imperava, Tales defendeu que o mundo evoluía por processos naturais. Embora sua tese mais conhecida (a que considerava a água como princípio de tudo) estivesse errada, seus princípios metodológicos eram corretos e deram impulso ao desenvolvimento da filosofia e da ciência, voltadas a partir de então para a busca de causas e efeitos. O método científico só se definiria muito tempo depois, já no século XVII. Entretanto, desde a civilização grega, a humanidade passou a procurar suas respostas com alguma metodologia.

Tales, Sócrates, Platão e Aristóteles fizeram parte de um grupo notável de pensadores que desenvolveram um modo diferente de ver as coisas e acabaram moldando a cultura ocidental. Deixaram o exemplo daqueles que não se intimidam diante das questões difíceis.

O livro “A Consciência – Uma viagem pelo cérebro” é a história de uma destas questões. Trata-se daquela que desafiou os gregos e a maioria dos filósofos e cientistas desde então e continua sendo um dos assuntos mais complexos da humanidade. Com todo seu mistério e fascínio, o nosso tema é a consciência.

Sabemos o que é a consciência, convivemos com ela o dia inteiro, mas os desafios para compreendê-la são enormes, a começar pelo próprio significado do termo. É esta coisa estranha que parece nos envolver, que nasce ao acordarmos, desaparece ao dormirmos e surge novamente majestosa na manhã seguinte, como se nunca se tivesse esvaído. A consciência permite um amplo contato com o meio, iluminando o ambiente em que estamos submersos, trazendo noções, definindo o momento e o local.

Reflete também a parte mais pessoal de cada um, aquela que carrega a identificação de si próprio, de sua essência. É a sensibilidade dos próprios prazeres, dores, alegrias e tristezas. É a ciência de estar vivo e de não ser fulano, nem beltrano, mas de ser “eu” mesmo, com nome e história. É inclusive a certeza de poder pensar e falar sobre si, de perceber que se está consciente.

A consciência nos forja como pessoas. Toda noção mais consistente que temos do mundo e de nós mesmos nos foi trazida pela vida consciente. Foi assim que conhecemos lugares, pessoas e situações, que aprendemos a língua, os costumes e as regras. Nossas ações conscientes nos trouxeram comida, proteção, parceiros, filhos, amigos, inimigos. Escreveram nossa biografia. Vivemos cada minuto acompanhados de nossas emoções conscientes, carregados de coragem ou medo, de orgulho ou vergonha, de amor ou desamor. Construímos, enfim, uma memória de tudo isto. No fim de tudo, somos nossas consciências.

Quando surgiu esta coisa, a consciência, aqui na Terra? Como surgiu em mim e em você? Como funciona?

A investigação de questões tão complicadas nos remete a outros problemas, tão complexos como o original. Não há como abordar a consciência sem explorar suas conexões com a evolução das espécies e, mais ainda, com as origens da vida, da Terra e do próprio Universo. É preciso recordar princípios de física, química, fisiologia humana e anatomia comparada. Para complicar, deve-se ainda criticar o próprio método, verificando suas possibilidades e limitações.

É uma procura com riscos. Ao repensarmos algumas de nossas convicções antigas, aventuramo-nos a abalar alicerces, a sair da zona de conforto. A descoberta de novos conceitos sempre se traduz em crescimento pessoal, mas traz o preço da violação da inocência.

Muitos filósofos de hoje veem a consciência como o último grande mistério da humanidade e alguns continuam considerando-o inexpugnável. Nós vamos nos alinhar com o outro grupo, aquele que procura indícios de como surgiu este tipo de milagre. Vamos tentar explorá-la com delicadeza, aproveitando a trilha aberta até aqui. Vamos espiá-la por dentro e tentar achar um jeito de observá-la por fora. Talvez seja até possível fazer uma espécie de ponte, acoplando o rigoroso método científico às tantas introspecções feitas pelos filósofos pelos séculos afora.

 (Texto extraído do Livro “A Consciência – Uma viagem pelo cérebro” – Ronald Moura Fiuza)

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