Adeus e boa sorte (David)

ADEUS E BOA SORTE [conto]

David Gonçalves

Partículas de pó e de fibras de algodão dançavam no mormaço da tarde. Carretas carregadas de fardos chegavam, manobravam e descarregavam, depois iam embora, e no ar abafado ficava o zunido dos descaroçadores de algodão expelindo delgadas e finíssimas fibras flutuantes no mormaço.
Da varanda, Elisa olhava o vai e vem dos caminhões e tratores, sentada na cadeira de descanso, e sondava o marido indo e vindo, atarefado, dando ordens, suado e coberto de fibras brancas. Teria que dizer algo para ele. Mas não sabia como.
As duas filhas brincavam no pátio. A mais velha, de cinco anos, tentava pegar as fibras de algodão que flutuavam, e a mais nova, de apenas três anos, tentava imitá-la. Corriam, riam, gritavam.
“Chispa daqui”, ordenava Alonso, o pai. “Podem ser esmagadas por um rodado dos caminhões”. Elas, suadas e cobertas de poeira grudenta, sequer ouviam.
O que dizer a elas? Teria coragem, enfim? Elisa sentia o coração amargurar-se, as fibras retorcendo, e as batidas no peito doíam. Estou sendo egoísta, começou a punir-se. Mas o que sentia era mais forte.
. . .
Naquela manhã, quando Elisa preparava as filhas para o ônibus escolar, ela ouviu a voz tão esperada, que vinha do pátio. Foi tomada por uma ansiedade abrupta. Mal se conteve. Quis correr ao pátio, como qualquer adolescente. Mas se conteve, sentindo-se um pouco tonta.
O comprador de algodão, da firma Fibras de Ouro, cumprimentava os trabalhadores, voz tonitruante, com voz adocicada, firme. Então, seu Zeca, como vai? Oh, seu Osório, já se livrou daquela dor nas costas? Bom dia, seu Juca, como vão os pivetes? Eia, seu Rosalvo, e os ponteios da viola? Vai ter festança no final da colheita? Elisa ouvia e seus lábios carnudos curvavam-se para cima num sorriso tolo, brejeiro. Ah, seu Alonso, que colheita, hem! A maior da região. Algodoal sem igual. Mas ela não ouvia a voz do marido. Só a do comprador. A dona Elisa passa bem? E as crianças? As vozes foram sufocadas pelos motores dos descaroçadores de algodão.
“Elisa” – ouviu o marido gritar-lhe do pátio. “Aumente o caldo no feijão. Temos visita.”
Ao servir o almoço, as mãos tremiam. Derrubou uns talheres no piso. Os homens, mesmo comendo, falavam sobre a safra, os preços, a grande seca na Índia. Preços, prazos, custos. Sabe, seu Alonso, queremos fechar a safra cheia. Ninguém bate o nosso peço. Com a gente, não há riscos. A firma Ouro Branco está falida. O marido titubeava e a discussão saiu varanda afora. Depois, Elisa ouviu o carro do comprador indo embora, até o chiado do motor sumir na primeira curva.
. . .
Corpos saciados, moles, dormiam. De manhã, antes de abrir os olhos, Elisa sabia onde estava. Havia dormido tão profundamente a ponto de perder o controle sobre as coisas. Então, recordava-se de todos os seus atos. Beijos, abraços, suspiros, o gozo. Ah, tantos anos sem gozar. Ele a fizera gozar, gozar, e verter lágrimas prazerosas. Abriu os olhos brilhosos. Olhando ao redor sem pressa, notou que não havia muita coisa no quarto. Cama sem cabeceira, armário vagabundo, cadeira de pinos estofada sem braço, um cabideiro, cortina de pano alaranjada ou encardida, o ventilador velho e enferrujado no teto, desligado. Ah, e o cheiro do corpo dele, robusto. Cheiro gostoso. Isso era tudo o que ela tinha. Não possuía nenhum móvel, nenhum fardo de algodão. Tinha se apartado de todas as posses. Tinha o cheiro dele por todos os poros. Jamais, acontecesse o que acontecesse, jamais voltaria para exigir o que quer que fosse. Por que se preocupar com o tipo de lugar que iria viver ou o tipo de roupa que iria usar?
Tinha que telefonar para o marido. Dizer, ao menos, o que fizera. Já de manhã, um calor demais no quarto. Ou era o corpo quente e fogoso do comprador de algodão? Precisava sair para comprar uma escova de dentes. Telefonaria de algum orelhão. E as crianças? O que pensariam dela? O que fazer com elas? Elas simplesmente não tinham culpa de suas loucuras. Ela diria, então: cuide delas, elas ficam, você sabe como fazer.
“Não consigo acreditar”, gemeu Alonso. Podia ser qualquer um, menos esse cara.”
Houve um breve silêncio. Depois, ele disse: “As crianças ficam. Adeus e boa sorte.”

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