Simone Gehrke – Discurso de posse

Boa noite.

Quero saudar

  • Roque Antônio Mattei, secretário de Educação, e em seu nome todas as autoridades citadas;
  • Milton Maciel, presidente da Academia Joinvilense de Letras;

Carlos Adauto Vieira, incentivador para a participação nesta Academia desde o primeiro momento e Nelci Terezinha Seibel, minha anfitriã nesta noite  e em seus nomes todos os demais colegas da AJL que me receberam com tanto carinho;

  • Meus pais, que sempre estiveram comigo nos momentos mais importantes da minha vida, e viajaram 600 quilômetros para participar desta cerimônia;

Tem um pensamento de Ítalo Calvino, no ensaio “Seis Propostas para o próximo milênio”, que muito me fascina e gostaria de reproduzi-lo, não exatamente com as mesmas palavras: Que invenção fantástica é o alfabeto e que riqueza tem proporcionado à evolução humana. São apenas 26 letras que se combinam, criando palavras e organizando ideias capazes de vencer as barreiras do tempo e do espaço; colocando o homem do passado, com suas reflexões, em contato direto com o homem do presente e do futuro.

Desde os primórdios da humanidade, nossa espécie mantém o costume de ouvir e contar  histórias.

O israelense Yuval Noah Harari, um dos autores de não-ficção mais reverenciados da atualidade–que combina em seus ensaios ciência, história e biologia – é um dos grandes defensores do poder que as histórias têm para influenciar os destinos do ser humano ao longo dos séculos.

Emseu mais recente livro, Homo Deus, uma Breve História do Amanhã, ele escreve: “Animais como os lobos e os chimpanzés vivem numa realidade dupla. Por um lado estão familiarizados com entidades objetivas externas, como árvores, rochas e rios. Por outro, estão cientes de experiências subjetivas que ocorrem dentro deles, como medo, satisfação e desejo. Os sapiens, em contrapartida, vivem numa realidade com três camadas. Em acréscimo a árvores, rios, medos e desejos, o mundo Sapiens também contém histórias sobre dinheiro, deuses, nações e corporações. Com o desenrolar da história, cresce o impacto de deuses, nações e corporações em detrimento de rios, medos e desejos.”

Pois foi na tradição oral das histórias que começou minha paixão pelas palavras.Tomei gosto pelo produto da leitura bem antes de esboçar qualquer domínio sobre a forma de dispor as letras para formar as primeiras palavras. Aprendi a ler de ouvido escutando histórias da vida, contos populares e as muito bem produzidas historinhas da coleção Disquinho. Ouvia A Festa no Céu, O Macaco e a Velha, O casamento da Dona Baratinha, A Formiguinha e a Neve enquanto meus pais, pacientemente,projetavam em slides no ambiente escuro da sala os desenhos correspondentes a cada fase do enredo,fazendo a diversão do cinema em casa que era possível nos anos 70.

Um dos contos orais que marcaram minha infância falava de uma menina que passava seus dias na beira da praia, recolhendo as estrelas do mar que as ondas deixavam sobre a areia. Reunia-as em um pequeno balde, para depois devolvê-las ao oceano.

Curioso, um adulto que a observava  perguntou porque fazia  aquilo. Ela explicou que tinha a missão de salvar as estrelinhas. Perplexo com a dimensão da tarefa a que a menina se propunha, o homem, com delicadeza, procurou explicar o tamanho da costa, mostrando que a proporção de estrelas que a menina poderia recolher na areia seria irrelevante.

A menina escutou com atenção, e quando o homem concluiu seu raciocínio falou:

– Eu sei que não vou salvar a maioria das estrelas que existem no mundo. Mas para estas, que devolvi ao mar, eu fiz a diferença.

Aprendi que era possível fazer a diferença com as palavras quando tinha 15 anos, e a publicação de uma poesia na Revista Família Cristã (acompanhada do endereço, como era costume na época) resultou no recebimento de mais de 30 correspondências de presidiários, indicando que o texto havia provocado uma profunda reflexão sobre o peso de suas escolhas.

Fazer a diferença com as palavras foi a missão a que me propus quando, aos 17 anos, decidi pelo vestibular de jornalismo –  opção  embasada na paixão pela leitura, iniciada na infância, e no gosto pela escrita, descoberto na adolescência.

Percebi, com o passar dos anos, que viver em torno das palavras é uma forma de ser ponte. Pontes são instrumentos de passagem, que ligam dois pontos separados por obstáculos e surgem com o firme propósito de transformar realidades. Dizem que os lados unidos por uma ponte têm sua narrativa dividida em duas partes: o antes e o depois da existência deste marco.

Dentre as palavras, quis habitar ideias, que são livres, leves e proporcionam uma vida rica em emoções, com autonomia para transitar entre o passado, o presente e o futuro.

Ideias não envelhecem –evoluem, ficam maduras e transformam-se, agregando nuances para que se ajustem ou contestem o que delas se espera a cada momento.

