Trilhos de ferro (Alessandro)

Trilhos de ferro                              Por Alessandro José Machado

 

A época remetia ao final dos anos 70 e início dos anos 80. Família de militar, acostumada a juntar as tralhas e mudar de cidade em cidade, de acordo com a necessidade do serviço de papai.

Vínhamos da distante Santarém, no norte do Brasil, onde a missão era na floresta amazônica, como topógrafo do Exército Brasileiro. Agora, após 7 anos de sacrifícios, em uma escala de três meses na selva por uma semana em casa, meu pai teve o privilégio de ir para o sul, servir na então nominada de cidade universitária, a gélida Curitiba.

Após um ano de aluguel na cidade, a duras penas a família conseguiu financiar uma casa nos arredores, dentro da região metropolitana, a distante Pinhais, hoje município, mas na época um bairro da cidade de Piraquara.

Era quase um sítio. Uma vila na verdade. A Vila Amélia. Nossos rivais de infância e adolescência moravam do outro lado dos trilhos, na Vila Maria Antonieta.

Trilhos de ferro, com uma enorme cancela que cortava a estrada, pouco antes do nosso ponto de ônibus, onde descíamos e com as pastas e materiais na mão e corríamos pela poeira antes do trem passar. Blem, blem, blem, blem, lá vem a buzina e uma salva de sinais luminosos que nos faziam correm ainda mais, passando antes que a cancela baixasse. Sempre tinha um amiguinho que estafermo, ficava do outro lado.

A primeira noite na Vila foi assustadora. No quarto, que dividia com o irmão mais novo, as sombras que bruxuleavam através da janela descortinada nos fazia tremer os ossos. E foi assim quase uma semana, até que papai nos mostrou que era apenas a sombra das bananeiras cujas folhas ondulavam ao vento. Até que às 3 horas da manhã, soava o apito do trem com força total. No escuro, ficávamos imaginando quantos vagões tinham, e pela experiência que veio com o tempo, de tantas contagens ao lado dos trilhos, era só memorizar os segundos do tempo que ele levava para passar e dividir por dois. Sempre mais de trinta, menos quando era a litorina que ia para Paranaguá, que passava às 06 horas da matina, repleta de passageiros, em sua maioria trabalhadores, que de perto, nos anos do meu ginasial, via da parada de ônibus, esperando a condução para o colégio.

Adejam memórias sobre os trilhos de ferro. Algumas tristes, como a perda da mãe do Dimas, atropelada pelo trem. Muitas pessoas não entendem como alguém pode ser atropelado por um trem, com aquele apito ensurdecedor e a campainha como alarme junto à cancela. Na verdade, o hábito de se morar ao lado de ferrovia nos faz esquecer que ali passa o trem, nos faz não ouvir mais aquele barulho, especialmente quanto absorto em pensamentos. Foram muitas vítimas, e a voz de minha mãe gritando para não irmos lá ver, pois não era cena para criança e não dormiríamos à noite.

Dentre as muitas manias e brincadeiras, além de contar vagões, e desafiar os colegas a dizer o que significava a sigla RFFSA, seguíamos o carreiro pelo mato até onde a trilha atravessava os trilhos, e ao ouvir a buzina, colocávamos britas para vê-las esmagadas e até moedas, para pegar depois apenas uma chapinha fina com inscrições oficiais. Coletávamos pregos enormes, que os trabalhadores usavam para prender os dormentes e com eles fazíamos luzir a criatividade para projetar os mais diversos tipos de brinquedos. Mas a mania mais mortal, daquelas que desafiava a destreza do anjo da guarda, era a carona na cauda do trem. Era para poucos argutos, ou seriam mesmo imprudentes, usando de toda sagacidade inconsequente da juventude, onde a máquina de ferro embalava na reta do jardim triângulo, esperando a curva da bica, quando a velocidade baixava devido a enorme quantidade de vagões carregados em direção ao Porto de Paranaguá, e saltavam para rolar na vegetação lamacenta que tinha no entorno. As escoriações eram generalizadas, e voltavam com o corpo todo lambido pelas touceiras do capim elefante.

Hoje, passados 40 anos, morando no Bairro Atiradores em Joinvile, ainda ouço o barulho do trem de madrugada, cerro os olhos e fico procurando as sombras bruxuleantes, na esperança de meu pai vir, me acalmar e dizer que são apenas folhas de bananeiras ao vento.

 

 

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