As Flores, ao vivo (David)

AS FLORES, AOS VIVOS (David Gonçalves)

Hoje, não foi fácil.

Acabo de chegar do crematório. Vi o meu amigo João Simões virar cinza. Domingo de tarde, ele pintou a própria cabeça com tinta vermelha, despiu-se no fundo do quintal, enfiou uma cenoura de bom tamanho no rabo e se enforcou, no galho da goiabeira. Sua mulher, ao voltar de uma festa, embriagada, mais do que um gambá, na qual tinha ido de manhã, topou com João Simões dependurado na goiabeira, os pés quase ao rés do chão. O que ela fez? Recuou assustada e voltou à festa. Lá ficou o cadáver oscilante… até que um vizinho descobriu, quase noite.

Depois de avisar a polícia, fui avisado, nem sei por quem. Coube a mim e à mulher do vizinho, uma senhora gorda, a cabeça atarracada no corpo, a cabeleira acinzentada, que não tinha obrigação nenhuma, a tarefa de prestar os últimos serviços ao cadáver nu, a cabeça rebocada de vermelho.

O corpo estava frio, já havia endurecido. Sua mulher parecia uma imbecil, olhava para o nada, grunhia de vez em quando. Por mais que tentasse lavar a tinta de sua cabeça, mais ela borrava. Vizinhos e amigos bateram à porta para dar as condolências, mas, sem mais nem menos, estúpida, a mulher dele os despachava abruptamente. Depois de lavado, já no caixão, ficamos os três a velar o morto, um repositório de bilhões de células, antes vibrante de vida, entrava já em processo rápido de desintegração e putrefação. Pela meia-noite, a mulher do vizinho foi-se. Ficamos – eu e a mulher imbecil do finado – a velá-lo mudamente. Conversar o quê?

Uma vida vivida dolorosamente. 37 anos de vida. Agora, desintegrava-se, a represa da pele a se romper, e as células fermentadas escorrerem. Para me prevenir do mau cheiro, fui até o jardim e cortei um punhado de rosas e espalhei ao redor dele, entre o corpo e a parede do caixão.

Sem mais nem menos, um fim na vida. Não pude deixar de sentir inveja. Ato de coragem. Procurei pela casa algum bilhete. Nada. Enlouquecido, despira-se, borrara a cabeça com urucum, enfiara uma cenoura no rabo e se enforcara. No fundo, me sinto culpado. Há seis meses, quando viera da clínica, suas faces demonstravam que nada estava bem. Devia tê-lo persuadido a voltar para lá. Mas não tive coragem. Achei melhor que ele ficasse em casa, na companhia da esposa. Tento me convencer: lá seria pior, cometeria o suicídio do mesmo jeito e na frente dos outros loucos, que ficariam muito impressionados. O melhor para ele foi sair daquele lugar e tentar viver livremente.

De repente, a mulher levanta-se do sofá, dirige-se ao morto, e começa a esfregar incansavelmente os seus pés, as faces transtornadas, os cabelos desgrenhados, como se o cadáver pudesse ressuscitar de uma hora para outra.

– Ah, não me queira mal, querido! Eu sei por que você fez isso… Por causa de nosso filho, não foi?

Olho para a mulher e sinto nojo. Onde ela estava quando ele cometera suicídio? Na festa, bêbada, bailando.

A morte é isso – penso, deixando aquela imbecil na escuridão. Todo mundo tem que morrer. Daqui a 50 anos, ou menos, ninguém perguntará como a maioria das pessoas morreu. Fez bem, meu amigo: felizes são aqueles que escolhem como morrer.

A mulher de meu amigo morto senta-se numa cadeira de braços e silenciosamente continua a beber.  Na mão esquerda, empunha um copo americano – a mão parecendo um galho seco de árvore que, aos poucos, umedece – e o litro de uísque e o depósito de gelo num balde de inox descansam no chão perto do caixão, ao lado de seus pés descalços, que também se assemelham a raízes de árvore seca.

– Ele me dizia – apontou o morto – que as pessoas que bebem são fracas, têm medo da vida. Mas o que ele fez?

Emudeço. Olho para o nada. Não tenho ânimo para nenhuma conversa. Assinto cautelosamente com a cabeça. O cheiro das velas queimadas me dá enjoo. Depois de emborcar o copo americano, ela volta a dizer:

– Depois que ele veio da clínica, tornou-se uma estátua de sal, mudo, insensível como pedra.

