O cuidador de velhos (David)

O cuidador de velhos

Estava, naquele tempo, roendo ossos. Na miséria, cheio de dívidas. Abandonara a Universidade, os bolsos vazios, e o álcool roía-me o estômago. Curitiba parecia povoada de fantasmas.

Então, pelo mês de agosto, o telefonema de um primo que morava em São Paulo: “Olha, sei que você está precisando. Lá, em Quadrínculo, precisa-se de um cuidador de idoso… Paga-se bem.” Enquanto atendia o celular, ratos e baratas corriam pelo quarto sujo. Aceitei. Afinal, eu tinha que fazer alguma coisa.

Para lá me mandei. Era um fazendeiro, um tal de Arthurzão. Morava só num casarão no pé da serra, entre dois morros redondos, no meio do nada. Na cidade já me informaram: homem insuportável, estúrdio, exigente, metido a bravatas. Ninguém o suportava. Os enfermeiros eram tratados como cachorros e, às vezes, espancados.

Chovia muito quando, de táxi, achei-o na varanda da casa velha numa cadeira desconfortável. Achava-me preparado para os destratos, mas ele não me recebeu com pedradas. Me olhou com dois olhos de gato e, depois, um riso torto formou-se em seus lábios debaixo do bigode branco.

– Você também rouba? – perguntou, encarando-me.

– Não tenho esse hábito – retruquei.

Ah, então está bom, por que os anteriores eram gatunos, e ele havia espancado com um porrete de grevira. Meu nome? Valêncio, eu disse, ainda segurando a mochila nas mãos, já no varandão. Se acomode, e foi mostrar o meu quarto, mancando.

Estava muito mal, contou-me. Um rosário de moléstias. Padecia de reumatismo crônico, pressão alta, próstata e de um aneurisma recente. Passava dos setenta anos, a mulher morrera e os dois filhos estavam fora do país – um nos Estados Unidos e outro na Austrália e, há cinco anos, ele não recebia notícias. Pelo que me contou, percebi que ele, desde criança, fora um protegido, todo mundo lhe fazendo as vontades. Estava doente, rabugento, mas se deleitava com o sofrimento e a humilhação dos outros. Por isso, espancava os enfermeiros. Comigo, não! – eu lhe torço o pescoço, pensei.

Aguentei três meses. Eu precisava daquele dinheiro. De manhã à noite, maus-tratos. Mas, quando ele, por prazer, soltou os dois cachorros pit bull e os atiçou, e me vi sendo abocanhado nas canelas pelos monstros, e ele rindo, rindo, saltitando como se dançasse uma ciranda, resolvi partir, com as canelas enfaixadas. Estava farto de o aturar. Mas ele entrou no meu quarto sorrateiro implorando que ficasse, que perdoasse sua rabugice e loucura, que logo morreria… Resolvi tolerá-lo por uns dias.

Era birrento. Jogava os remédios nas paredes, quebrando os copos de vidro com água. Depois de meia dúzia de copos quebrados, achei uma caneca de alumínio e ela já se achava bem amassada, de tanto que ele jogava nas paredes. Eu já não era Valêncio, mas burro, girafa, porco, camelo, asno, sucuri, cascavel, idiota, mula sem cabeça… Eu nem ligava. O que me deixava maluco era a falta de informação. Não havia internet, sinal de celular, o velho quebrara a televisão com o porrete porque não concordara com o apresentador, espatifara o rádio e os vizinhos moravam a léguas, e os amigos simplesmente haviam desaparecido. Eu ficava, aos poucos, ansioso e neurótico. Uma preta velha vinha uma vez por semana lavar as roupas e varrer a casa. Também era destratada e humilhada. Ela se defendia, benzendo-se: “Sai, sinhô diabu!” Tinha as pernas gordas marcadas com duas bocarras dos pit bull.

Arthurzão raramente se mostrava piedoso. A doença o roía feito soda. Em mim, a paciência se esgotara. Só havia um fermento de ódio e aversão. Eu o segurava para não explodir. Mas era uma questão de gota d’água. E ela chegou numa noite de dezembro, quase às vésperas de Natal. Á noite, fui levar-lhe na cama um prato de mingau com galinha ensopada e ele começou a me xingar de todos os nomes hediondos. Dei as costas e saí, enfurecido. Meia hora depois, levei as seis pílulas e a caneca de alumínio amassada, ele esbravejou, jogou tudo nas paredes e me xingou – gatuno, ladrão, mão de gato, asno, burro, camelo, idiota, vadio, traíra… Jogou o prato de mingau com galinha ensopada e me acertou no rosto, e começou a rir, a rir, a rir. Então, a cegueira me tomou: avancei sobre seu pescoço e fui apertando, apertando, os braços e pernas dele sacudindo-se, mas eu apertava mais, mais, mais, até que ele expirou. Recuei assustado. Corri para a sala, depois para o meu quarto. Queria dar nos pés o quanto antes. Se fugisse, entretanto, todos saberiam que eu era o assassino. Mais apavorado, voltei ao quarto do morto. Lá estavam as marcas de minhas mãos ao redor do pescoço. Tentei reanimá-lo. Em vão. Voltei à sala e a minha estupidez se agigantava. Em pouco tempo estava febril, delirando e ouvia vozes que vinham do terreiro. Será que ouvia gemido do morto, injúrias, algum sinal de vida? Mas não. Arrependia-me de ter aceito aquele emprego. Apodreceria atrás das grades. Se desse fim ao cadáver? Enterrá-lo no meio das pastagens? Teria que fugir e seria preso. De manhã cedo, antes que a preta velha chegasse para a faxina, eu teria que pedir socorro e avisar a polícia. Era o meu fim. O morto tinha razão: eu não passava de um camelo, um asno, um tanso, um idiota. O fim, o fim, o fim… e dormi de qualquer jeito na poltrona. Sonhei. Demônios me arrastavam e estavam conduzindo-me para uma enorme fogueira no meio de uma praça, e o povo delirava com aplausos. Então, quando estava para ser lançado à fogueira, acordei. Amanhecia. Ouvi passos e tóc-tóc-tóc de muleta pela casa e alguém me chamando rudemente:

– Valêêênnciiooo! Cadê o café? Ainda está dormindo, seu vagabundo!

Não acreditava no que via. Arregalei os olhos. Era o fantasma do velho, mas vivo, andando pela casa à minha caça. Pulei como mola do sofá, o corpo dolorido, enquanto ele me cutucava com a bengala. Era impossível. Ao redor de seu pescoço, viam-se as marcas de minhas mãos.

– Vá fazer o café, seu moleque!

Não se lembrava do que acontecera. Repetiram-se, durante o dia, todos os xingamentos. Era demais! Minha neurose não precisava de nenhuma gota d’água para explodir. Os nervos estavam em trapos. Os pit bull me olhavam enraivecidos. Até a preta velha me achou estranho. O que tem o sinhorzinho? Nada, respondi. Parece sapo morto.

À noite, quando ele se preparava para dormir, depois de tomar a sopa e engolir as seis pílulas, eu fugi como um ladrão no meio da noite. Nunca mais quis ser cuidador de velhos.

 

David Gonçalves

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