Ac. Fiuza leu “Mais uma luz”,, de Amos Oz

Mais de uma luz –  Amos Oz

Amos Oz era um escritor brilhante. Nascido em Jerusalém em 1939, era ainda criança quando foi fundado o Estado de Israel. Ele confessa ter sido um fanático até a adolescência. Depois mudou. Tornou-se um dos maiores pacifistas e o escritor mais influente de seu país. Que pena que nos deixou, há pouco mais de dois anos.

O livro “Mais de uma luz” é composto de três ensaios. Faço aqui a resenha só do primeiro, por ter ele validade universal. É intitulado “Caro fanático”, uma curta avaliação do que consiste o fanatismo. Curta, mas cirúrgica.

O autor observa que a vida de uma pessoa se transforma no dia em que sente a sua essência sob ameaça. Algo, ou alguém, deixa claro quem o está ameaçando. Ali se cristaliza a imagem de seu pior inimigo. Associada a ela, surge a figura de seu salvador. O fanático passa a viver em um mundo em preto e branco. Só existem mocinhos e bandidos. Ele se convence de que seus fins justificam os meios e passa a travar a sua guerra com todos os outros. Guerreia especialmente os seus contrários, aqueles que acreditam que a própria vida é um fim, não um meio. Na verdade, o fanático é um homem que só sabe contar até 1, como ilustra o autor.

Ente os judeus de Israel é comum ligar o fanatismo ao Islã, mas isto está longe de ser toda a verdade. Amos vê também os judeus fanáticos. A intolerância é mais antiga inclusive que o cristianismo e o judaísmo. Ao longo da história das civilizações vivemos todo tipo de fanatismo, dos genocídios ao jihad, das Cruzadas à Inquisição, dos gulags aos campos de extermínio, das câmaras de gás aos porões de tortura ou aos atentados terroristas.

O fanático é um tipo que não entra em debate. Se ele considera algo como ruim (talvez aos olhos de Deus), ele assume a obrigação de combater a “abominação” com todas as suas forças e armas. Ele segue a sua trilha sem pensar ou objetar, em sua ânsia de pertencer àquele grupo compacto e coeso, que passa a constituir o motivo principal de sua vida. Ali ele se mescla, a ponto de anular sua individualidade. Ele se envolve em um sofisticado sistema de propaganda e lavagem cerebral que visa justamente arrastar a sua alma (infantil) em direção a um corpo forte, que pode ser a nação, a Igreja, o movimento, o partido, a torcida ou o clã. Ele quer amontoar-se na multidão sob as asas do herói admirado, em cujas mãos deposita seus sonhos.

Se algo lhe abre os olhos para o desatino daquele caminho, ele fica aberto a qualquer migalha de argumento que possa reconduzi-lo, que possa salvá-lo do reconhecimento de que foi um idiota. Eles tendem então a seguir quem consegue emocioná-los. Muitas vezes são aqueles que não respeitam as regras, aqueles que atiram pra todo lado. Não importa se o discurso do líder é bizarro, o que vale é “a forma que ele encontrou de nos mostrar o norte”

Aí o fanático mostra sua face pregadora. Ele quer ardentemente mudar o outro, abrir seus olhos. Na verdade, ele continua a amar seu amigo com sinceridade. Por isto mesmo ele tenta, por todos os modos, convencê-lo de seus ideais elevados, a apontar como eles juntos poderiam consertar o mundo e livrar-se dos maus, sejam estes muçulmanos, esquerdistas ou gays. Se não consegue catequizar seu amigo, passa a odiá-lo. E a agredi-lo.

O fanatismo não atinge só os grandes temas, como religião e ideologia. Não é só Al-Qaeda, Estado Islâmico, Hamas, Ku Klux Klan, supremacistas arianos ou brancos. Estes são os conhecidos e temidos. Entretanto, há também o grupo dos fanáticos temáticos, como os antitabagistas, os vegetarianos, os ambientalistas e até os fanáticos antifanáticos (com os quais eu me identifico um pouco).

O autor sugere que a história trágica do nazismo, do comunismo e de diversos golpes de estado deixaram os fanáticos enrustidos por algumas décadas. As novas gerações, entretanto, já não se lembram mais daquelas barbáries e já começam a se arvorar novamente como salvadores da pátria.

Amos conclui sugerindo alternativas para combater o fanatismo. Devemos começar por nós mesmos, que podemos talvez carregar o germe. Depois observar as atitudes de nossos filhos, que podem já estar contaminados. Discutir o tema nas escolas pode dar frutos, onde tentaremos identificar e lidar com os pequenos fanáticos. Ele adverte aos que querem combater o fanatismo: saibam lidar com a fofoca, que é uma arma mortífera. Usem a literatura, que é uma parente da fofoca que pode ser utilizada para o bem. E sempre deem preferência ao humor. Geralmente o fanático não tem senso de humor algum.

A vivência do autor, bem como a sua obra, é calcada em sua incansável luta contra o fanatismo religioso. Amos Oz não viu suas ideias vencerem, mas foi reconhecido como um escritor notável e uma pessoa incomum. Precisa ser mais conhecido entre nós.

O fanatismo religioso, como o que ocorre entre judeus e muçulmanos, é apoiado em dogmas e estes podem levar muito tempo para ser reescritos. Galileu, por exemplo, foi “perdoado” pelo Papa João Paulo II, quase quatro séculos após a sua morte.

Hoje, os gurus têm, na internet, como criar e manter grupos fanáticos com maior facilidade. Com robôs auxiliares, parecem onipresentes. As fofocas são multiplicadas, surgindo como fake news. O momento é favorável a eles. A esperança é que o processo civilizatório tem sempre dado a palavra final ao longo da história.

 

Resenha de Ronald Fiuza

 

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