Alguma coisa aconteceu lá (David)

ALGUMA COISA ACONTECEU LÁ

A NOTÍCIA DA MORTE DE TEREZA ARRUDA se espalhou rapidamente pelo povoado e causou profunda impressão nos seus habitantes.

A história dela estava bem viva na memória de todos. Fora uma benfeitora, sem dúvida: ajudara muitos. Pertencera à irmandade Coração dos Aflitos, da igreja, e estivera presente nas obras de caridade por oito anos, sem medir esforços, considerada uma alma caridosa. Mas, depois que padre Lucas veio para a paróquia, tudo começou a ruir. Tereza Arruda era casada e tinha três filhos, mas o marido morrera afogado numa pescaria no rio Ivaí, bêbado. Assim, ela podia dedicar-se exclusivamente à igreja e aos necessitados.

É certo que os anjos caridosos são os mais atormentados pelo Cujo. Foi o que se deu. Com a chegada de padre Lucas, algo mudou e, aos poucos, veio à tona, deixando os mexericos e as maldades à mostra. Ela se apaixonara perdidamente pelo jovem padre e não podia esconder seus atos, tão divulgados entre portas e janelas do casario. Padre Lucas foi transferido para outra paróquia, distante, e Tereza Arruda, envergonhada, abandonou o vilarejo, deixando os três filhos aos cuidados de seus habitantes.

Por anos, ninguém soube de seu paradeiro e os filhos ficaram numa espécie de mendicância.  O mais velho, Arnaldo, tão logo completou dezesseis anos, pegou a estrada e desapareceu. O do meio, Onévio, foi morto pela polícia local por causa de roubos e drogas. Restou no vilarejo Arcanjo, criado por bondade de uns e de outros, prato de comida aqui, acolá, morada incerta. Mas se revelou bondoso, prestativo, de forma que era amado, benquisto, sempre convidado para cear nas melhores casas.

Diante da notícia da morte da mãe, Arcanjo sentiu-se no dever de buscá-la e dar enterro decente. O dono do armazém de secos e molhados  cedeu-lhe a caminhonete Willian, que era usada para fazer entregas nas propriedades rurais, sob confiança. Isto se deu na quarta-feira, e o tempo, quando ele partiu para aquela cidade desconhecida, além do rio Ivaí, o tempo estava ensolarado, morno, e Arcanjo deveria estar de volta na manhã seguinte, enquanto isso o enterro seria providenciado.

Arcanjo não estava triste, mas confiante na sagrada tarefa de buscar a mãe e dar-lhe as necessárias providências para o sepultamento. Nunca entendera por que ela o abandonara quando criança e dela cultivava vagas e doces lembranças.

Naquela noite, quando já passara a balsa do rio Ivaí, sobreveio um temporal pesado, vento Sul, relâmpagos e trovões. Da tarde morna, sobreveio um frio cortante. A estrada virou lama. O mundo parecia vir abaixo e a terra-roxa amoleceu e os lodaçais se espalharam pelas baixadas. A caminhonete urrava nas subidas, deslizava nas baixadas, resvalava, dançava, a ponto de encalhar. Mas, na madrugada, estava defronte do asilo do pequeno vilarejo, onde o corpo de sua mãe estava, enrijecida, enrolada num cobertor velho, sem caixão. Naquele recinto escuro, iluminado por quatro tocos de velas, não a reconheceu. Podia ser qualquer outra pessoa. Recuou o véu preto do rosto e o que viu foi um rosto enrugado, ossos salientes, boca sem dentes, pele ressecada.

Quis saber como a mãe morrera, mas as informações eram incertas. Na verdade, não queriam dizer-lhe. O local onde estava era um asilo pobre e ela foi parar ali depois de anos de vida sofrida no meretrício. Mais não quis saber, porque tudo isso começou a fazer-lhe rombos na alma.

O dia amanhecia e a chuva não dava tréguas. O povoado estava envolto em brumas e as ruas enlameadas. Com ajuda de alguns, colocaram o cadáver num caixão de tábuas ruins e o colocaram na caminhonete, no meio da chuva. Em seguida, Arcanjo partiu, sem lágrimas, embora pesaroso.

2

O MUNDO INTEIRO PARECIA envolto na tormenta. Chovia pra valer. Ventava também e de forma sibilante. Homens e bichos estavam entocados, dormindo ou espiando a chuva torrencial. Não havia o que fazer. Alguns, aborrecidos, postavam-se ao redor do fogão a lenha e ficava fazendo conjecturas sobre o efeito das águas nas plantações, numa espécie de monólogo.

– Isto não me cheira bem. Pouca água é ruim, muita é pior ainda. São Pedro abriu as comportas do céu e está deixando correr à vontade. O milharal vai amarelar e perder a florada. O cafezal sofrerá perdas de grãos e os que caem não servem pra nada, apodrecem ali mesmo. Ai, Jesus, o feijão nem se fala: apodrece simplesmente. As vacas leiteiras não saem na pastagem e o leite diminui. Isto não me cheira bem.

Resignados, enrolavam os cigarros de palha e tiravam lentas e espessas baforadas, que se misturavam com o ar esfumaçado da cozinha.

Na boca de todos estava uma só pergunta:

– Será que o Arcanjo chega a tempo para enterrar a mãe? Não queria estar na pele dele. Romper esse barro mole não é pra qualquer sujeito.

Não era possível, diziam. Não havia mais estradas nem valas. Se havia, era intransitável. Se havia tréguas, os homens saíam à varanda e espiavam, decepcionados. As nuvens baixas e pesadas pareciam encostar nos morros.

– Deve estar atolado em alguma baixada, sem ir nem vir, perdido – voltavam a dizer, imaginando o pior.

O pároco entrou na igreja, agasalhado, com medo de pegar resfriado brabo. Encontrou meia dúzia de fiéis esperando o corpo de Tereza Arruda, quietos, como se fossem bonecos de cera.

– Será que está a caminho? – perguntou apenas por perguntar, porque já desconfiava que não haveria cerimônia alguma.

O vento sibilava igreja adentro, limpando a poeira acumulada dos nichos., num som cavernoso. O sino começou a balançar e, de vez em quando, emitia pequenas badaladas quase imperceptíveis. As batidas lúgubres e baixas faziam as pessoas arrepiarem, receosas, certas de que aquilo era sinal agourento. Quietos, encolhiam-se, e olhavam a porta principal para ver se o corpo de Tereza Arruda havia chegado.

– Pode ser que chegue… Mas com esse tempo… O barro mole engole até as almas. Bem, é esperar pra ver.

No cemitério, o coveiro se recolhera numa espécie de tapera, quatro estacas sustentando uma lona amarela, e espiava, desgostoso, a chuva abundante encher a cova de água e lama. Por duas vezes, ele tentara secar a cova, mas em vão. Logo a água voltava a encher. Se o corpo chegasse naquela tarde, teria que ser enterrado no meio do lodaçal.

Alguns mensageiros foram enviados, num Jeep, ao encontro de Arcanjo e o cadáver de Tereza, mas o lamaçal era tanto que, antes de escurecer, estavam de volta. Nem sombra da caminhonete. Não havia informação. Entocados, os lavradores resmungavam: nenhum cadáver passara ali.

– Com essa chuvarada de Noé, barro vermelho feito polenta, ele deve estar encalhado por aí…

– Se encalhou, sinceramente, vai ficar atolado, porque ninguém é doido de pegar os animais e sair nesta chuva, só pra safar alguém doido esbarreado – limitavam-se a dizer olhando a chuva.

O sacristão se juntou ao grupo de fiéis e, calado, ficou olhando, através das janelas, o povoado envolto numa bruma espessa, os olhos esgazeados, amarelos, com sinais de icterícia. Já começava a escurecer, e bem mais cedo, e os poucos homens olharam-se e concluíram, quietamente, que deveriam ir embora para suas casas, porque a espera era vã. Isto, de certa forma, os aborrecia. Não tinham nada o que fazer em casa também.

– Seja feita a vontade do Senhor – disse o padre, impaciente, quase empurrando a meia dúzia porta afora. – Mesmo que chegue à noite, nada podemos fazer. Vão para casa e esperem.

O sacristão começou a fechar as portas da igreja. A noite desceu sobre o casario e nenhum cristão, nem cachorro, nem coruja se dispôs a circular pelas ruas enlameadas e encharcadas.

3

NA PASSAGEM DO RIO IVAÍ, a balsa estava encostada, e o balseiro Gerôncio, no interior do rancho de adobes, olhava a chuva e se resignava. Mais um dia perdido. Não era corajoso para colocar a balsa na travessia. O rio bufava. As águas desciam com força, carregando troncos, enfim o que encontrassem pela frente. Era deixar o rio seguir o seu curso, desde que não levasse a balsa rio abaixo. Com a tormenta, o vento fustigando cavernoso, poucos passageiros haviam aparecido durante o dia e ele atravessara-os com receio. Agora, nem que fosse Jesus, ele teria coragem de colocar a balsa naquelas águas rebeldes. Pensava assim, enquanto olhava, resignado, a chuva fustigar, quando Arcanjo chegou com a caminhonete. Ouviu o pedido choroso, suplicante, de Arcanjo, que estava com a roupa enlameada e encharcada.

– Não é por mim, mas por minha sagrada mãe, que está no caixão, e eu tenho a missão de enterrá-la em Quadrínculo, conforme me coube a missão. Estou, portanto, nas mãos de sua bondade…

– Nem por Jesus, que é loucura, botaria a balsa na travessia. Esta água está braba, carrega o que vier pela frente, não está vendo? Olha lá: é um bezerro sendo carregado. Vixi, já está morto!

Mas Arcanjo não se deu por vencido.

– Está violenta mesmo, mas, se não chegar no destino, o corpo começa a apodrecer e, então, o que posso fazer? Devo um enterro decente pra ela, com bênção de padre e cova na medida…

O balseiro quis ver se era verdade e ambos saíram à chuva. O caixão estava em cima da carroceria, respingado de barro.

Compadecido, sem falar, começou a mexer na balsa, ajeitando-a, para que Arcanjo colocasse a caminhonete no tablado. Feito isso, ele ligou o motor e a balsa começou a sacolejar de encontro a corredeira. Foi uma travessia vagarosa e difícil, entre trancos e barrancos.

– Deus há de compensá-lo – disse Arcanjo, pagando-o. – Minha mãezinha será o teu mensageiro diante do Senhor.

Novamente, ele pôs a caminhonete a dançar no barreiro. Estava escurecendo rapidamente. Rompia os atoleiros, como deslizasse numa prancha de sabão. Já era noite, e ele persistia, teimoso, os faróis quase tapados de lama. Pedia ajuda constante da mãe morta. Mal via os barrancos da estrada. Foi, assim, que se viu atolado, nem para frente nem para trás, numa baixada. Consultou o relógio de pulso e já passava das dez horas e, por aquele ermo, não encontraria nenhuma ajuda para arrastar a caminhonete do lamaçal.

Era o que me faltava, começou a injuriar-se. No meio da noite, no meio do nada, atolado até o pescoço. Estava com fome e o que restara do almoço era um pedaço de pão seco. De mãos atadas, resmungava. Estava com a roupa encharcada e o frio começava a fazê-lo tirintar.

Com um farolete, procurou ver se o caixão estava posicionado em cima da carroceria. Estava de atravessado e, com as sacudidelas, a tampa se rompera, e o cadáver da mãe havia revirado de lado, sem o véu que cobria o rosto sofrido. Bem, pensou, não há nada o que fazer. De manhã, iria buscar ajuda. E se aninhou na cabine feito um feto no útero, enrolado numa capa boiadeira, que também estava úmida, mas não deixava o corpo ao relento. Dormiu faminto e exausto.

