Algo bom está para acontecer (David Gonçalves)

ALGO BOM ESTÁ PARA ACONTECER
David Gonçalves
Cinquentona, quase não saia de casa. Vivia reclusa. Dedicava-se aos astros e destinos. Era cartomante. Comum ver pessoas, um tanto ressabiadas, entrarem sorrateiras na sua casa no final da rua. Entravam perturbadas e, quase sempre, saíam sorridentes.
Desfazia a temorosidade do futuro. Madame X cavoucava o inédito. Tantos anos no ofício. Conhecia os estranhos, felizes e perturbados dramas.
Naquela manhã, recebera a jovem esposa do senador Euzébio. Parecia angustiada. Depois de embaralhar as cartas, estendeu três sobre a mesa. Antes de pisar a escada, Maristela leu a placa pendurada à parede: “Algo bom está para acontecer.”
– Aí está – disse. – Ele te ama. Teu coração sangra de amor. Mas evite se expor. A inveja mata. A cidade não é tão grande. Coração é terra que ninguém pisa, mas é chão traiçoeiro.
Ela, aliviada, sacou da bolsa duas cédulas de 200 reais e entregou à madame. Na saída, antes de pisar a rua, leu novamente a tabuleta: “Algo bom está para acontecer”. Sorriu, plenamente feliz.
. . .
Na manhã seguinte, logo pela manhã, batia a sua porta o senador Euzébio. Parecia exaurido.
– O que o traz aqui, nobre senador?
– Tantas preocupações…
– Abra o teu coração.
Temia que sua jovem esposa o tivesse traindo. Vivia para a política. Mais em Brasília do que em Quadrínculo. Sentia que o amor dela havia esfriado. Devia vigiá-la? Contratar um detetive?
Madame X embaralhou as cartas e estendeu três sobre a mesa.
– Mas que bobagem, senador. Ela morre de amor pelo senhor. Amor incondicional, infinito.
– Tem certeza?
– As cartas não mentem.
Ao se despedir, fez um pix de mil reais à madame.
– Ora, senador, quanta bondade!
O senador, aliviado, desceu a escada e leu a tabuleta: “Algo bom está para acontecer.” Na rua, quando entrou na Mercedes, sorria de suas vãs preocupações.
. . .
No outro dia, à noite, subiu a escada o jovem poeta Arthur. Estava desfigurado. Magro. Olheiras. Estava trêmulo.
– Eu quero saber do meu destino.
Madame X não sabia o que dizer. Poetas eram pobres. Daqueles bolsos, nenhum centavo. Mas, com piedade, embaralhou as cartas. Estendeu três sobre a mesa. Ficou lívida.
– O que dizem?
Temerosa, sorriu contrafeita.
– Ela te ama muito. Mas está presa no passado. Você, meu jovem, é o príncipe encantado dela. Amor incondicional, infinito. Ah, pobrezinha… como sofre!
Ele sorriu, aliviado. Estendeu sobre a mesa algumas moedas.
– É o que tenho…
– Qualquer ajuda é bem-vinda.
Ele desceu a escada e leu a tabuleta: “Algo bom está para acontecer.” Sorriu, plenamente feliz. Coração planava.
. . .
Na semana seguinte, a cidade fervilhava de mexericos. Maristela havia fugido com o poeta pobretão e senador Euzébio buscava-os por todos os becos e vales da região. Enraivecido, jurava vingança.
Madame X quedou-se aborrecida. Algo nada bom estava para acontecer. Fez a mala, chamou o Uber, e partiu. Antes tarde do que nunca.
Quando senador Euzébio e dois capangas entraram abruptamente na casa dela, encontraram a velha mobília, mas nenhum vestígio da madame, Grunhia como fera:
– Vou caçá-la até no quinto dos infernos!
Ao descer a escada, leu a tabuleta: “Algo bom está para acontecer”. Sacou do revólver e cravejou-a de balas.
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