Ac. Walter Guerreiro leu “Aulas sobre Shakespeare”, de W.H.Auden

 

AULAS SOBRE SHAKESPEARE

 

O que pode ser lido sobre Shakespeare que ainda não tenha sido escrito, considerando como dos maiores escritores e dramaturgo, que produziu toda sua vasta obra no período de vinte anos? Tudo nele subsiste, desde o comportamento histórico individual no período elisabetano, até os significados simbólicos antitéticos. São centenas e centenas de livros e autores discutindo suas obras, e, qual a surpresa ao nos depararmos com uma nova, editada em 2022, pela Editora Âyné.

Cabe aqui um parêntese, uma vez que, essa “pequena” grande editora é pouco conhecida, foi fundada em 2013 e sediada em Belo Horizonte com sua matriz em Veneza, e um nome em si algo incomum, em persa significando espelho, dado por um de seus fundadores, o brasileiro Pedro Fonseca, grande estudioso da literatura persa e que desse modo homenageou o poeta sufi Bidel Abdul-Qader, cuja referência ao espelho é constante, simbolicamente como daquilo que não é visto.

Vejamos, porém o livro “Aulas sobre Shakespeare” de W.H.Auden, através de anotações reconstituídas e editadas por Arthur Kirsch, este, crítico literário, tendo como alma mater Princeton, profundo conhecedor de Shakespeare, Dryden e Auden; conforme Arthur comenta em sua introdução, W.H.Auden resolveu dar um curso sobre Shakespeare na New School for Social Research de New York começando em 1946 e terminando em 1947, em um auditório no Greenwich Village lotado com quinhentos ouvintes. Auden tinha considerável experiência como professor de literatura, ministrou cursos sobre sentido e técnica em poesia e cultura na Inglaterra, contudo, não deixou manuscritos do curso, mas Alan Arson tomou notas precisas, terminando amigo e secretário de Auden; essa a fonte principal de Kirsch, além de anotações de Griffin e outros ouvintes, fato é que as aulas poderiam até ser mais bem ditas: palestras de Auden sobre a obra de Shakespeare, e são as mais notáveis no século XX.

Faz-se necessário pinçar aqui e ali algumas passagens, para aquilatar a importância da análise moderna de Auden, em campos os mais diversos, desde sua aula inaugural sobre “Henrique VI”. Disse ele: – Henry James, numa resenha sobre alguns romances, disse que “sim, estão presentes circunstâncias de interesse, mas, onde está o interesse? A primeira pergunta a fazer: qual é o interesse, o tipo central de excitação que induz um autor a escrever uma obra, ao critério dos estímulos marginais que podem tê-lo divertido no caminho? Na peça de crônica (Henrique VI), que é histórica, não mito ou ficção, o interesse central é a busca de causas e padrões, uma representação não apenas do acontecimento, mas, de sua causa e efeito. E aí Auden aponta que os elisabetanos acreditavam que a tarefa do cronista era determinar as causas, os personagens de Henrique VI estão subordinados à ação, o interesse principal é a natureza do corpo político, daquilo que mantém sua saúde, daquilo que o destrói , trata do colapso da classe dominante que não consegue governar a si mesma. (vê-se a atemporalidade da obra de Shakespeare na profundidade).

Se “Henrique Vi” é um história de caráter geral, “Ricardo III” se concentra em um personagem individual e um caráter: o do vilão, e Auden aponta, há uma diferença entre um vilão e alguém que simplesmente comete um crime. Compara o monólogo de Ricardo III ao discurso de Hitler em 1939, quando este afirmava que não importava se a razão para invadir a Polônia era ou não convincente, e Auden vai além, afirma que os vilões são particularmente interessantes para os artistas, e que há mais exemplos deles na arte do que na vida, analisando através do filósofo existencialista Hunter Guthrie a essência psicológica do Eu, e dos pulos entre essência e existência na consciência excepcional da solidão em Ricardo III, rejeitado por todos.

Na palestra “A comédia dos erros” e em “Os dois cavalheiros de Verona” Auden principia pela natureza do cômico, e vai fundo nas diferenças entre o cômico e a comédia, que, em si, não é particularmente cômica; expõe situações, exemplifica, situa “A comédia dos erros” que, não é inteiramente cômica, se aprofunda com Kieerkegard, e por que não, faz piada que hoje seria politicamente incorreto sobre o perdão, ao dizer que é um nonsense perdoar uma classe de pessoas, os alemães, por exemplo!

A erudição de Auden se torna evidente ao situar “Trabalhos de amor perdidos” como uma das mais perfeitas de Shakespeare, embora não seja a maior delas pelo tema: educação e cultura, ao mostrar que Shakespeare zomba de todo o humanismo neoplatônico e dos costumes cortesãos à época, os comparando aos códigos medievais do amor cortês, e até com a “Flauta mágica” de Mozart, nas tentativas de harmonizar o platonismo de Marsílio Ficino com o misticismo cristão.

Hesito em me alongar, naquilo que seria um comentário e se transforma numa resenha, com o perigo evidente de virar um ensaio, ultrapassando a paciência dos leitores, todavia, a riqueza da obra de Shakespeare sob a luz de Auden impele a dizer mais e mais. A luz que lança sobre a tragédia antiga, a dos romanos, comparando com a dos elisabetanos, como em “Romeu e Julieta,” ao fazer distinção clara entre paixão e amor nos dois momentos históricos, os comparando inclusive com a de Beatrice e Dante na Divina Comédia, e mais, nos seus “Sonetos,” quando Auden expõe o íntimo de Shakespeare, e o desejo do espírito entra em conflito com a exigência da natureza.

Deixarei à curiosidade dos leitores as palavras de Auden sobre as mais famosas obras de Shakespeare, tão citadas e alvo de representações e versões em outras formas de linguagem, e, apenas como exemplo, ao comentar sobre “A Tempestade” disse que o autor inicia com uma longa narrativa expositiva de Próspero, ao invés da ação dando lugar à palavra, e afirmando que Shakespeare escreveu um mito comparável aos grandes mitos do período cristão: Fausto, Dom Quixote, Don Juan, na época moderna a Sherlock Holmes e as tiras de quadrinhos de Lil’Abner. Não é o único momento que Auden vislumbra a presença dos mitos, aponta em “Sonhos de uma noite de verão” o relacionamento entre homem e natureza, com a antropomorfização desta, em “Rei Lear,” com a figura mítica do rei enfrentando a tempestade, que não é o macrocosmo da paixão interior, porém o papel do pai na sociedade.

A riqueza das palestras fica mais do que evidente em suas citações e interpretações que vão de Chaucer a T.S.Elliot, de Lao-Tsé a Nietszche, de Freud a Kieekegard, particularmente este filósofo e psicólogo, que irá como amigo exercer papel central em sua vida. E mais, graças às notas de rodapé na edição, poderá nos aprofundar nos autores citados por Auden de acordo com o interesse individual, eu, por exemplo, irei de imediato à “Imagística de Shakespeare e do que ela nos fala” de Carolina Spurgeon, pela riqueza no exame detalhado das imagens, por exemplo, ao Shakespeare usar os temperos simples, do dia-a-dia como corretivo das ações dos personagens, “teu espírito, diz Mercúcio a Romeu, é molho muito picante”.

Nas palavras de Auden o que quer Shakespeare: ele está erguendo um espelho diante da natureza… e para poder continuar a existir sob qualquer forma, a arte deve dar prazer.

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