? “Teu sorriso me dá ódio” de Hilton Görresen

Há palavras e olhares que ferem mais do que uma punhalada. E ficam incrustados mais tempo em nosso íntimo. Quando informei que iria fazer concurso para um órgão público, Donato deu uma risadinha de lado, como a dizer “nem tente!”. Ele já era funcionário do órgão há uns dois anos, havia sido aprovado “brilhantemente” no concurso. A alusão à minha incompetência, que havia lido nas entrelinhas de seu sorriso, fez com que eu me dedicasse aos estudos. Passava as tardes de calor em cima de apostilas. O sol brilhando lá fora, a maré cheia explodindo na praia em ondas leitosas, e eu na porra das apostilas.

A parte positiva disso foi que consegui aprovação: trabalho na mesma repartição que ele. Mas apesar de meu sucesso, aquela mostra de desprezo continuou se agitando em meu cérebro, queimando levemente como fogo brando. Em tudo que Donato falava passei a ver ocultas intenções. Odiava vê-lo pendurado na mesa do chefe, quem sabe maquinando traições aos colegas, pavimentando seu caminho para breve promoção.

A estrada para promoção, pelo menos ali, não era fácil: o candidato precisava “mostrar serviço”, extrapolar horários, conhecer as normas, cultivar iniciativas e, muitas vezes, entregar os colegas. Donato encarou tudo isso. Tornou-se especialista na intrincada contabilidade do órgão. Eram contas e suas infindas subcontas, como o delta de um rio a se espraiar em pequenos afluentes, a agasalhar as mais ínfimas operações. O chefe, com preguiça de consultar o enorme alfarrábio que especificava os lançamentos contábeis, apelava para ele. Donato abria o grosso volume e ia na página certa, cerrando os olhos de satisfação. Ninguém tinha dúvidas: a próxima promoção seria a dele.

Era um sujeito alto, ossudo, o rosto comprido; usava ridículos óculos de hastes grossas, malhadas. Vinha à repartição de terno, gravata (descombinando com a roupa) e sapatos pretos de couro.

Eu me envergonhava do inevitável ódio que sentia, e que cada vez aumentava em meu peito, pesava como um saco de areia; evitava demonstrá-lo aos outros e, principalmente, a ele. Quanto mais crescia meu ódio, mais procurava disfarçá-lo, por muito que eu me percebesse como um hipócrita: tratava-o com deferência, não recusava os favores que me pedia. Ninguém percebia meu sorriso duro, travado, o descontrole emocional do queixo.

Donato abusava de minha suposta amizade, utilizava meus préstimos como se já fosse chefe.

– Elpídio, me traga a pasta dos bancos!

– Elpídio, peça ao chefe para assinar esta requisição!

E eu continuava ouvindo a mesma risadinha oblíqua; parecia engastada em seus lábios, onde somente eu a percebia.

Ele manipulava documentos importantes. Recibos, orçamentos, projetos, ordens que vinham de cima, cujo extravio certamente significaria terríveis complicações.

Foi nisso que me apeguei para prejudicá-lo. Não suportava a ideia de sua possível promoção, eu a via como uma derrota pessoal, uma humilhação. Ademais – eu bem o conhecia –, era do tipo que se ajoelhava aos pés dos superiores e desprezava os subordinados.

Um dia, aproveitando um momento de sua ausência, surripiei um documento de sua mesa. Quando voltou, apreciei sua angústia ao revirar os papéis. Abria gavetas, olhava debaixo da mesa, consultou os colegas que trabalhavam mais próximo. Foram encontrar o bendito papel na pia do banheiro. O chefe não fez boa cara.

Não fiquei só nisso. A cada vez que ele saía ou se distraía, agarrava disfarçadamente algum documento importante. Donato se exasperava, coçava a cabeça, chegava a desalinhar os cabelos bem penteados. Os papéis eram encontrados nos lugares mais estranhos, atrás de armários, debaixo de mesas e até fora do balcão de atendimento ao público. Tinha o cuidado de deixá-los nos locais em que ele havia estado antes.

Depois dos primeiros extravios, espacei um pouco minha ação. Quando ele menos esperava, nhoc!

O chefe recomendou-lhe maior atenção ao serviço; se continuasse assim, teria que informar à diretoria, e isso não era bom, poderia ser alocado em outra repartição, menos importante. Os colegas caçoavam, faziam piadas por detrás dele; depois chegaram a temer pela sua sanidade mental. Vivia com os cabelos revoltos, o olhar distante, como quem revolve a mente procurando algo perdido. O chefe já não tinha mais confiança nele, foi retirando os serviços mais importantes; já não o consultava sobre as verbas contábeis. A esperada promoção foi para o espaço.

Um dia se trancou no banheiro, a cabeça rodopiando, o coração pulsando descompassado, dor incômoda no peito; achou que ia desabar no chão, cair morto ali mesmo. Saiu dali pálido, trêmulo, apoiando-se em mesas e cadeiras.

Depois disso, Donato pediu férias e posterior transferência para outra cidade. Mesmo assim, seu enviesado sorriso de desprezo continuou atravancando minha alma.

(Conto extraído do livro “Por que matei Rocky Lane? e outros contos”)

 

COMPARTILHE: