A Lyra de minhas memórias (Apolinário Ternes)

 

A Lyra de minhas memórias

Apolinário Ternes

 

A Sociedade Harmonia-Lyra fez parte de um pedaço feliz, criativo e interativo de minha vida. O casarão da Rua 15 de Novembro está lá desde a década de 1930, construído com muita ousadia por uma elite de Joinville que em duas décadas mudou completamente o cenário da cidade.

Com seus primórdios fincados no alvorecer da cidade, quando os colonos vindos da Alemanha, da Suíça, da Noruega e de muitos outros lugares começaram a construir uma cidade com nítidas feições europeias no meio do mato e ao lado de um rio, a Lyra resulta de duas associações dedicadas à música, ao teatro e ao canto coral.

Sim, os colonos se reuniam para encenações artísticas, para bailes, apresentações de corais e de grupos de teatro. Sim, em língua alemã. Sim, eles cultivavam a cultura, dedicavam tempo ao teatro, organizavam festejos comunitários e desenvolviam uma complexa e sólida fraternidade, fincando os pilares de uma colônia que logo se transformaria numa cidade de expressão e de liderança na área econômica.

Em suas dependências aconteceram eventos de extraordinária magnitude: bailes, discussões políticas, reuniões que acabaram em empreendimentos no comércio, na indústria e nas artes. Casamentos magníficos. Bailes memoráveis. Banquetes oficiais, com ilustres personalidades brasileiras, e não só da política e da economia, mas ainda do universo das artes, recebendo em seus palcos representativos nomes da produção cultural brasileira.

Nasceu na Lyra, em 1936, a primeira exposição de flores e artes, que se repete desde então, ocupando outros lugares na cidade e que deu a Joinville o cognome de Cidade das Flores. Foi na Lyra, igualmente, que artistas locais deram o melhor de seus talentos. Fritz Alt, o escultor que tomava os seus aperitivos sistemáticos por lá, também deixou a marca de seu talento em obras decorativas. Juarez Machado tem nobres e variadas lembranças de sua juventude vividos naquele salão enorme.

Tradicionais famílias uniram os seus sobrenomes nas dependências da sociedade. Meninas da melhor elite tiveram seus bailes de debutantes naquele local. Muitas namoraram, noivaram e casaram por lá. Depois fizeram o mesmo percurso levando filhos e filhas a percorrerem as mesmas emoções no mesmo lugar.

Enfim, não é preciso repetir que a Lyra é uma parte sólida e grande da própria personalidade de Joinville. É uma parte substancial da identidade da cidade. Um lugar meio místico e sagrado que promoveu e contemplou o crescimento da cidade e tem relacionamentos os mais inusitados com boa parte da população. Há 165 anos, especificamente.

Neste contexto, vale dizer que da Lyra tenho as mais agradáveis lembranças e desde muito cedo. Mesmo de família simples, filho de imigrantes que vieram de Tijucas para começar vida nova em Joinville em 1947, nasci eu e outra irmã, em Joinville. Os dois mais velhos da família nasceram ainda em Tijucas.

Joinvilense, portanto, e não tijucano como alguns insistem, minhas experiências na Lyra acontecerem na década de 1960, quando, estudante, participei de grupos de teatro. Fizemos época. O grupo Renascença e outros ajuntamentos de jovens inspirados e perigosos. Teatro nos tempos da ditadura era sinônimo de oposição. Miraci Dereti, Félix Negerbhon e eu, fizemos teatro juntos, encenando peça escrita pelo próprio Dereti. Depois a censura silenciou a todos.

Mas não só de teatro vivemos emoções na Lyra. Sim, ali nos encantamos com os bailes de debutantes anuais. Assistimos a trepidantes peças de teatro vindas de São e do Rio de Janeiro. Concertos musicais. Palestras memoráveis sobre questões da psicologia, da política, da economia. Festas das Flores, posses dos presidentes da Associação Comercial e Industrial e de outras entidades de classe. Formaturas impressionantes. Shows musicais de bandas muito doidas. Grandes músicos e outros mágicos.

Na Lyra, ainda, vivemos inesquecíveis bailes de 31 de dezembro, com centenas de casais metidos em suas melhores fatiotas, todos se abraçando com todos à meia-noite. Grandes celebrações e inúmeros excessos. Finalmente, foi na Lyra que se cumpriu o ritual de casamento de meu filho e foi na Lyra que tomamos posse na Academia Joinvilense de Letras, cuja sede permanece na própria Lyra e cujas reuniões mensais acontecem lá.

Enfim, a Lyra faz parte de pedaços felizes e memoráveis de minha vida. Um lugar cheio de alegria, emoção, beleza e sentimento. De fato, território sagrado para os joinvilenses. Nascidos ou não em Joinville.

Depois de percalços nos tempos modernos, a Lyra encontrou no advogado Álvaro Cauduro um defensor e protetor dos mais persistentes. A luta para manter a sociedade tem sido difícil e se arrasta há mais de uma década.

Manter as instalações quase em permanente processo de restauração e manutenção, sempre com recursos contados, tem sido uma lida de gente heroica. Os tempos atuais são difíceis, especialmente para instituições centenárias. Já não há aportes financeiros de expressão. Os empresários parecem cansados de contribuir em todos os lugares carentes pela omissão das autoridades oficiais e, como todos, também se aborrecem com os gastos perdulários dos governos.

Verbas para a educação e cultura inexistem e, quando criadas, atendem apenas aos afilhados, às comadres e aos compinchas. Assim, manter a Lyra é um desafio a cada dia, cada semana e cada mês. Um desafio que é vencido graças a um punhado de pessoas realmente visionárias e dedicadas que trabalham para preservar uma das instituições mais veneráveis de Joinville.

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