4.

REVIRAVA-SE NO ASSENTO, as molas rombudas cutucando-lhe as costelas. De vez em quando, encolhido como um feto no útero, espiava a noite chuvosa, mas nada via, pois o vidro opaco pelo ar quente de sua respiração e o frio úmido do lado de fora não deixava ver nada. Ouvia, sim, as gotas de chuva fustigarem a cabine, saraivadas que uivavam como chicote no ar.

O que fazer? Dormia e acordava sobressaltado. Uma noite sequenciosa de sonhos, incomodado pelas molas rombudas do assento. Ele se via diante da mãe, criança, correndo pelo terreiro, puxando a saia dela, pedindo doces e picolés. Ora aborrecida, ora generosa, solícita, entregava-lhe os picolés que, assim que os agarrava, começavam a derreter antes de levar à boca. Ou, então, quando estirava os braços para apanhá-los, tudo sumia.

– Mãeeee! Mãeeee! – choramingava, e a mãe ria de seu choro suplicante, sucessivamente.

Outras imagens desfilavam: o pai bêbado, afogando-se, nas correntezas do rio Ivaí. Implorava por socorro e Arcanjo se achava amarrado nas raízes de uma figueira enorme na margem. Debatia-se tentando livrar-se das amarras, cordas grossas, e os pés e mãos sangravam, mas não conseguia, e o pai, no meio do rio barrento sendo engolido pelas águas traiçoeiras. A mesma imagem se repetia e ele, Arcanjo, estava indefeso, inútil, olhos arregalados.

Dormia, enfim. Uma espécie de tréguas. Mas, de repente, voltava a mãe oferecendo-lhe doces e picolés. Mas ele não conseguia pegá-los. Simplesmente derretiam sob o calor soprado por algum dragão. Em seguida, sucediam-se imagens da mãe indo embora, entristecida, olhando-o com a cabeça revirada. Parecia soletrar-lhe algum segredo, mas as palavras chegavam-lhe ocas, misturadas, truncadas, e ela subia no ônibus e a porta se fechava, e restava apenas poeira na estrada, as partículas de pó dançando no sol da tarde.

– Mãeee, eu quero ir junto! – soluçava. – Eu quero!

Mas era em vão. Os dois irmãos agarravam-no e o arrastavam para casa, embolados na poeira.

Ouvia, de vez em quanto, barulho estranho na carroceria da caminhonete e guichos de animais, e chegou a limpar o vidro com o dorso das mãos para espiar, e o barulho incômodo se calava, e ele voltava a se enrolar como um feto no útero da mãe, e tentava livrar-se dos sobressaltos dos sonhos. Mas o barulho estranho – pequenas passadas no madeirame da carroceria e os guichos voltavam a perturbar-lhe, misturando-se com os sonhos.

De manhã, a chuva havia parado. Arcanjo, então, olhando ao redor da caminhonete começou a avaliar a situação. Estava numa baixada, os pneus atolados no barro mole, e dali, sem ajuda, não conseguiria se mover por dois ou três dias. De lado a lado da estrada, cafezais se espalhavam sob a neblina.

– Jesus, estou atolado até à alma!

Estava mesmo. Tinha que procurar ajuda, quem sabe, encontraria boas pessoas naquelas propriedades. O estômago choramingou, faminto. O quanto não daria por um café forte e um pedaço de pão. Pelo menos, não estava chovendo. Entretanto, por aquela estrada não passaria vivalma. O ar estava tão úmido, que o dia não conseguia atravessar o nevoeiro e tudo parecia estranho. Com certeza, os agricultores passariam o tempo sentados na penumbra dentro de casa, não saindo nem nas portas. Bem, ele teria que se arriscar pelos cafezais até encontrar pessoas bondosas e dispostas.