Pouco depois da opção de viver das palavras e ter ideias como morada,  tive de escolher um jardim adequado para semeá-las.

Cheguei a Joinville em 1992,  depois de formada em Comunicação Social – com habilitação em Jornalismo pela PUC/RS ejá tendo atuado em rádio, televisão, jornal e revista gaúchos.

Faz algum tempo que, quando me perguntam sobre a naturalidade, respondo que sou joinvilense (para mais tarde, no decorrer da conversa, esclarecer que é por adoção).

Já vivi mais tempo da minha vida aqui do que em Porto Alegre, onde nasci. Em Joinville, encontrei o ambiente ideal para ter e criar meus filhos, consolidar minha atividade profissional na comunicação corporativa e dar vazão ao meu vício de cronista – iniciado há 6 anos no Jornal A Notícia. (Antes disso,  a maioria dos textos eram de cunho profissional ou aventuras de vez em quandária sem pequenos textos literários).

Aliás, o jornal A Notícia – onde escrevo crônicas  sempre às terças desde outubro de  2011 – foi também meu primeiro emprego em Joinville, como repórter. Um ano depois passei a integrar a equipe da recém-criada EDM Logos Comunicação Corporativa, onde estou há 24 anos, hoje como Diretora Executiva.

A imortalidade é o aspecto que mais chama a atenção das pessoas quando se fala em integrar uma Academia de Letras.

Isto me faz lembrar de uma entrevista  com  Pilar Del Rio, viúva de José Saramago. Quando perguntada sobre como era conviver com a obra do romancista português sem mais tê-lo ao seu lado, Pilar disse:  “A vida é continuar uns aos outros. Hoje estamos uns, amanhã estamos outros. E assim vamos nos continuando.”

É isso o que fazemos em uma Academia de Letras. Damos continuidade a outros que, antes de nós, tornaram-se imortais pelo bom uso que fizeram das palavras.

A cadeira de número 6, até junho deste ano, foi ocupada por  Lucinda Clarita Boehm, uma das 14 sócias- fundadoras da Academia Joinvilense de Letras, em 1969.

Lucinda era Advogada, Mestre em Língua Inglesa e Literatura e Doutora em Direito – com a tese “Uma Análise Crítica do discurso jurídico: os sentidos implícitos na linguagem dos livros didáticos de introdução ao direito” -,  que deu origem ao seu livro, com o mesmo título. Atuava no escritório modelo de assessoria jurídica da Univille – que ajudou a fundar – quando faleceu, depois de 84 anos muito bem vividos.

Não tive o privilégio de conviver com Lucinda, mas soube que dividia com ela não só a paixão pelas Letrascomo um espaço em A Notícia. Lucinda foi colunista social na década de 50, sob o pseudônimo de “Luciene”. Naquela época, frequentava as festas e os eventos, gravava as informações na memória e escrevia depois em casa.

Espero ultrapassar os 80 anos com a vitalidade de Lucinda, e, como ela, ter o privilégio de continuar ocupando os meus dias de trabalho e vício literário com aquilo que gosto.

O patrono escolhido por Lucinda para esta  cadeira esteve na origem do Kolonie-Zeitung, o segundo mais antigo jornal em língua alemã do País, que circulou em Joinville por mais de 80 anos. Trata-se do tipógrafo alemão Carl Wilhelm Boehm, convocado por Ottokar Doerffel a se transferir para a Colônia Dona Francisca, em 1862, para  operar as máquinas do Kolonie Zeitung. Em 20 de dezembro do mesmo ano, a primeira edição do jornal foi impressa pelas mãos do tipógrafo Carl.

Dez anos mais tarde, a direção do jornal passou de Ottokar para Carl Boehm e depois de sua morte, permaneceu aos cuidados da viúva, Alvine e do filho Otto.

Lucinda (e Carl) – que apesar do mesmo sobrenome não têm qualquer grau de parentesco – não estão mais aqui. Mas todos nós, que neste momento ocupamos uma cadeira da Academia Joinvilense de Letras temos nossa parcela de responsabilidade em estimular a paixão pela língua e pelas histórias que se contam a partir dela.

Acredito que o tipo de literatura que agrada a cada indivíduo é algo muito subjetivo, uma questão de gosto, que como nos ensina a sabedoria popular, não deve ser discutido.

Aprecio a abordagem feita  pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul no vestibular de 2014, quando estabeleceu como tema da redação uma dissertação sobre um livro que os candidatos considerassem umclássico da literatura.

Naquele momento, uma das mais respeitadas entidades de ensino superior do país admitiu que clássico poderia ser qualquer livro que tivesse feito a diferença na vida daqueles estudantes.

Prezo a escrita e a leitura como prazer e entendo que é missão de cada um dos membros desta academia contribuir para que mais pessoas encontrem satisfação ao escrever e descubram (e se encantem) com os seus próprios clássicos.

Muito obrigada.

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