Andreia Evaristo – Discurso de posse

Boa noite a todos.

Difícil dizer isso, mas um dos momentos mais difíceis para um escritor é quando ele se encontra tão envolvido de emoções que as palavras lhe faltam. Sem sombra de dúvidas, esse é um desses momentos. Talvez por isso tenha sido tão difícil sentar-me à frente do computador e começar a dedilhar essas poucas linhas. As palavras me fugiam aos dedos e não havia tinta que pudesse transpor tudo o que trago dentro de mim.

Antes de pensar nos caminhos que se abrem diante de mim neste momento, antes de vislumbrar as possibilidades do porvir, preciso olhar para dentro e remontar as peças e os passos que me trouxeram até aqui. Meu pai e minha mãe que estão aqui não me deixam mentir: meu amor pelas letras começou muito antes de eu me entender por gente. O código me fascinava antes mesmo que eu pudesse compreendê-lo, como me fascinava a possibilidade de as histórias serem eternizadas através dos livros. Havia tanta riqueza a cada página que era virada, que eu não conseguia imaginar como alguém não se encantaria com tudo que se exibia, linha por linha, construindo mundos na minha imaginação. Quantas vezes eu troquei a boneca pelos livros ou a brincadeira na rua pela princesa do reino tão distante… Se há um motivo por trás de tudo, talvez esse novo passo do caminho possa me ajudar a compreendê-lo.

Há um propósito nos fios que amarram nosso destino nesta jornada terrena? A cadeira que hoje assumo pertenceu à Jandira d’Ávila. Ela, assim como eu, também foi professora e teve uma rica jornada na educação catarinense, na qual trabalhou por mais de 30 anos – apesar de todas os desafios que o sistema educacional trazia e ainda traz consigo. Hoje, seu nome permanece entre os joinvilenses como a patronesse de uma escola pública estadual – a mesma rede na qual escolhi atuar após sete anos de trabalho na rede particular. Mas, mais simbólico que nossa profissão e o amor pela escrita é o fato de Jandira ser uma mulher, buscando espaço em meio a um ambiente ainda majoritariamente masculino. Ela rejeitava o feminismo fanático, sem deixar de ajudar as mulheres a buscarem seus direitos enquanto cidadãs brasileiras – e, mais uma vez, percebo os fios do destino costurando os retalhos de minha vida aos dela, reforçando que é importante que a mulher tenha voz e vez na sociedade em que vive, sem precisar fazer disso uma guerra dos sexos.

Se a jornada importa tanto (ou, às vezes, até mais) que o destino, não posso deixar de resgatar a história de Karl Konstantin Knüppel, patrono da cadeira que assumo. Knüppel criou, em 1852, o primeiro jornal joinvilense, “O observador às margens do Rio Mathias”, totalmente manuscrito. Seu texto era marcado pela ironia, pelo humor e pela crítica.  Na primeira edição do Observador, Knüppel apresentava o novo veículo de comunicação e fazia uma triste homenagem à terra que deixara para trás e ao futuro em sua nova pátria. Isso é algo que Knüppel e eu temos em comum: o fato de sermos migrantes nessas terras que escolhemos para chamar de nossas – muito embora eu já tenha passado mais tempo em Joinville que em minha terra natal. Aqui me sinto em casa. Essa é a cidade que me acolheu com braços abertos, que me abriu as portas dos meios de comunicação, que me apresentou ao meu marido e aos amigos que eu poderia chamar de irmãos.

Não sei se existe, mesmo, para cada um de nós, um caminho único nesse vasto mapa. Há uma linha mestra que nos conduz, passo a passo, ao final feliz de nossa própria história? Quando olho para trás, tenho comigo que cada peça encontrada se encaixa perfeitamente no grande quebra-cabeças que é a vida. Só me pergunto se não acabo me esquecendo das peças que lancei fora, que descartei porque não cabiam na imagem que se formava.

De uma coisa estou certa: por onde eu vá, levo comigo o que me trouxe até aqui. Karl Knüppel, quando chegou a Joinville, trazia a informação de que era lavrador. Não somos todos lavradores, arando o solo que há de vicejar nossos sonhos? Não é a palavra nossa ferramenta de trabalho, não é ela a pá que lavra nossas angústias, nossas sentenças e nossas certezas mais absolutas? Mais do que isso, não posso me esquecer de que meus pais, lavradores em sua origem, largaram suas vidas no campo para que nós, seus filhos, pudéssemos ter as oportunidades que eles não tiveram. Aqui estou eu, tentando fazer valer cada renúncia que vocês tiveram que fazer em meu nome, deixando para trás o conforto das famílias, o acalento do colo de mãe com a casa cheirando a pão assado no forno a lenha, para enfrentar o cinza e o frio do concreto que se arma, dos muros que separam, das pessoas que se trancam em suas residências. Mas estou de pé, com minhas raízes fincadas em solo firme, porque vocês me fizeram forte. Independente d’aonde eu chegue, espero nunca me esquecer de onde eu parti.

Por fim, só me resta agradecer. Antes de tudo, agradeço ao Pai Eterno que me criou à sua imagem e semelhança, que criou os céus, a terra, e tudo o que há, e nos fez grandes diante de sua criação, embora eu me sinta pequena diante de tamanha magnitude. Agradeço à minha família, que sempre foi meu suporte e meu fundamento. Obrigada a meu marido, que sempre me apoia em tudo o que eu preciso, que está sempre ao meu lado, que me dá força, ânimo, coragem. É com você que eu divido minhas escaletas, meus roteiros de escrita, minhas descobertas da etimologia de cada palavra. É você que completa minhas falas, que pensa a mesma coisa que eu, no mesmo momento. É seu meu primeiro e último pensamento do dia. Já não me lembro mais de onde termina o eu e onde começa o nós. Obrigada pela sintonia, pela sincronicidade, pelo amor e pela cumplicidade. Obrigada aos meus pais, que sempre me incentivaram a seguir meu coração e dar asas aos meus sonhos, que compraram os livros que eu devorava na infância e na adolescência, que alimentaram meus anseios e desejos e me fizeram acreditar que tudo é possível se eu lutar pelo que acredito. Obrigada aos meus irmãos, os primeiros grandes amigos que a vida me deu, com quem eu sei que sempre posso contar, que estão lá por mim para tudo o que eu precisar. Agradeço também aos meus amigos, aqueles que caminham comigo lado a lado, que me incentivam, me fortalecem, me puxam para o chão quando minha mente está alta demais. Obrigada ao Jura Arruda, meu amigo, meu editor, meu grande incentivador. Obrigada aos acadêmicos que em mim votaram, pela sua confiança – pretendo dar o meu melhor para contribuir com essa casa e com a literatura joinvilense.

Por fim – já que havia mais palavras que em mim do que eu imaginava quando comecei esse texto – deixo aqui meus anseios diante da nova porta que se abre: que eu possa continuar a aprender com os grandes, que eu me permita todos os dias despir-me de vaidades e compor-me de novos olhares, novos planos. Porque só é possível crescer a quem se reconhece pequeno.

Muito obrigada.

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