Foi, então, que ele olhou a carroceria e o que viu deixou-o agoniado: o caixão estava destampado e o corpo da mãe semidestruído. Bichos haviam comido a parte de um braço, de uma coxa e da barriga, deixando os ossos à mostra. Havia pedaços de carne podre sobre o madeirame do assoalho, espalhados, e sinais intercalados patas de animais.

Encontraram-no ajeitando o resto do cadáver da mãe no caixão, taciturno, olhos esbugalhados.

5

A ESPERA PELO CORPO de Tereza já estava no terceiro dia. O padre comunicara aos fiéis para que ficassem em casa. O sacristão badalaria o sino, anunciando a chegada. Havia chovido três dias. O que se via nas ruelas eram barro e esgotos que se tornaram pequenos riachos.

No final do terceiro dia, o temporal abrandou e, pelas três da tarde, o sol pálido, doentio, despontou entre as nuvens menos carregadas. Os habitantes começaram a sair de casa e alguns voltaram a se reunir na igreja, apreensivos e curiosos, a contragosto do pároco. Por onde andariam Arcanjo, afinal?

Hipóteses foram levantadas. Suposições inúteis. Todos sabiam que as estradas estavam intransitáveis, o barro vermelho e mole se mexendo como um pântano. Somente cavalos e cavaleiros se movimentavam por ela, e algumas pinguelas e pontes, provavelmente, foram arrastadas pelas enxurradas.

– A balsa do rio Ivaí ficou encostada, sem passar ninguém.

Era apenas conversa para ocupar o tempo. De repente, alguém deu a notícia: Arcanjo e Tereza estavam a caminho, próximo de Quadrínculo, mas não detalhou. Pouco depois, a igreja estava lotada, à espera.

– Pobre coitada! – diziam, referindo-se a Tereza, com olhar piedoso. – O corpo já apodreceu…

A conversa, a princípio morna, fagulhou.

– Que ninguém duvide: ela já está enterrada por aí, em algum vilarejo. Quem aguenta carne podre…

– Ah, não diz besteira. O Arcanjo jamais faria isso. Conheço ele. Tem bom coração.

– Até pode ter, mas morto é morto, e morto fede pra diabo, e acreditem: quando morremos, milhões de bactérias fazem a festa. Depois de 24 horas, ou até antes, o chorume verde-musgo começa a correr da pele… Quem está por perto, não aguenta, espreme o nariz e sai de fininho. Os bons fedem, os ruins fedem, os pobres e ricos também. Os santos mais ainda.

O padre interveio, impaciente.

– Em vez de besteiras, rezem por ela e pelo esforço hercular de Arcanjo. Se coloquem no lugar dele no meio do temporal, sabe-se lá onde atolado, sozinho. Duvido que alguém de nós tem tanto peito assim.

Ia acrescentar um pequeno texto bíblico, mas foi interrompido.

– Lá vem a caminhonete! Deus, como está só barro.

Estava prestes a escurecer.

6

PROCEDEU-SE O ENTERRO ÀS PRESSAS. O coveiro mal teve tempo de retirar a água que ainda estava na cova. O cheiro estava insuportável, causando náuseas e vômitos. Alguns tapavam o nariz para não deixar o ar podre entrar corpo adentro; outros, simplesmente se afastaram. Diante de bênçãos rápidas e três jorros respingados de água benta, o caixão foi baixado às pressas e o coveiro, rapidamente, começou a jogar terra encharcada em cima. Estava escuro.

– Que o Senhor a receba no reino de Sua glória! – sibilou, lábios espremidos, o padre, afastando-se do ar pesteado.

