Se o caminhão de lixo não tivesse atrasado (David)

SE O CAMINHÃO DE LIXO NÃO TIVESSE ATRASADO

David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras

“POR DEUS! Por que estes bostas ainda não passaram? O dia já está claro, o mormaço encalacra até a alma. E os canalhas ainda não passaram. O suor está colando.”
Carolino referia-se ao caminhão de lixo. Acordava sempre às cinco horas e ficava à espreita da caçamba, que passava exatamente às seis, batendo os ferros e a lataria. Então, satisfeito, levantava-se, estirava os músculos e começava a rotina. Esquentava a água para o café, cortava quatro fatias de pão caseiro, passava manteiga e metia-as embornal adentro. Há anos vivia sozinho. Perdera filhos e também a mulher. O álcool fizera a sua desgraça. Mas, agora, não mais bebia. O médico dissera: “Pare, ou prepare o paletó de madeira”. Nunca mais colocou um gota de álcool na boca.
Mirou o relógio: dez minutos de atraso o maldito caminhão de lixo. O dia não começara bem. Pulou da cama, o mormaço já molhando o reguinho da bunda. Vestiu-se: um jeans encourado de tão sujo. Botou a água na chaleira, cortou os pedações de pão, cobriu-os com uma espessa camada de manteiga. Tomou café apressado. E saiu, o embornal a tiracolo. Pouco movimento na rua.
Ao passar o portão, na verdade um corredor tortuoso obscuro, ouviu a caçamba de lixo cruzando a esquina próxima. E os lixeiros, de macacão amarelo, luvas grossas, catavam rapidamente os sacos de lixo. “Estão atrasados, os idiotas” – confirmou, emputecido, sem saber por quê.
Foi então que Carolino percebeu um miado fraquinho de gato vindo de um monte de sacos de lixo. “Mas que coisa estranha”, pensou. “Parece choro de criança nova!” Receoso, abriu o primeiro saco, o segundo, o terceiro. E nada. Fedia. Já estava desistindo. Até que abriu um que estava debaixo de todos, rente ao muro.
“Ah, por Deus! Mas que coisa!” – exclamou, boquiaberto e os olhos esbugalhados.
Ainda coberto de sangue e placenta, enrolado na camisa da Seleção Brasileira, o recém-nascido soltava um miado fraquinho de fome desespero. Carolino apanhou, sem jeito, as mãos calosas de pedreiro trêmulas, o bebê. Naquele instante o caminhão de lixo apontou na rua. Então, o pedreiro, amargurado, que amanhecia todos os dias com a cara amarrada, sorriu por inteiro – um sorriso largo, inocente, onde se viam as falhas dos dentes. Os olhos brilhavam.
Com a ajuda da vizinhança, deu banho com água morna, alimentou-o e enrolou-o numa toalha limpinha. Os lixeiros olhavam o bebê, assustados.
“Se o lixeiro não tivesse atrasado, essa criança estaria esmigalhada no caminhão de lixo” – disse depois à polícia.
“Vejam: é ma menina!”
Em seguida, Carolino procurou um hospital. Na delegacia, o Major havia dito: “É comum encontrar fetos jogados em esgotos. Mas, meu Deus, um recém-nascido, não!”
Voltando para casa, o pedreiro Carolino, num ônibus lotado – a criança ficara no hospital -, ouvia as pessoas comentando:
“Hoje o Brasil joga contra a Suécia. O trânsito está infernal. Vai ser um jogão. Bebeto e Romário vão arrasar!”
Lembrou-se de que o bebê estava enrolado numa camisa da Seleção Brasileira. E surgiu-lhe, de supetão, o nome da criança.
“Vitória! Sim, ela se chamará Vitória. E jamais saberá que a encontrei num caminhão de lixo.”
E pensou, horrorizado: “Ah, meu Deus, se o caminhão de lixo não tivesse atrasado…”

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