O cheiro do seu hálito rescendendo a uísque paira no ambiente e se mistura com o cheiro de velas queimadas. Qual o mais enjoativo? Sinto ânsias, um comichão arranha a garganta. A noite abafada me empapa a roupa de suor. Abro as janelas para deixar entrar um pouco de ar. Ela continua bebendo, semiparalisada, sem ter para onde ir ou fugir. A cor de seu rosto parece a de um peixe seco. Resmungo:

– Tanta sede de vida, tanta vontade de vencer, quando adolescente… Era quem nos guiava, dizendo: “O mundo pertence aos audaciosos!” Agora, esta surpresa. Aí está… um bagaço sem vida.

A mulher ergue a cabeça como a de uma doninha. Emudeço. Para que revirar o passado? Permaneço de costas para a mulher. As mãos suadas. Não sei por que me lembro de uma frase repetida pelo morto quando jovem: “As flores, aos vivos!” Era Finados e ele estava indignado com a multidão levando flores aos mortos. “Sim, aos vivos, as flores!”

Antes de ir à clínica, dizia-me:

– Não há futuro, meu amigo, e o presente é uma carga insuportável. Viver… para quê? Fomos enganados. Não existe nada lá.

– Mesmo que não exista nada lá é bom viver.  Temos que construir alegria até mesmo onde não há – rebati, preocupado com o poço onde ele se metera.

– Bazófia! Estou cansado disso tudo. A fadiga e um sentimento inexplicável me fazem sentir como se um dente podre estivesse me incomodando. Você não sente também, na boca, um gosto desagradável, bastante fútil?

– Sai, satanás! – rebati. – Não sinto nenhum gosto de futilidade. Eu quero viver! E muito!

– Por isso te admiro.

Essa conversa aconteceu quando nascera o seu filho. Em geral, pensei, quando um filho vem ao mundo, as esperanças se renovam. Mas, com ele, nada disso aconteceu. Tornou-se mais áspero, rude, inconsequente. Mas a loucura ainda não se revelara. Talvez, ele a escondesse sutilmente.

Por causa do filho? Sim, pode ser. Com três anos, uma febre desconhecida o levou em sete dias. Depois disso, rompeu a tênue linha entre a realidade e o absurdo. João Simões começou a dar sinais de loucura. Passeava pela casa e pelo quintal abraçado a uma boneca de pano suja, como se embalasse o filho.

– Ele era veado, sabia?

Continuo calado. O que dizer? A conversa da imbecil me aborrece. Não é momento para discutir sexualidade. Onde ela quer chegar? Arrasta com os pés o balde de gelo, coloca três pedras e enche novamente o copo, e volta a beber. Tem o rosto de peixe seco, olhos parados. Dispara mais conversa tola.

– Amava você! Tinha paixão doentia por você. Muitas vezes, surpreendi, em seus sonhos, pronunciando docemente teu nome.

Espantado, nada falo. Que conversa!

– Ele, no começo, até trepava. Mas, nos últimos anos, nem isso fazia. Por mais que eu quisesse, ele me repudiava. Não trepava! Tinha nojo da coisa! Ele queria homem. Queria você! Que apodreça no inferno!

Não fala. Grita, engasgada num choro reprimido. Emborca o copo de uísque como se fosse água.

– Amava você! Era veado! Como me enganei! Que se dane nas labaredas do inferno! Onde fui me meter?

– Você está bêbada!

Voz pastosa, grita mais alto, como se estivesse no meio da rua. Por que não deita? Eu cuido do morto. Mas não. Novamente enche o copo, com três pedras de gelo, e emborca. Caramba! Ainda bem que não há outras pessoas no velório.

Que noite sem fim. Minha cabeça está demasiadamente embrutecida pela fadiga e desilusão. O fio da meada me escapa. Acho que cochilei… Mesmo que revolva minha mente em vão, o cansaço me toma.

De manhã, pelas oito horas, chega a funerária. Nada de capela, nada de amigos, vamos direto ao crematório. Estou um trapo. A mulher do morto também está irreconhecível. Lá vamos nós – eu, ela e o morto.

Vejo o caixão tapado ser empurrado para o forno. Em seguida, alguém acende a fornalha. Em poucos minutos, as labaredas crepitam, a água do corpo se esvai, fica um montinho de cinza. O cremador nos avisa:

– As cinzas estarão à disposição daqui a três dias – nos avisa, como tarefa rotineira, simples realidade.

E é só. Tudo acabou. O sol das dez horas bate em cheio em nossos rostos. A mulher do finado parece fantasma ressuscitado. O que eu esperava? Que os anjos tocassem trombetas na hora de cremação?  Aos mortos, o nada. Pelo menos, cremado, não serviu de comida aos vermes vorazes. Absorto, repito as palavras do inexistente:

– As flores, aos vivos…

Hoje, confesso, não foi fácil.

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