Por todo o tempo, Arcanjo, sempre recato, tímido, mostrara-se falante. Falava, falava e falava. Confessava que os dias tinham sido longos e as novidades escassas. Vivera dias imersos na solidão. Estava sujo, maltrapilho, e a barba crescera deixando o queixo mais saliente. No meio das pessoas, finalmente no meio de sua gente, em vez de abatido, falava e ria. Os homens o rodearam, prestavam atenção em seus modos, examinando-o. Os olhos tinham uma cor de névoa e pareciam inchados, contornados por manchas azuláceas, quase negras. As bochechas estavam inchadas e, assim, ele parecia ter engordado.

– Acredite, gente, foi uma viagem sem igual. Eu e a pobre mãe atolados no lamaçal naquele fim de mundo. Pensei que ia morrer e, lá mesmo, apodrecer. A chuva caindo e sem poder ir pra frente, nem pra trás. Ah, vocês não sabem o que é sentir tão só no meio do nada…

Falava sem parar, sem freios, um carro desgovernado morro abaixo. Esfregava as mãos e os joelhos. Olhava sobre as pessoas, sem determinar a direção. No escuro, e fracamente iluminado pelas lâmpadas dos postes, mostrava-se alheio às dores, completamente distraído.

Cheirava a aguardente. Mas não se podia dizer que estava bêbado, porque ainda dava passadas firmes, um pouco lentas.

– Ah, vocês não sabem o que aconteceu! Tive que dormir na cabine da caminhonete, a chuva malhando sobre o teto, enregelado. Foi uma noite infernal, quando acordei, o dia clareando, o que vi foi assustador.

Fez-se ao redor um silêncio curioso. Arcanjo cheirava a álcool de longe. Continuava falando como uma máquina sem parar, destrambelhado. A plateia, ao redor, nunca o presenciara assim. Falava, entretanto, sem emoção, alto, esforçando-se para que todos ouvissem. Não desejava agradar a todos, mas queria ser ouvido, por isso elevava a voz sem pudor.

Quando os habitantes o descobriram no meio do lodaçal recolhendo os pedaços do corpo da mãe e tentando recompô-la no pobre caixão em cima da carroceria, extenuado pelas noites sem dormir, vencido pelo cansaço, Arcanjo tinha o rosto meio aparvalhado, olhos vazios, e não respondia às perguntas. Um dos proprietários rurais foi a sua casa e, em breve, retornou com um garrafão de aguardente que ele mesmo produzia. Fizeram arcanjo beber vários tragos, até que se sentisse aquecido, e os tragos sucessivamente foram repetidos durante o decorrer das horas, até que ele se tornou falante e a realidade da mãe estraçalhada algo distante. Sentado à margem da estrada, aguardou pacientemente os lavradores desatolarem a caminhonete, com juntas de bois e parelhas de cavalos, e homens atolados até os joelhos empurrando, respingados de lama vermelha. Foi, então, quando a caminhonete já estava fora do imenso lodo, que eles repararam que Arcanjo estava falante, olhos esgazeados e meio apagados, como se nada daquilo lhe importasse.

– Eu vi, senhores! Eu vi!

Todos o fitavam na semiescuridão, esperando.

– Lá estava minha mãezinha aos pedaços… Comida por bichos durante a noite. Sem a coxa, sem o braço, sem a barriga… Eu tive que juntar os pedacinhos e colocar no caixão. Deus, eu estava na cabine e não vi nada, nem ouvi. Podem imaginar? Com certeza, foi devorada por quatis, lagartos, cachorros do mato. Onça não foi. Porque onça mata e come, e a mãe fedia. Sim, fedia. Ainda bem que fez frio por esses dias. Eu trouxe minha mãe aos pedaços!

Falava alto, feito uma máquina desgovernada, mas não chorava.

O português, dono da caminhonete, reclamava do estado de penúria do veiculo. Jurava que nunca mais deixaria o coração mole dominar-lhe:

– Petição de miséria! – exclamava, exaltado. – Olha como está a pobrezinha. Quem tem pena se despena.

Desgostoso, injuriando sua bondade, recolheu-a. Arcanjo continuava a falar, agora para poucos.

– Minha mãe, uma santa. Tão querida por lá, tão amada. Aquela gente não queria entregar o corpo. Tive que bater o pé. Minha mãe teria, por meus olhos, enterro merecido, que não sou filho ingrato. Enterro com bênçãos de padre e água benta, num lugar onde todos a amavam.

Pacientes e desconfiados, os poucos ouvintes fitavam-no com piedade. Algo ruim, muito ruim, infiltrara na cabeça de Arcanjo e dominara, roendo, amargando, destroçando.

– Naquelas lonjuras – prosseguia Arcanjo –, onde se viu enterrar minha santa mãezinha?

– Vamos, Arcanjo, anoiteceu e está esfriando. Amanhã, você conta o resto – alguém o tomou pelo braço e, carinhosamente, tentava fazê-lo andar.

Mas ele resistia, queria falar mais, meio possuído, misturando a realidade com o fantasioso.

– Aquele balseiro salafrário! Não queria botar a balsa no rio, com medo. Tive que ameaçá-lo. Dei-lhe uns socos e pontapés bem dados. Se não pusesse a balsa na travessia, rachava a cabeça dele. Foi assim que, bravamente, se colocamos a lutar contra aquelas correntezas brabas, que jogavam a gente pra cá e pra lá, aos trancos. Pensei que a caminhonete ia ser jogada no rio.

– Pra casa, Arcanjo – tornaram a puxá-lo pelos braços. – Não precisa prestar contas do que aconteceu. Agora, todo o perigo passou e tua mãezinha, pobre Tereza, está no campo santo.

– Mas eu tenho que falar…

– Deixa pra amanhã. Você tem que dormir. Amanhã, você conta o resto desta penosa viagem…

Arrastaram-no até a sua casa, um rancho de tábuas desiguais. Uma boa senhora havia preparado uma sopa de legumes e carne, e fizeram-no comer, dando colheradas à boca. Uma vez debaixo do telhado, o fogão a lenha aceso, sorvendo a sopa, Arcanjo sentiu o calor subir-lhe corpo acima e aquecer a cabeça. O corpo amoleceu, as pernas bambearam, e pendeu como um fardo dominado pelo sono. Aos poucos, o rosto serenou e a paz o envolveu, como se nada tivesse acontecido.

7

SABE-SE, NO MUNDO, que nada sabemos coisa alguma e de nada saberemos coisa alguma. Ninguém chega à essência de coisa alguma.

Pois foi o que se deu. Arcanjo se transformou num idiota, falando à toa. Andava pelas ruas, sujo, sem atividade alguma, repetindo a mesma cantilena. Antes, bom e correto. Agora, imbecil.

– Alguma coisa aconteceu lá – diziam as boas e más almas.

Perambulava, cabeça oca, falastrão. Endoidecera. Mas era doido bom, olhos mansos, sem maldades. Ria por uma palha voando, por uma borboleta na tarde calorenta, por um vagalume na noite. Poetava. Alegrava-se por nada: um raio de sol, uma gotícula de orvalho, um passarinho construindo o nicho, uma pedra no caminho… Cada habitante dava-lhe o de-comer. Era acolhido nos ranchos, paióis, com certo receio. Doidura sempre mete medo. Cansados de ouvir suas histórias sobre Tereza Arruda, logo se ocuparam de outras novidades e afazeres. Arcanjo tornara-se cansativo e motivo de chacotas.

– Doido bom – diziam, condoídos, acrescentando: O que aconteceu naqueles dias? Será que ele rompeu a tênue linha entre a razão e a doidura?

Os dias se sucederam e Arcanjo se tornou mais um entre tantos, esquecido. Os doidos são deixados de lado. A vida segue.

Eis que, certo dia, desceu na rodoviária, empobrecida e gasta, toda arcada, Tereza Arruda, disposta a encontrar seus filhos. A cidade ficou atônita. Tinham enterrada a pessoa errada.

Arcanjo endoidecera e não havia como resgatá-lo.

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